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2.2.1 – A construção das identidades profissionais

2.3 U SO DO CONHECIMENTO EM CONTEXTO DE TRABALHO

Os conceitos de conhecimento, de saber e de informação colocam várias dificuldades de destrinça, definição e classificação.

Sallis e Jones (2002) e Sun (2002) sugerem a distinção entre conhecimento explícito e conhecimento implícito. Esta distinção é útil porque está associada ao uso organizacional ou, para usar uma terminologia mais recente, ao campo do knowlegde managment (gestão do conhecimento).

O conhecimento explícito surge também sob a designação de declarativo (Anderson, 1983, citado por Sun, 2002), processamento conceptual (Smolensky, 1998, citado por Sun, 2002) e pensamento analítico (Dreyfus and Dreyfus, 1987, citado por Sun 2002). Corresponde, em termos gerais, ao conceito de conhecimento abstracto (Caria, 2002b: 806), ou conhecimento-informação (Caria, 2003a), definido como: “discursos escritos de origem científico/ideológica, cientifico/técnica e filosófico/ideológica em cuja organização formal podemos reconhecer preocupações de generalidade, de especialização temática ou problemática, coerência interna, sistematicidade e validade no desenvolvimento dos argumentos avançados, quer escritos quer orais”. No nosso trabalho adoptamos como sinónimas as duas designações propostas.

Por sua vez, o conceito de conhecimento implícito surge também sob a designação de processual (Anderson, 1983, citado por Sun, 2002), processamento sub-conceptual (Smolensky, 1998, citado por Sun, 2002) e pensamento intuitivo (Dreyfus and Dreyfus, 1987, citado por Sun 2002), e ainda por conhecimento informal ou tácito (Sallis e Jones, 2002). No nosso trabalho adoptámos a designação de conhecimento implícito, que admitimos incluir: o senso comum sobre os fenómenos gerais da natureza e da sociedade; o senso comum (conhecimento “endógeno” ou “local”) inerente às práticas profissionais, nomeadamente às práticas agrícolas dos agricultores e o conhecimento organizacional (rotinas, conhecimento dos estatutos, papéis e normas e respectivas margens de tolerância de desvio, relações de poder, etc.).

Charlot (2000: 61), na esteira de Monteil (1985), Dubet (1994) e Schlanger (1978), acrescenta algo a este debate. Em alternativa à classificação do conhecimento de acordo com as suas qualidades intrínsecas, sugere que o conhecimento depende da relação particular que os sujeitos desenvolvem com o conhecimento. Para ele “(…) a ideia de saber implica a ideia de sujeito, de actividade do sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do dogmatismo subjectivo), de relação desse sujeito com os outros (que co-constroem, controlam, validam, partilham esse saber” (Charlot, 2000: 61). Até certo ponto esta posição é partilhada por Shön (1983: 49) quando diz que “o nosso conhecimento é ordinariamente tácito, implícito nos nossos padrões de acção e no nosso sentido para aquilo com que estamos a lidar; parece correcto dizer-se que o nosso conhecimento está na nossa acção”.

Esta formulação do problema é adequada aos objectivos do nosso trabalho, já que o que pretendemos estudar é o uso do conhecimento pelos técnicos das ACA em contexto de trabalho, em interacção com os restantes actores das ACA, ou seja, afinal, as relações sociais e de saber que se estabelecem e que caracterizam o trabalho desses técnicos.

Caria (2000, 2002b, 2003a), a partir do estudo do grupo profissional dos professores, desenvolveu um quadro teórico para estudo e análise do uso do conhecimento abstracto em contexto profissional. Nomeadamente, formulou uma tipologia dos estilos de uso do conhecimento, os quais são atribuídos e designados em função do recurso aos sub-saberes

interpretativos-justificativos e aos sub-saberes técnicos-estratégicos e ainda ao sentido contextual (cf. Caria, 2003a: 13). A forma peculiar como os profissionais combinam e aplicam os diferentes sentidos na acção profissional confere-lhes um estilo próprio individual e um estilo de grupo profissional.

Caria (2003a: 12) define sub-saberes interpretativos-justificativos como aqueles que se exprimem através de enunciados verbais explícitos, capazes de interpretar e/ou explicar as situações-problema a partir do conhecimento de regularidades (estatísticas, estruturais ou sistémicas) e de dar legitimidade à actividade de um grupo profissional particular, qualificando-o e distinguindo-o dos enunciados verbais expressos pelos não profissionais. Define sub-saberes técnico-estratégicos como os que se exprimem na identificação de segmentos da acção profissional que permitem opções variadas no uso dos recursos, isto é, permitem identificar escolhas de caminhos alternativos por referência a valores e portanto competências específicas para manipular objectos, tecnologias e processos de carácter geral. O autor não avança uma definição de sentido contextual mas, baseado nas contribuições

sobre as (des)continuidades e coexistências

da mente cultural e da mente racional-positiva de

Goody (1987; 1988) e de Iturra (1990a: 1990b)

admite a recontextualização do conhecimento-informação (ou conhecimento abstracto) na mente cultural. No caso dos professores verificou que a recontextualização transforma a lógica das teorias na lógica da acção, usando apenas o que é relevante em termos interpretativos-justificativos e técnico-estratégico e, por outro lado, a reflexividade na acção e da acção não evoluíam em geral para a reflexividade sobre a acção, permanecendo centradas na organização que tinha sentido para o local e para a interacção social (sentido contextual do conhecimento) (Caria, 2003a: 12).

