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GOVERNO DO PT: DE LULA A DILMA

2.4 HEGEMONIA, BLOCO NO PODER E DOMINÂNCIA BANCÁRIO-FINANCEIRA

2.4.1 Hegemonia às avessas e Brasil invertebrado

Oliveira (2010a) caracteriza que durante os governos Lula houve o que denomina de “hegemonia às avessas”. Este seria um fenômeno novo, não sendo parecido com qualquer

prática de dominação existente ao longo da história brasileira, pois não é patrimonialismo, não é patriarcalismo, não é populismo, isto é, nada destes elementos estariam presentes na nova dominação (OLIVEIRA, 2010a). Para Oliveira (2010a), parecia que os dominados dominavam, pois forneceram a “direção moral” e estavam no topo da organização do Estado; parecia que os dominados eram os próprios capitalistas, uma vez que estavam na gestão dos grandes fundos de pensão das estatais que são o coração do novo sistema financeiro brasileiro; parecia que os dominados comandavam a política, haja vista terem tido uma poderosa bancada no Congresso Nacional; e parecia que a economia estava estabilizada, dispunha de uma moeda sólida e que isso foi devido à política governamental de Lula.

No entanto, a nova dominação inverte os termos gramscinianos, sendo uma “hegemonia às avessas”, pois

[...] o consentimento se transforma no seu avesso: não são mais os dominados quem consentem na sua própria exploração. São os dominantes – os capitalistas e o capital, explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, à condição de que a “direção moral” não questione a forma da exploração capitalista. (OLIVEIRA, 2010a, p. 27)

Os governos do PT realizaram a “hegemonia às avessas”, pois foram avalizados por intensa participação popular, mas quando chegaram ao poder as políticas foram o avesso do mandato de classe recebido das urnas (OLIVEIRA, 2010b). Assim, no governo Lula, “[...] os grupos dirigentes são, em boa parte, oriundos ou representantes da classe trabalhadora, porém governam segundo os interesses das frações dominantes do grande capital (bancos, agronegócio e empreiteiras). [...] os trabalhadores governam e os capitalistas dominam.” (GONÇALVES, 2013, p. 7).

Para Paulani (2010), o “estado de emergência” econômico adotado pelo PT antes e após a entrada na presidência está diretamente relacionado à hegemonia às avessas, pois os trabalhadores foram levados a acreditar que realmente eram necessárias as medidas econômicas adotadas pelo partido, tanto que foi construído o consentimento de que eram medidas passageiras, entretanto foram elementos que perpassaram os governos Lula e Dilma. O discurso do “estado de emergência” justificou: a) a manutenção das taxas reais de juros mais elevadas do mundo; b) o pagamento de um serviço da dívida que chega a 8% do PIB; c) a realização de um superávit primário que beira os 5% do PIB; d) a transformação do sistema previdenciário brasileiro; e) a aprovação de uma lei de falência que coloca os interesses dos credores do sistema financeiro à frente dos interesses dos trabalhadores e dos interesses do

Estado no gerenciamento das massas falidas; e f) a defesa despudorada da independência de direito do Banco Central (PAULANI, 2010).

Contudo, afastado o álibi da beira do precipício, outros elementos foram colocados no horizonte, a necessidade de credibilidade dos investidores externos, afastando o fantasma da inflação e a ameaça de default externo. “Era preciso fazer o sacrifício que fosse necessário para alcançar esses objetivos. Intensificou-se então a liturgia da paciência, da necessidade de pagar a pena, do sacrifício da “sociedade”, para que se possa salvá-la do mal maior.” (PAULANI, 2010, p. 125)

Coutinho (2010), prefere caracterizar as relações de hegemonia da atualidade como “hegemonia da pequena política”, sendo que esta é baseada no consenso passivo, isto é, “esse tipo de consenso não se expressa pela auto-organização, pela participação ativa das massas por meio de partidos e outros organismos da sociedade civil, mas simplesmente pela aceitação resignada do existente como algo ‘natural’.” (COUTINHO, 2010, p. 31). Assim, os ideais e valores das classes dominantes são transformados como comuns da grande massa. A “hegemonia da pequena política” se dá quando a política passa a ser vista como a disputa pelo poder entre as diferentes elites, fazendo com que a política deixe de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade, passando a ser vista como simples administração do cotidiano (COUTINHO, 2010), ou seja, há um esvaziamento da política.

