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OffshoreLeaks – o vazamento global que chegou pelos Correios

PARTE I – PRÁTICA

Capítulo 1 OffshoreLeaks – o vazamento global que chegou pelos Correios

Um vazamento 160 vezes maior que o WikiLeaks, devassando o mundo dos negócios como nunca se viu. Assim foi o OffshoreLeaks, que revelou informações de propriedade de empresas criadas em 10 jurisdições offshore durante um período de quase 30 anos até 2010, incluindo documentação das Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Cook e Cingapura.

Alguns analistas consideram a série a primeira investigação com impacto global a expor o mundo das empresas transnacionais “por dentro”. Para o jornalista britânico Duncan Campbell 2013), o trabalho “representa uma das maiores parcerias investigativas transnacionais na história do jornalismo”38.

Em reportagem de Frédéric Zalac (2013) para a CBC News, “The Pursuit of Openness”, o repórter Gerard Ryle explica como foi sua trajetória que, finalmente, iria levá-lo ao cargo de diretor do ICIJ. Ryle trabalhava em seu país de origem, a Austrália, e apurava fraudes de empresas do setor energético. Ao fazer uma escala pelas Ilhas Virgens Britânicas, começou a se familiarizar com o mundo dos paraísos fiscais. O conteúdo de suas matérias chamou a atenção de quem tinha dados fiscais para vazar, porque deixavam muito claro que a intuição daquele repórter (seu “faro”, como se diz no jargão das redações) era evidente. Ali estava um profissional capaz de decifrar dados contábeis de agências offshore. Tempos depois, chegou ao local de trabalho de Ryle um pacote entregue pelos correios. Dentro, havia um disco rígido. Era o presente de um denunciante anônimo ao jornalista investigativo.

“Foi uma coisa bem à moda antiga” (old-fashion thing), brinca Ryle. Ao navegar pelo conteúdo do HD, ele percebeu que o disco era uma mina de ouro, embora “não soubesse exatamente o que significava”39. Ryle sabia que precisaria de muito tempo para pesquisar quem eram aquelas pessoas e o que elas faziam. Sozinho ele não daria conta. Ao fazer buscas na Internet e procurar colaboradores, descobriu o ICIJ. Entendeu que a organização seria capaz de lhe dar condições de decifrar os dados e, depois saberia, meios de aplicar uma metodologia transnacional de trabalho. Atravessou o Pacífico rumo aos Estados Unidos, levando na bagagem

38 No original: “ICIJ’s team of 86 investigative journalists from 46 countries represents one of the biggest cross-

border investigative partnerships in journalism history”.

39 Frase original falada por Gerard Ryle: “I know it was a potential gold mine, but I don´t actually know what I are

os cerca de 2,5 milhões de arquivos para o ICIJ, daquilo que futuramente se transformaria no

OffshoreLeaks.

Foi convidado a trabalhar em Washington para o ICIJ. A equipe começou a contatar jornalistas ao redor do mundo para saber como eles poderiam colaborar para ligar dados a pessoas suspeitas, em seus países, de crimes como evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outras condutas ilícitas. Uma das diretoras do projeto foi a jornalista Marina Walker Guevara.

A rede se foi formando, até conseguir recrutar 86 jornalistas espalhados em 46 países. O trabalho foi tão bem feito que, diferentemente do caso WikiLeaks, o “whistleblower” do

OffshoreLeaks não foi descoberto posteriormente40, quer dizer, as fontes não vieram a público. O jornal The Sidney Morning Herald, na edição de 5 de abril de 201341, destaca a corrida global iniciada por Gerard Ryle antes mesmo de assumir o cargo de coordenador do ICIJ. Em vez de ser uma matéria de interesse nacional com desdobramentos no exterior, o OffshoreLeaks não parava de gerar efeitos na política, na economia e mesmo no mundo comunicacional – “Embarrassing the powerful”, “Millions in secret accounts”, “Larger than WikiLeaks”. Ryle lembra do valor da colaboração no trabalho investigativo, malgrado a resistência de muitos de seus colegas em fazer concessões:

Eu queria incentivar a colaboração entre os jornalistas, algo que nós, jornalistas investigativos, normalmente não gostamos de fazer. Gostamos de trabalhar por conta própria e de manter os nossos segredos42.

A série jornalística transnacional OffshoreLeaks provou situações de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outras condutas ilícitas na China, Azerbaijão, Rússia, Canadá, Paquistão, Filipinas, Tailândia, Mongólia. Em geral, os personagens eram membros dos governos (e seus familiares e sócios), que adotavam empresas de fachada e contas bancárias secretas em paraísos fiscais.

Para se ter uma ideia da magnitude das repercussões, é creditado ao OffshoreLeaks o rebaixamento da China no Índice de Percepção da Corrupção Anual em 2014. Autores do

40 O WikiLeaks envolveu a publicação de “diários do Iraque”, “diários do Afeganistão” e o “Cablegate” (telegramas

diplomáticos norte-americanos). O conteúdo foi vazado pelo jovem militar Bradley Manning, que cumpria expediente no Iraque e acabou tendo seu nome revelado pelo hacker Lamo à revista Wired.

41 The Sidney Morning Herald, 5/4/2013. “Mysterious mail to Australian journalist triggers global tax haven

expose”: <http://www.smh.com.au/business/world-business/mysterious-mail-to-australian-journalist-triggers-glo bal-tax-haven-expose-20130405-2hak3.html>.

42 Trecho original: “‘I wanted to encourage collaboration among journalists, something that we, investigative

relatório da Transparência Internacional admitiram que a série foi decisiva para diminuir pontos do país asiático, ao expor como a elite econômica chinesa usava o sigilo offshore.