Admitindo a recontextualização (que é um conjunto de relações sociais de saber), o autor adopta a linha de Charlot (2000) e passa a usar a designação de sentido em vez de sub- saber. Finalmente, sugere que o sentido interpretativo esteja relacionado com o conceito de conhecimento-qualificação (dado que ambos se referem a enunciados verbais que explicitam legitimidades sociais) e o sentido estratégico esteja relacionado com o conhecimento-competência (dado que ambos se referem a “habilidades intelectuais para inserir ideias abstractas na acção (Caria, 2003a: 13).

Com base neste esquema de análise e dos ensinamentos do trabalho prático exploratório que efectuámos aquando da fase de testagem dos questionários32 e, a um nível mais subliminar, decorrente do nosso interesse pessoal na extensão rural e no desenvolvimento dos sistemas de agricultura, podemos levantar um conjunto de hipóteses sobre o uso do conhecimento pelos técnicos superiores das ACA, designadamente:

1. A aquisição do conhecimento abstracto dá-se pela formação académica inicial e, hipoteticamente, através da formação contínua e da procura autodidáctica. As fontes desse conhecimento são as instituições de ensino superior agrário, os centros de investigação, a literatura científica e técnica e, ainda, os pares. A aquisição do conhecimento implícito dar-se-á a partir das vivências quotidianas de

32 Destacamos as ilações que extraímos da observação e reflexão sobre o episódio “A Latinha de Biscoitos”

(cf. Capítulo 6). No mesmo sentido concorreu o conhecimento que tivemos de dois técnicos de duas ACA que desenvolveram aplicações informáticas originais: uma para gerir de forma mais rápida e eficaz os dossiers financeiros e pedagógicos relativos à gestão da formação profissional; outra para facilitar a elaboração dos estudos técnicos e financeiros de projectos de investimento. Ambos mobilizaram conhecimento abstracto de informática, matemática, economia; e conhecimento implícito que aprenderam da sua experiência com a burocracia institucional e organizacional e com as necessidades, limitações e habilidades, enfim caprichos, dos actores do sistema (formandos, fiscais, avaliadores, promotores de projectos, etc.).

aprendizagem partilhadas com os pares, os dirigentes e associados e outros actores do campo agrário. Sobre esta última, estamos afinal, mais uma vez, a falar de “velhos” problemas da extensão e do desenvolvimento rural, simplesmente concebidos e enquadrados numa linguagem e conceptualização moderna. Neste caso, trata-se do aprender com os agricultores preconizado pelos modelos de extensão rural como: Farmer First (Chambers et al., 1989) e/ou a abordagem designada por Investigação & Desenvolvimento de Sistemas Agrários (Shaner et al., 1982).

2. A recontextualização do conhecimento abstracto e do conhecimento implícito de modo a tornar aquele utilizável pelos próprios técnicos e utentes finais do sistema, neste caso, os associados/cooperantes, resultará: na transformação de conhecimento disciplinar em interdisciplinar; na ponderação de racionalidades e valores (sentidos da intervenção); na adopção de uma simbologia própria (em que a linguagem ocupa lugar de relevo); na representação de diferentes papéis sociais, que extravasam a intervenção técnica. A recontextualização deverá ter lugar na interacção entre técnicos e associados/cooperantes ou seja, para usar a linguagem de Giddens (2000), nos pontos de acesso (dos leigos) aos sistemas abstractos. Invocando a concepção de Caria (2002b; 2003a), a exibição destes saberes poderá significar que os técnicos possuem sentido contextual, interpretativo-justificativo e técnico-estratégico da sua intervenção quotidiana. Concretamente, indagaremos acerca do que é afinal o sentido contextual e o que acontece no processo de contextualização ao conhecimento abstracto e ao conhecimento implícito.

3. A recontextualização é motivada, eventualmente, entre outras razões, pela distância abissal entre o mundo do trabalho do associado/cooperante e o mundo político-institucional e técnico-científico em que as políticas são definidas, os objectivos são traçados e as soluções são encontradas. Neste sentido, compreende- se que o conhecimento abstracto fique aquém da complexidade dos sistemas de acção concretos onde pode e deve ser aplicado. A intermediação entre estes dois mundos, que possibilita a gradual adaptação dos agricultores às condicionantes externas, sejam elas de natureza político-institucional, técnico-científica ou de mercado, em grande medida é concretizada através do apoio proporcionado pelas ACA. Como já dissemos, na perspectiva de Giddens todos somos de alguma forma afectados pela reflexividade da modernidade e todos dependemos de sistemas abstractos e do conhecimento pericial. Também todos, em maior ou menor grau, procuramos integrar parte desse conhecimento na vivência quotidiana, assim como procuramos criar (transformando) mecanismos de recontextualização que nos aliviem do desconforto da dependência total de sistemas que não controlamos totalmente, e nem sempre entendemos.

