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A terminar este capítulo, para além dos aspectos já referidos relativos ao sentido contextual-prudencial, não podemos deixar de apontar a necessidade de aprofundar o

conhecimento sobre o uso do conhecimento em contexto de trabalho. A melhor forma de o

fazer, julgamos, é através investigação etnográfica, pois só ela permite, eventualmente, o

acesso à interacção em contexto real de trabalho entre os profissionais e os seus

interlocutores. Por exemplo, acompanhar as intervenções dos técnicos com os

associados/cooperantes, os actos médicos e os actos de enfermagem com os pacientes, o

professor a leccionar. Outras técnicas de investigação como a entrevista e a observação de

momentos de reflexão colectiva entre profissionais (reuniões formais ou informais, acções

de formação, simples conversas, por exemplo), embora úteis, não são suficientes para

aceder ao sentido contextual do uso do conhecimento. São úteis, todavia, para estudar o

sentido interpretativo-justificativo e, até certo ponto, o sentido técnico-estratégico do uso

do conhecimento. Ou seja, um exemplo mais da importância de, nas ciências sociais, se

fazer uso de metodologias de investigação que se complementem.

CAPÍTULO 8 SINTESE CONCLUSIVA: AS IDENTIDADES COLECTIVAS (ACA) E AS IDENTIDADES PROFISSIONAIS DOS TÉCNICOS COMO PROCESSO IDENTITÁRIO PARTILHADO

É um Capítulo de síntese, no qual responderemos às questões/hipóteses levantadas na fase inicial da investigação, assim como a outras imanentes do decurso da mesma. Algumas das novas questões são reformulação das questões iniciais.

Procurámos que a sequência das questões e respostas apresentadas reflectisse a ideia de construção partilhada das entidades profissionais dos técnicos e da entidade colectiva (ACA). Por esse motivo partimos das respostas às questões inerentes ao uso do conhecimento e à identidade profissional dos técnicos das ACA, para chegarmos às relativas às ACA e ao associativismo e cooperativismo em geral.

Na sua intervenção quotidiana profissional os técnicos das ACA actuam como intermediários (mobilizam) do conhecimento abstracto, ou actuam também como transformadores (mobilizam e recontextualizam) desse conhecimento?

Adiantámos hipoteticamente que o conhecimento abstracto (adquirido pela formação académica inicial, formação contínua e procura autodidáctica) e o conhecimento implícito, particularmente o conhecimento endógeno e o conhecimento organizacional (adquirido pelas vivências quotidianas de aprendizagem com os actores das ACA), seriam recontextualizados na interacção entre técnicos e associados/cooperantes. Se tal se verificar, então, os técnicos das ACA, mais do que meros intermediários do conhecimento, seriam intermediários transformadores do conhecimento.

Relativamente à aquisição e mobilização do conhecimento, verificámos que os técnicos superiores das ACA adquirem conhecimento abstracto por diversas vias: aquando da formação inicial e da formação profissional; pela auto-aprendizagem (literatura científica e técnica, Internet); recorrendo ao contacto e esclarecimento pessoal com os pares e com os serviços regionais e centrais do Ministério da Agricultura, este para informação de âmbito legal-burocrático (cf. ponto 6.1). A aquisição do conhecimento implícito, por seu turno, dá-se a partir das vivências quotidianas de aprendizagem com: os dirigentes e associados (agricultores) e outros actores que se relacionam com as organizações de agricultores (na opinião dos técnicos o conhecimento adquirido no contacto com os actores das ACA, os agricultores sobretudo, consiste na maior riqueza que extraem do seu trabalho quotidiano); os pares da própria ACA ou de outras organizações de agricultores congéneres, que funcionam como uma espécie de “rede” de protecção que resgata os técnicos ao seu isolamento profissional. Ambas as formas de aquisição de saber são elementos essenciais do processo de aprendizagem inicial e interiorização da profissão. Neste sentido são também elementos marcantes da identidade profissional dos técnicos das ACA.

A recontextualização do conhecimento abstracto e implícito tem lugar na interacção entre os técnicos e os actores das ACA (associados/cooperantes, sobretudo). Nesta interacção ambos os interlocutores mobilizam e partilham conhecimentos próprios, como transparece de alguns episódios referidos. A interacção é, na verdade, um momento de partilha de conhecimento em que os interlocutores estabelecem entre si uma relação de saber. A interacção é, por outro lado, um momento de produção de conhecimento-saber, que beneficia de algumas das qualidades próprias do conhecimento-abstracto e outras próprias do conhecimento implícito, mas cuja principal qualidade é a de ser útil e adequado às circunstâncias do contexto de interacção. A recontextualização é consubstanciada nos sentidos do uso do conhecimento, ou seja, nos estilos de uso do conhecimento adoptado pelos técnicos, nomeadamente o estilo identitário e, em parte, o estilo crítico-pragmático.

Esta linha de pensamento permite também definir a interacção como um momento de partilha, como preconizam os modelos educativos de extensão mais recentes, como a I&DSA, e não como um momento de transmissão de conhecimento-informação do mais instruído (o técnico) para o menos instruído (o agricultor), como preconizam os modelos convencionais de educação e de extensão.

