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2.1.3 – Particularidades das ACA

2.2 – I DENTIDADE SOCIAL E PROFISSIONAL

A identidade é um sentimento de continuidade e de unidade fundado no reconhecimento recorrente das relações do Eu com o mundo exterior, nomeadamente com os grupos de pertença social e cultural (Erikson, 1976, citado por A. Lopes, 2001b). Este conceito de identidade, segunda esta autora, sofreu mudanças de acentuação ao mesmo tempo que se estendeu a todas as ciências sociais, demonstrando-se assim a sua pregnância para a interpretação das dinâmicas sociais actuais. As mudanças de acentuação referidas dizem respeito quer ao produto (identidades) quer ao processo (construção identitária) e resultam do facto do conceito, antes enquadrado pelas teorias funcionalistas, passar a ser enquadrado pelas teorias da construção social da realidade, que enfatizam a interacção e a incerteza (A. Lopes, 2001b e 2001a: 124).

Dubet (1996: 113) sugere que a sociedade já não é um conjunto social estruturado por um princípio de coerência interna (ideia clássica de sociedade), mas sim o resultado da justaposição do sistema de integração (comunidade), do sistema de competição (mercado) e do sistema cultural formado pela criatividade humana não totalmente redutível à tradição e à utilidade; sugere ainda que a experiência social resulta da articulação de três lógicas da acção, que são a lógica da integração, a lógica da estratégia e a lógica da subjectivação Estas três lógicas de acção coexistem no processo de socialização dos indivíduos (Dubet, 1996: 114; A. Lopes, 2001a: 123; Charlot, 2000: 39), todavia, Dubet acrescenta que, no momento intelectual e social em que nos encontramos, a ligação entre elas é aleatória, contrariando a percepção da sociologia clássica que considera essas ligações necessárias; por seu turno, Charlot refere que a assunção da lógica da subjectivação, mesmo em coexistência, obriga a conceber o indivíduo social como um actor dotado de uma subjectividade e não mais como um simples agente. Passemos à enunciação sintética de cada uma destas lógicas de acção.

Na lógica da integração, o actor define-se pelas suas pertenças, visa mantê-las ou fortalecê-las no seio de uma sociedade considerada então como um sistema de integração (Dubet, 1994: 113). Esta lógica tem como referencial as teorias funcionalistas da sociedade e nela se incluem as perspectivas de Emile Durkhein, Talcon Parsons e da antropologia cultural (A. Lopes, 2001a: 124-128), que têm como denominador comum a atribuição de um papel passivo aos indivíduos (agentes) nos processos de socialização e de construção das identidades. A identidade dos indivíduos (agentes) resulta da incorporação do social. Na lógica da estratégia, o actor tenta realizar a concepção que tem dos seus interesses numa sociedade concebida como um mercado (Dubet, 1996: 113). Segundo A. Lopes (2001: 128-133), enquadram-se dentro desta lógica as seguintes teorias: a teoria do habitus de Pierre Bordeou, quando concede que os indivíduos (apesar de agentes e não actores) gozam de alguma margem de “reacção” (um recurso estratégico, um “capital”) em relação às predisposições sociais e culturais; a teoria da identidade social de Sarbin e Scheibe, que sugere que a identidade social é função das posições sociais (papel e estatuto) que são validadas através de ligações de papel apropriadas, adequadas e convincentes; a teoria da identidade social de Henry Tajfel, que postula que a identidade social da pessoa se relaciona com a identidade social do grupo próprio e a distinção deste do grupo alheio (categorização social). Esta teoria diz que a pertença de um indivíduo a uma categoria é decidida no processo de socialização mediante avaliações diferenciadas de valores bipolares e reconhece a competição entre grupos, em que os grupos privilegiados tentam manter esse estatuto, cabendo aos grupos não privilegiados aceitar, ou não, a sua inferioridade; caso não a aceitem, os indivíduos podem tentar ascender aos

grupos superiores (mobilidade social), modificar a ordem de grandeza dos grupos (mudança social), ou encontrar outros parâmetros de comparação ou outros grupos de referência.

Finalmente, na lógica da subjectivação o actor representa-se como um sujeito crítico confrontado com uma sociedade definida como um sistema de produção e de dominação (Dubet, 1996: 113). A identidade é formada pela tensão do sujeito com o mundo, quer dizer, com a acção integradora e com a estratégica (Dubet, 1996: 131). A. Lopes (2001b e 2001a: 144-145) destaca a importância do interaccionismo simbólico de George Mead (1934), a quem se deve a ideia de que são as identidades pessoais dos actores, activos e em cooperação, que constroem as identidades colectivas e não o contrário.