4. A recontextualização (que, obviamente, pressupõe a mobilização) do conhecimento abstracto e do conhecimento implícito traduz-se em saberes profissionais que têm uma expressão cognitiva, técnica e sócio-afectiva (ou as suas combinações possíveis) pertinentes face a situações profissionais concretas. Estes saberes revelam um sentido crítico sobre o uso dos recursos intelectuais e as condições de aplicação dos mesmos que viabiliza a intervenção quotidiana nas actividades das organizações e dos actores e permite a emancipação.

5. A articulação dos sentidos técnico-estratégico e interpretativo-justificativo com a mente cultural (sentido contextual) dá origem a estilos de uso do conhecimento (combinações particulares dos três sentidos) que resultam em conhecimento-saber ou nos saberes profissionais. Admite-se que algumas dessas combinações possam

ser consideradas típicas de determinados grupos profissionais e que a sua verificação empírica possa ser alcançada.

6. Conjugando a hipótese 1 e 2 e considerando a articulação entre as ACA e as organizações do sector público e privado (de um modo mais geral das políticas agrícolas), adiantamos a hipótese das ACA desempenharem um papel central no processo de produção e partilha do conhecimento com os agricultores de TMAD e outros actores institucionais. Esse processo de produção e partilha de conhecimento prefigura um sistema de conhecimento e informação agrária (SCIA, ou AKIS33 na sua designação anglo-saxónica) como o que a seguir se apresenta (Figura 2.2). ACA (Técnicos Superiores) Outras ACA Agricultores Ministério Agricultura (Serviços Centrais) Ministério Agricultura (Serviços Regionais) Formação Profissional Subsistema do Conhecimento entre Pares Subsistema do Conhecimento Implícito Subsistema do Conhecimento Abstracto Ensino Superior Contexto: Globalização PAC Subsistema de Informação ACA (Técnicos Superiores) Outras ACA Agricultores Ministério Agricultura (Serviços Centrais) Ministério Agricultura (Serviços Regionais) Formação Profissional Subsistema do Conhecimento entre Pares Subsistema do Conhecimento Implícito Subsistema do Conhecimento Abstracto Ensino Superior Contexto: Globalização PAC Subsistema de Informação

Figura 2.2 – Sistema de produção e partilha de conhecimento e informação agrária (SCIA)

Terminamos assumindo a inversão da nossa postura inicial. A nossa mente estava enformada por um senso comum negativista, de que o ensino superior prepara mal os alunos para o mundo real do trabalho. Esta posição etnocêntrica deriva do facto de que, até aqui (até ao início das entrevistas), tínhamos abordado o tema do desempenho dos técnicos superiores das ACA sempre por referência ao nosso contexto (na sala de aula, ou na sala da formação profissional). Foi necessário “deslocar-nos” até ao contexto de trabalho destes técnicos para tomarmos consciência da nossa “miopia”.

Assim, esperamos encontrar nos técnicos das ACA indivíduos que no seu quotidiano profissional fazem um uso profundo do conhecimento abstracto e implícito e que esta capacidade poderá constituir um dos traços mais nítidos da sua identidade profissional. O processo de aquisição da capacidade de tornar o conhecimento útil e utilizável pelos

33 Temos como referência de sistema de conhecimento e informação agrária (Agricultural Knowledge and

Information System, na designação anglo-saxónica), o conjunto das pessoas, redes e instituições e as suas interfaces e ligações, envolvidas na utilização sinérgica do conhecimento e informação (mobilização, transformação/integração, difusão, armazenamento) em ordem a incrementar a sua aplicabilidade a um domínio específico da actividade humana (Roling, 1988; citado por Engel e Roling, 1991: 10). Esse domínio, neste caso, é o desenvolvimento agrário de uma determinada região.

associados/cooperantes, poderá constituir um das faces mais visíveis (e verificável empiricamente) dos também já referidos mecanismos de construção da identidade profissional de Hughes.

CAPITULO 3 METODOLOGIA

“A construção do objecto [de estudo] não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de acto teórico inaugural, (…) é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correcções, de emendas, sugeridas por o que se chama ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas.” (Bourdieu, 1989: 27).

Dificilmente poderíamos encontrar, tecer ou “encomendar”, ideia que traduzisse melhor o princípio geral que escolhemos para concretizar o nosso estudo. Tanto assim é que, embora tivéssemo-nos esforçado por o seguir desde o início das actividades de investigação, só agora, já próximo do final, encontrámos ideia tão apropriada.

Os pontos que constituem este capítulo dedicado aos aspectos metodológicos traduzem o porquê, o quê e o como estudar, assim como expõem o decurso da investigação. Neles encontramos marcas bastantes dessa construção faseada, iterativa e relacional. Uma construção que, como sugere Bourdieu (1989) se corporiza na prática de uma sociologia reflexiva.

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