Coutinho (2010) apresenta algumas manifestações da “hegemonia da pequena política”: disputa política ter se reduzido ao bipartidarismo efetivo, mas não formal, em que há alternância do poder entre o bloco liderado pelo PT e outro pelo PSDB, sendo que estes aplicam a mesma política econômica e social, praticam métodos de governo semelhante (não recuam diante da corrupção sistêmica), os dois blocos “blindam” a economia reduzindo ela a uma questão “técnica” e não política.

Infelizmente, a chegada do PT ao governo federal em 2003, longe de contribuir para minar a hegemonia neoliberal, como muitos esperavam, reforçou-a de modo significativo. A adoção pelo governo petista de uma política macroeconômica abertamente neoliberal – e a cooptação para essa política de importantes movimentos sociais ou, pelo menos, a neutralização da maioria deles – desarmou as resistências ao modelo liberal-corporativo e assim abriu caminho para uma maior e mais estável consolidação da hegemonia neoliberal entre nós. Estamos assistindo a uma clara manifestação daquilo que Gramsci chamou de “transformismo”, ou seja, a cooptação pelo bloco no poder das principais lideranças da oposição. E esse transformismo, que já se iniciava no governo Cardoso, consolidou definitivamente o predomínio entre nós da hegemonia da pequena política. (COUTINHO, 2010, p. 42)

Para Oliveira (2010b), o governo Lula só fez aumentar a autonomia do capital, retirando da classe trabalhadora, e da política, qualquer possibilidade de diminuir a

desigualdade social e aumentar a participação democrática. Assim, “se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação.” (OLIVEIRA, 2010b, p. 375). Para Oliveira (2010a), Lula, já no primeiro mandato, havia sequestrado os movimentos sociais e a organização da sociedade civil, expressões disso: nomeou como ministros do trabalho ex-sindicalistas da CUT, outros sindicalistas foram colocados à frente de poderosos fundos de pensão das estatais e os movimentos sociais praticamente desapareceram da agenda política.

De acordo com Fontes (2010), a legitimidade do governo Lula se utilizou da dupla truculência/sedução para aprofundar a concentração de capitais, tanto pelos fundos de pensão e fundos de investimento, quanto pela desfiguração das direções do movimento sindical no Brasil. Desta forma,

os fundos de pensão convertem-se em controladores de empresas e em impulsionadores da centralização e concentração de capitais no país [...]. O montante de recursos captados crescia mais rapidamente do que a capacidade imediata de valorização, impulsionando a tendência à exportação de capitais. Ademais, os fundos evidenciaram a possibilidade de capturar não apenas recursos, mas gestores qualificados forjados no movimento sindical, como elementos fundamentais no apassivamento dos trabalhadores pelo capital. Tais ex-sindicalistas ocupam o local da propriedade do grande capital portador de juros, no qual a separação entre a propriedade e a gestão direta se aprofunda. Nas condições da atual escala de concentração, porém, essas funções passam a se confundir, com importante influência recíproca. Os gestores de tais fundos contribuíram diretamente para a imposição, através dos conselhos de acionistas dos quais participam, de profundas reestruturações empresariais visando a aumentar a produtividade, reduzir o tempo de retorno dos capitais à sua forma-dinheiro e distender as taxas de lucro. (FONTES, 2010, p. 336-337)