Podemos designar o conhecimento-saber dos técnicos das ACA, ou os seus saberes profissionais, como conhecimento pericial. Porém, salvaguardando, que ao contrário do que é usual reconhecer-se ao conhecimento pericial, em que predomina o sentido técnico- estratégico, neste o sentido contextual-relacional e contextual-prudencial são igualmente importantes. Por isso, este conhecimento pericial também pode ser denominado de

conhecimento emancipatório, porque ajuda a promover as capacidades técnicas, intelectuais e sócio-afectivas e associativas/cooperativas dos actores das ACA.

Em síntese encontramos razões para considerar os técnicos das ACA, em situação de contexto de trabalho, como intermediários e transformadores do conhecimento abstracto.

Técnico superior das ACA: profissional-técnico ou profissional-perito?

Tendo como referência a tipologia proposta por Caria (2002b: 808), dado que os técnicos das ACA possuem qualificações académicas de nível superior, deverão ser incluídos no grupo do profissional-técnico ou no grupo do profissional-perito. Tomando como indicador a situação profissional dos técnicos, em que mais de metade (51,1%) são técnicos gestores considerando ainda que a maioria desenvolve actividades remuneradas extra ACA, concluímos que pelo menos os que reúnem ambas as condições se assemelham ao tipo profissional-perito. Para os restantes, os técnicos com função de execução (grosso modo), o tipo profissional-técnico descreve melhor a sua situação profissional. Tendencialmente, os técnicos com função de execução ocorrem com mais frequência em ACA com maior número de técnicos (talvez porque ficam um pouco na sombra de colegas com posição hierárquica superior na ACA) e em ACA de grande dimensão, sobretudo cooperativas e adegas cooperativas, que seguem modelos de gestão mais antiquados.

Quais são as áreas do conhecimento abstracto “em falta” na formação inicial do técnico?

Verificámos a existência de quatro áreas principais de intervenção do trabalho do técnico: apoio técnico de âmbito legal-burocrático; apoio técnico de âmbito produtivo; trabalho conducente à mudança de atitude dos associados/cooperantes; e o envolvimento com as questões humanas e socioeconómicas dos mesmos.

As duas primeiras, desde que atingido o grau de maturidade profissional de Maria Lionça, são normalmente vencidas pelo uso simples de conhecimento-informação em que predomina o sentido técnico-estratégico. Os estilos de uso do conhecimento tecnicista ou crítico-pragmático são suficientes para o cumprimento satisfatório destas missões. Este desiderato é reforçado pelo facto dos associados/cooperantes irem, de forma gradual, interiorizando a complexidade do contexto que envolve a actividade das ACA, facilitando assim a consecução das actividades mais prementes das mesmas.

Em termos de conhecimento abstracto em falta por parte dos técnicos, as principais lacunas dizem respeito: à gestão organizacional e aos procedimentos legais-burocráticos inerentes à aplicação das políticas, o que se deve à necessidade de constante actualização e nalguns casos a deficiências da formação de base; à comercialização e marketing dos produtos agrários, uma lacuna antiga e quase sempre ausente dos curricula da formação de base; aos modos de produção biológica e à produção e protecção integrada, cujos problemas e soluções se renovam todos os dias, e em que as necessidades suplantam o conhecimento científico existente e, sobretudo, acessível.

As duas últimas áreas referenciadas, incentivo à mudança de atitude dos associados/cooperantes e o envolvimento com as questões humanas e socioeconómicas dos mesmos, colocam situações-problema mais complexas, que obrigam o técnico a procurar novos conhecimentos ou, pelo menos, a reconhecer essa necessidade. Para isso é necessário o uso identitário do conhecimento, em que o sentido contextual-relacional e o sentido contextual-prudencial jogam um papel essencial.

As grandes lacunas de conhecimento abstracto são as relativas ao entendimento profundo do movimento associativo e cooperativo e as inerentes ao campo do serviço social. A primeira poderá ser mitigada de forma relativamente fácil, através da disponibilização de formação profissional adequada. A segunda lacuna é de resolução mais complexa e, tirando aquilo que se poderá aprender da experiência e/ou da formação profissional em áreas de animação social, o restante exige a entrada em acção de outros actores qualificados, para o efeito enquadrados em organizações que não as ACA.

Quais são os marcos mais importantes da socialização primária do técnico?

O nosso estudo demonstra que a socialização primária do técnico das ACA desempenha um papel marcante na construção do eu profissional dos técnicos e, porque esse processo é partilhado, na construção do eu colectivo que são as ACA. A ligação parental com a actividade agrícola da maioria destes profissionais e o seu gosto pelo contacto com as pessoas, animais e natureza, sugerem a importância das fases precoces da socialização primária, na trajectória pessoal e profissional. Outro marco importante para alguns é a experiência das escolas profissionais de agricultura e/ou dos cursos tecnológicos agrários que frequentaram no secundário. Estas experiências de socialização reflectem-se, por exemplo, na capacidade de racionalizar e interiorizar as vivências das ACA (sentido contextual), nas habilidades comunicativas (sentido contextual-relacional), no envolvimento pessoal com as questões socioeconómicas dos associados/cooperantes (sentido contextual-prudencial), na dedicação à profissão.

Poder-se-á falar de efeito de campo para explicar as trajectórias profissionais dos técnicos das ACA? A “vivência” das propriedades do campo agrário (

relações de âmbito familiar,

afectivo e profissional com a agricultura, oferta na região de cursos superiores agrários, os

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