Ancoradas na lógica da subjectivação “a identidade é o resultado de uma trajectória, de uma projecção de si, do passado no presente e do presente para o futuro, pondo em jogo a imagem de si, a apreciação das suas capacidades, a realização de desejos (A. Lopes, 1998; A. Lopes, 2001)”. A identidade “é o resultado simultaneamente instável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e definem as instituições” (Dubar, 1995: 105).

A primeira definição enfatiza a importância da trajectória vivida pelos indivíduos e da narração dessa mesma trajectória. Como diz Giddens (2001: 51), a identidade de uma pessoa reside na capacidade de manter a continuidade de uma narrativa; (…) em que essa narrativa (história) deve integrar eventos escolhidos da interacção contínua dos indivíduos com os outros e com o mundo exterior. A segunda enfatiza o “caos” do processo identitário e primeira alerta para os riscos desse processo. Ambas deixam transparecer a importância do actor, da interacção entre actores, e da interacção entre actor e meio.

Podemos discernir dois consensos principais. O primeiro é o de que é possível descrever a identidade segundo um modelo composto por um núcleo mais estável (identidade pessoal) formado a partir de experiências de socialização precoces e continuadas, e por uma periferia relativamente instável (identidade social) correspondente à articulação do desempenho de papéis sociais de género, profissionais, familiares, etc. (A. Lopes, 1998 e 2001a; Mendes, 2001; Giddens, 2001). O segundo consenso é o de que a identidade social se encontra exposta aos ventos cruzados (reflexividade) da modernidade tardia, de que resulta a multiplicidade e contingência das identidades sociais (A. Lopes, 1998 e 2001a; Mendes, 2001; Giddens, 2001; Dubar, 1995).

As definições e os consensos precedentes sugerem a questão de como é que se constrói e mantém uma identidade pessoal saudável e coerente. As teorias do desenvolvimento de Piaget (1964) e Erickson (1972) são duas fontes de inspiração fundamentais para uma resposta a esta questão (A. Lopes, 2001: 142; Dubar, 1995: 18; Giddens, 2001: 34-39), sugerindo que o desenvolvimento humano tem uma dimensão individual (subjectiva- cognitiva) e uma dimensão social (interacção-comunicação) e que, gradualmente, por estádios (que são tratados diferentemente por aqueles autores) o indivíduo idealmente vai consolidando equilíbrios cognitivos e equilíbrios de desempenho social progressivamente mais complexos. A vivência bem sucedida destes estádios de desenvolvimento, sobretudo em Erikson, é fundamental à construção de uma identidade saudável e coerente, apta a enfrentar os desafios da vida das pessoas. A importância do meio e dos outros é realçada em ambas as teorias, sugerindo uma concordância tácita com o interaccionismo de G. Mead, razão pela qual se reafirma o seu contributo fundamental para a formulação de uma teoria da identidade.

Ao nível da identidade social consolidada (na idade adulta, no contexto profissional, nos papéis de género, etc.), a coerência em situação de interacção e de conflito, pode ser mantida graças aos mecanismos teorizados por Elster (1985), citado por Corcuff (2001: 122-124), a quem se deve a teoria dos eus múltiplos, que postula que crenças ou desejos contraditórios podem coexistir desde que digam respeito a diferentes sectores da vida; que as escolhas podem obedecer a níveis hierárquicos de preferência; e ainda que as escolhas podem corresponder a ilusões, isto é, um indivíduo pode decidir-se pela pior escolha sabendo claramente disso. Aliás, em consonância com a sugestão de Goffman (1982), que teorizou a interacção social e sugeriu que as identidades são múltiplas, flutuantes e situacionais (Mendes, 2001: 492). Na mesma linha de raciocínio, Magalhães (2001: 316) sustenta que “o hibridismo surge, então, como modelo conceptual das identidades pós-modernas, na medida em que ao serem confrontados com toda uma gama de identidades é dada aos sujeitos a possibilidade reflexiva de escolher estrategicamente entre elas; (...) a fragmentação dos eixos identitários móveis e manipuláveis, não só como uma condenação, mas também como um recurso que pode reflexivamente ser utilizado”.

Em síntese, a identidade é uma “ferramenta” conceptual recorrente nas ciências sociais e é invocada, amiúde, ao nível da acção e do discurso em contextos profissionais. A sua actualidade deve-se, julgamos, à circunstância da conceptualização da identidade e da construção das identidades, contribuírem para desfazer duas oposições clássicas da sociologia, designadamente: objectivo versus subjectivo e individual versus colectivo.

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