No âmbito governamental, a série transnacional despertou o interesse da Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália e Espanha em combater a evasão fiscal por meio de alianças de trabalho e da troca de informações bancárias. Houve, ainda, um acordo firmado entre 51 ministros das Finanças e chefes de Receitas durante um fórum mundial em Berlim para descobrir fundos não declarados mantidos em contas offshore. Na Índia, foi criada uma força- tarefa para detectar crimes de sonegação relacionados às remessas de dinheiro para paraísos fiscais, utilizando dados da reportagem, e chegou-se aos nomes de mais de 600 cidadãos e empresas por via do banco de dados do ICIJ.

O OffshoreLeaks revelou que bancos de alto conceito internacional, como o UBS, o Credit Suisse e o Deutsche Bank, recomendam esquemas offshore a seus clientes. Outro fator de indignação da opinião pública mundial foi dar a conhecer como os magnatas usam esquemas offshore para obter mansões, iates e obras de arte. Evidenciou-se como o sigilo offshore só era possível de ser mantido graças à formação de uma indústria bem paga de contadores, advogados, banqueiros, corretores e outros agentes que não se importavam com a origem dos capitais, mesmo que fossem de práticas de corrupção ou de outros crimes.

Vale citar o artigo publicado na Folha de S. Paulo43 pela jornalista e diretora do ICIJ Marina Walker Guevara. O texto comemora com os leitores as repercussões das séries sobre paraísos fiscais coordenadas pelo consórcio investigativo:

Quando o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos [ICIJ] iniciou a investigação do caso SwissLeaks, há dez meses, sabíamos que seria uma notícia importante – mas não imaginávamos que provocaria uma reação de choque em cadeia, levando executivos do HSBC a pedir desculpas, autoridades governamentais a abrirem inquéritos em vários países e cidadãos a exigir igualdade fiscal e transparência, seja pelo Twitter ou pelo Avaaz. (GUEVARA, 2015).

As repercussões não pararam. Na Espanha, a rede do ICIJ conseguiu expor a compra de um Van Gogh pela magnata Carmen Thyssen-Bornemisza mediante uma transação nas Ilhas Cook. Ou seja, enquanto “tycoons” possuíam acesso exclusivo às vantagens fiscais para ampliar

43 Trecho do artigo: “Desde 2012, o ICIJ tem investigado os paraísos fiscais – que fazem parte do tema muito mais

amplo da desigualdade econômica. Primeiro, revelamos os verdadeiros donos por trás de mais de 100 mil empresas secretas em ilhas do Caribe. Depois, revelamos como algumas das maiores empresas do mundo usam o paraíso fiscal de Luxemburgo, no centro da Europa, para pagar impostos que não chegam a 1%. E, em 9 de fevereiro, ao lado de mais de 50 empresas jornalísticas, expusemos como a filial suíça do HSBC havia aberto e mantido contas bancárias para traficantes de armas, negociantes de diamantes, de sangue e sonegadores de impostos do mundo inteiro”.

seu luxo e patrimônio, a classe média precisava sustentar a Previdência em seus respectivos países44.

Os dados offshore investigados pelo ICIJ identificaram empresas nas BVI (Ilhas Virgens Britânicas) pertencentes à esposa do vice primeiro-ministro da Rússia, Igor Shuvalov, e a dois altos executivos da Gazprom (estatal russa que é maior extratora mundial de gás natural). Na Mongólia, o vice-presidente do Parlamento, Bayartsogt Sangajav, foi questionado pelo ICIJ sobre uma empresa offshore e uma conta bancária na Suíça, ambas mantidas em segredo em relação ao fisco do seu país. Sangajav assumiu a denúncia e cogitou renunciar ao cargo.

Além de o OffshoreLeaks ter provocado abalos nos EUA – envolvendo figuras malditas em Wall Street, como Paul Bilzerian e Raj Rajaratnam – e no Canadá – envolvendo um célebre advogado e sua esposa senadora, Tony e Pana Merchant –, identificou ilícitos junto à representante do Comércio Exterior da Tailândia, Nalinee “Joy” Taveesin. O mesmo se pode dizer do magnata que ganhou bilhões de dólares no Azerbaijão a partir de contratos feitos durante o boom de construção promovido pelo presidente Ilham Aliyev. Havia ligações entre o empresário e empresas offshore sigilosas pertencentes às filhas de Aliyev.

Nas Filipinas, autoridades se mostraram ansiosas em tentar reaver parte dos 5 bilhões de dólares, valor estimado das décadas de corrupção do ex-ditador Ferdinand Marcos. O motivo do entusiasmo veio da notícia do OffshoreLeaks de que a filha mais velha do falecido mandatário, Maria Imelda Marcos Manotoc, era beneficiária de conta nas BVI, o que ela não declarara ao Fisco.

Tamanha constelação de tremores de terra nas finanças internacionais e nos seus segredos internacionais ajudou a indicar que uma nova prática dava conta de levar a investigação jornalística a fronteiras antes inacessíveis aos repórteres. O mundo estava ficando diferente.

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44 Para quem se interessa pelo impacto dos paraísos fiscais sobre a economia global, indica-se o documentário

canadense The Price We Pay (2014), de Harold Crooks. Para o cineasta, os paraísos fiscais são os responsáveis por haver “níveis históricos de desigualdade que deslocam a carga fiscal sobre a classe média e os pobres” (Fonte: <http://www.thepricewepay.ca/>).

Figura 2 – Quadro interativo do OffshoreLeaks.

Fonte: ICIJ.