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PARTE II – MÉTODO

Capítulo 1 – O jornalismo pós-industrial

1.1 Origens de uma expressão

Nenhuma dessas características de método poderiam ser viabilizadas se não fossem as condições estruturais abertas por um novo perído, segundo novas bases, ao qual alguns pesquisadores da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, chamam de “jornalismo pós- industrial”. O termo, que nos interessa diretamente, não é uma invenção recente. Aliás, antes de Doc Searls usar o termo jornalismo pós-industrial, em 1973, o sociólogo Daniel Bell publicara o livro O advento da sociedade pós-industrial63. A obra inferia que o poder da indústria passava a depender de um capital humano baseado na tecnologia e no conhecimento científico, em uma sociedade na qual havia um domínio crescente da racionalidade científica frente às esferas políticas, econômicas e sociais e que passava a reestruturar a hierarquia.

É daí que se origina a ideia de jornalismo pós-industrial. A bem da verdade, o conceito coexiste com outros, que procuram explicar a influência da tecnologia sobre a sociedade contemporânea, como Sociedade da Informação, a Sociedade em Rede (Manuel Castells), Sociedade Líquida (Zygmunt Bauman), Social Media (Christian Fuchs), Sociedade do Cansaço (Byung-Chul Han), o homem pós-moderno (Michel Maffesoli), entre outros.

De forma mais definitiva, foi a Escola de Jornalismo de Columbia que fixou o termo

jornalismo pós-industrial na bibliografia acadêmica em 2012, ao publicar, por seu Centro Tow

de Jornalismo Digital, um dossiê assinado por Chris Anderson, Emily Bell e Clay Shirky64. Nesse trabalho, os autores destacaram um cenário emergente em que sobrava interesse “tanto na institucionalização de novas organizações de notícias quanto na adaptação de velhas instituições à nova realidade” (2013, p. 40). A pesquisa discutia modelos de organização do

63 Título original, em inglês: “The Coming of Post-Industrial Society: a Venture in Social Forecasting”. 64 O material foi divulgado no Brasil pela Revista de Jornalismo ESPM (abr./jun. 2013).

jornalismo e prescrevia a reavaliação dos procedimentos de produção das notícias, a redução dos custos e a incorporação de métodos digitais de trabalho.

Em uma paisagem mutante, cinco percepções se tornaram convicções entre os pesquisadores:

a) o jornalismo é essencial;

b) o bom jornalismo sempre foi subsidiado; c) a internet acaba com o subsídio da publicidade; d) a reestruturação se faz obrigatória; e

e) há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras. (ANDERSON; BELL; SHIRKY, 2013, p. 33).

Os autores Bill Kovach e Tom Rosenstiel, na terceira edição norte-americana de Os

elementos do jornalismo, fazem uma referência ao dossiê e às mudanças anunciadas:

A palavra jornalista descrevia um grupo de profissionais organizados – trabalhando no que C. W. Anderson, Clay Shirky e Emily Bell chamaram de Jornalismo Industrial – agora ela descreve qualquer um que possa se encontrar produzindo notícias e que aspirem a fazê-lo ética e responsavelmente (KOVACH; ROSENSTIEL, 2014, pos. 260 a 262)65.

Na Enciclopédia de problemas sociais (PARRILLO, 2008, p. 694-696), Marc J. W. de Jong (professor na Universidade do Sul da Califórnia) contrasta visões favoráveis e críticas ao “pós-industrialismo”. Ele observa que há pesquisadores que avaliam a sociedade pós-industrial segundo perspectivas utópicas ou distópicas. Primeiro, porque esse padrão seria meritocrático. E, segundo, porque diminuiria, teoricamente, a dependência dos recursos naturais na medida em que seu desenvolvimento se baseava em capital humano. Por outro lado, uma das críticas à socidade pós-industrial (ora chamada também de sociedade da informação) está no seu nível de concorrência por criar uma desvantagem social intransponível para grupos sociais marginalizados. Ela aumenta a distância entre classes localizadas no topo e na base da pirâmide social – questão que, em outra escala, estender-se-ia para a divisão entre países ricos e pobres, já que as forças democratizantes das informações são limitadas.