A ascensão de Lula foi pautada em um movimento sindical e um partido político, quando Lula ganhou a presidência o PT tinha se reduzido a uma grande máquina eleitoral (ANDERSON, 2011). “Uma vez no poder, Lula não mobilizou e nem mesmo incorporou o eleitorado que o aclamara. Nenhuma conformação estrutural nova deu forma à vida popular. A marca de seu governo foi, pelo contrário, a da desmobilização.” (ANDERSON, 2011, p. 33). Para Filgueiras et al. (2011, p. 39), a necessidade do “[...] “apaziguamento” e consentimento dos setores dominados, em especial a cooptação do sindicalismo e dos movimentos sociais, redirecionando suas energias para apoiar as políticas do governo, com o atendimento marginal das demandas sociais dos setores subalternos da sociedade”. Filgueiras et al. (2011, p. 64) aprofundam este entendimento, colocando que

essa é a base do “novo consenso”, do “crescimento com distribuição” na era do capital financeiro, que levou à incorporação marginal de parcelas da população de menor renda ao consumo, tendo como contrapartida a desmobilização política dos movimentos sociais e dos sindicatos, a tutela direta do Estado sobre a parte da população mais pobre, a despolitização da política, a desqualificação maior ainda dos partidos e, como resultado disso tudo, o surgimento, desenvolvimento e consolidação do “lulismo”. O “expríncipe dos sociólogos” não teria a capacidade de assumir a linha de frente dessa etapa de construção da hegemonia burguesa no Brasil; o perfil e a origem de Lula, juntamente com o processo de transformismo político do Partido dos Trabalhadores e outros segmentos da esquerda, foram decisivos. E esse “novo consenso”, tal como o anterior (a via única), embora também tendo vocação política autoritária, convive, quando necessário, com a mobilização popular como base de apoio. (FILGUEIRAS et al., 2010, p. 64)

Gonçalves (2013) vai colocar que neste processo de “hegemonia às avessas” ou “hegemonia da pequena política”, houve a formação do “Brasil invertebrado”, caracterizado por: um sistema político clientelista e corrupto; uma sociedade que se mostra invertebrada e anestesiada; a cooptação da maior parte das organizações sociais, sindicais, estudantis e patronais; os grupos sociais e movimentos sociais de maior envergadura são neutralizados por políticas assistenciais; boa parte das ONGs prestam um serviço ruim e servem para lavagem de dinheiro; o corporativismo e a fragilidade institucional corrompem a base administrativa do Estado, frustrando processo de modernização; os agentes de regulação tornam-se ineficazes ou são capturados por interesses particulares; há impunidade de corruptos e corruptores; os grandes grupos econômicos se tornaram os atores protagonistas do abuso econômico, da corrupção e do financiamento de campanhas eleitorais60 (GONÇALVES, 2013).

Complexifica-se, portanto, o teor da luta de classes no nosso país. Ao lado da extrema desigualdade interna que, malgrado os “alívios” provisórios, continua a se aprofundar, avoluma-se uma desigualdade crescentemente cavada pelo capital- imperialismo entre as classes trabalhadoras no subcontinente sul-americano. Novos desenvolvimentismos e a permanência de políticas público-privadas de alívio e de novas modalidades de superexploração interna e externa são a condição da manutenção interna dessa nova hegemonia do capital-imperialismo brasileiro. (FONTES, 2010, p. 369)

60

De acordo com Oliveira (2010b, p. 375-376), as classes dominantes se transformaram em gangues: [...] as páginas policiais dos jornais são preenchidas todos os dias com notícias de investigações, depoimentos e prisões (logo relaxadas quando chegam ao Supremo Tribunal Federal) de banqueiros, empreiteiros, financistas e dos executivos que lhes servem, e de policiais a eles associados. A corrupção campeia de alto a baixo: do presidente do Senado, que ocultou a propriedade de uma mansão, passando pelo ex-diretor da casa, que repetiu – ou antecipou? – a mesma mutreta, aos senadores que pagam passagens de sogras a namoradas com verbas de viagem, e deputados que compram castelos com verba indenizatória”.

Após este debate sobre hegemonia, bloco no poder e dominância bancário-financeira com reflexos diretos sobre a organização da sociedade civil nos governos Lula e Dilma, passamos a discutir como este processo se consubstanciou no fundo público.