A reestruturação do jornalismo na condição de indústria é um fenômeno difícil de comparar com outras alterações industriais contemporâneas. Mesmo companhias automobilísticas, que foram das que mais sofreram processos de mudança nas últimas décadas, não tiveram alterações tão profundas quanto as passadas pelos meios de comunicação. O

65 Texto original: “[…] the word journalist described a group of organized professionals—working in what C. W.

Anderson, Clay Shirky, and Emily Bell have called Industrial Journalism—now it describes anyone who might find him or herself producing news and who aspires to do it ethically and responsibly”.

jornalismo pós-industrial, seguindo essa linha de pensamento, deve usufruir de novidades tecnológicas e culturais próprias dos tempos de convergência – desde fazer uso de mais máquinas para produzir parte das notícias até mesmo obter dados via indivíduos, multidões e máquinas. Sequer pode dispensar parcerias ou dados de caráter público (ANDERSON; BELL; SHIRKY, 2013, p. 38).

O furacão que atravessa o campo da comunicação se deve, em parte, ao maior interesse social pelo controle de dados e por fluxos de informação, principalmente após as chamadas “plataformas 2.0”. Segundo a especialista Elisabeth Saad Corrêa, professora da ECA-USP, a digitalização acaba condicionando a cultura contemporânea por seu caráter de centralidade, transversalidade e resiliência. Em consequência à tal centralidade há uma interpenetração com outros campos do saber66. Quanto à transversalidade, ela deriva de “processos anteriormente fragmentados, nos dispositivos cada vez mais convergentes devido às affordances que incorporam funções de mobilidade e geolocalização, interatividade aos suportes comunicativos clássicos, e nos próprios produtos midiáticos” (SAAD CORRÊA, 2015, p. 6-7)67. A resiliência é definida como uma “capacidade de um sistema ou uma organização se antecipar e se adaptar a rupturas, eventos, lidar com as mudanças e reconstruir seus valores e estruturas a partir destes movimentos” (SAAD CORRÊA, 2015, p. 9).

Ainda em referência à digitalização, o jornalismo pós-industrial pode ser pensado em relação ao termo Antropoceno. Conceito recorrente na área dos estudos digitais, especialmente na obra de Bruno Latour, trata-se de uma palavra emprestada da Geologia para designar a era em que as atividades humanas passam a alterar os processos e as estruturas do planeta Terra. Segundo Renata Moraes, o termo tem sido objeto de combinação interdisciplinar por sua capacidade de aludir ao “ápice da interferência humana nos ecossistemas da Terra” (MORAES, 2014, p. 42).

Termo que aparece com mais frequência associado ao jornalismo pós-industrial que o Antropoceno é o de ecologia da mídia. A referência é feita para dizer que os anos 2010 representam um novo “ecossistema informativo” em relação àquele dos anos 1980, por exemplo. No Congresso de 2014 da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji),

66 Para abalizar tal afirmação, cita: Eugenia Barrichelo (2003), Manuel Castells (2006; 2007), Bernard Miège

(2009), Dana Klisanin (2012), Luís C. Martino (2013), Serge Prolux (2013), Muniz Sodré (2014), Frank Webster (2014), M. Crang (2015), Rasmus Helles et al. (2015).

67 Saad Corrêa indica o estranhamento com a permanência de divisões atualmente impossíveis devido à

interpenetração de praticamente toda a cultura e todos os domínios do conhecimento pelo digital, divisões como “Jornalismo e Jornalismo Digital”, “Relações Públicas e Relações Públicas 2.0”, “Publicidade e Publicidade Interativa”.

o veterano jornalista e professor universitário Rosental Calmon Alves, em oficina sobre “jornalismo empreendedor”, ilustrou a mudança de ambientes de mídia pela metáfora do ecossistema. Para a “era industrial” do jornalismo, Rosental exibiu a imagem de uma vegetação desértica à qual contrapôs a pluralidade da flora amazônica pós-industrial. O cacto isolado na paisagem do Novo México era imponente e cheio d’água, mas ele estava longe de ter a complexidade das relações amazônicas.

A ecologia da mídia identifica mudanças sistêmicas na mídia, daí o motivo da terminologia biológica evocar um sistema que cria um conjunto próprio de relações tal qual um bioma as (re)cria (SCOLARI, 2013, p. 1.418). Segundo essa perspectiva, não é possível compreender os meios de comunicação se estes forem isolados temporalmente, tampouco se pode entender um meio sem o contextualizar aos meios de comunicação de seu “ambiente”. Conforme indica o estudo de Carlos Scolari, a “ecologia da mídia” aflorou como campo de estudos nos anos 1960, com Marshall McLuhan, Neil Postman, James Carey e Walter Ong, tendo, antes, Harold Innis como pioneiro por suas obras Empire and Communications (1950) e

The Bias of Communication (1951).

O finlandês Jussi Parikka reforça a metáfora biológica ao associar a mídia segundo “uma relacionalidade etológica, em vez de apenas ser um objeto tecnológico”. Para ele, a ecologia da mídia é topológica, ou seja, deve ser considerada como uma rede. Segundo Parikka, que atua como professor de Cultura Tecnológica e Estética da Universidade de Southampton, tal expansão do conceito de mídia extrapola sua dimensão moderna à medida que inclui uma série de processos, objetos, modos de percepção, mobilidade e relacionalidades (PARIKKA, 2011, p. 46, tradução livre)68.

Em vez de tratar da revolução tecnológica das comunicações, esta tese segue o rastro de uma potencial evolução do pensar e do fazer jornalismo. Mais que uma “prática social”, o jornalismo é encarado aqui como um MÉTODO que ultrapassa fronteiras ao ser replicado em diferentes culturas profissionais e contextos para obter determinados conhecimentos. O jornalismo pós-industrial permite contextualizar o advento do jornalismo transnacional como uma resposta dos jornalistas profissionais a um cenário de crise da imprensa como fiscalizadora do poder (“watchdog journalism”), processo que culminou com milhares de demissões nos Estados Unidos e em outras grandes economias.

68 Jussi Parikka escreveu uma “Trilogia sobre Ecologia da Mídia”, que foi iniciada em 2007 com Digital

Contagions: A Media Archaeology of Computer Viruses. Em 2010, publicou Insect Media e, em 2015, lançou o

título A Geology of Mediaforms. De acordo com a página do Project Muse, o trabalho se concretizou pela Imprensa da Universidade de Minnesota.

Congressos e “journals” destacam que vivemos a experiência de novo ambiente informativo, uma nova ecologia da mídia. Logo, convém partir dessa metáfora dos sistemas vivos antes de colocarmos os pés em nossas redações e narrarmos nossas histórias. Convém procurar entender por que nossa época tem sido comparada com uma transformação de mentalidades e de tecnologias que só encontraria páreo com a invenção da imprensa no século XV. Tal euforia acompanha transformações visíveis e latentes nas sociedades e nas culturas de nossa época. Derrick de Kerckhove, que leciona na Universidade de Toronto e que foi assistente e coautor de obras de Marshall McLuhan, enumera essas transformações e as interpreta para além do clickativismo: o movimento Occupy Wall Street, as revoltas árabes, os protestos na Islândia, os Indignados, os aganaktismenoi da Grécia, o Anonymous, o M-15 na Espanha, a reação às eleições na Itália (KERCKHOVE, 2015). Em Communication Power, Manuel Castells afirma que aquilo que “os movimentos sociais em rede estão propondo na sua prática é uma nova utopia no coração da cultura da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito vis-à-vis às instituições da sociedade” (CASTELLS, 2013, página XLIII, tradução livre).

Se em Galáxia da internet Castells comentara que “a Internet põe as pessoas em contato numa ágora pública, para expressar suas inquietações e partilhar suas esperanças” (CASTELLS, 2003, p. 135, tradução livre), em Communication Power o teórico espanhol reforça intuições feitas há dez anos, com base na análise de movimentos sociais dos anos 2010 (ex. Occupy). Castells dedica um livro à hipótese de que “a forma mais fundamental de poder está na capacidade de moldar a mente humana” e que “a construção das relações de poder se dá através da gestão dos processos de comunicação” (CASTELLS, 2013, p. 3, tradução livre), enquanto o canadense Kerckhove se impressiona com a capacidade de as redes digitais ligarem comunidades tão heterogêneas.

Para Kerckhove, “a Internet muda as estruturas e formas das redes sociais, aumentando a velocidade da comunicação e modificando e reestruturando a esfera pública” (KERCKHOVE, 2015, p. 60). “A comparação com o sistema límbico torna-se mais convincente porque uma emoção acabará tornando-se uma ação real se for estimulada o suficiente” (id.).

1.2 COLABORAÇÃO, EMPREENDEDORISMO E PERSONALIDADE