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Neste capítulo serão apresentados alguns conceitos gerais de Análise do Discurso (AD) de linha franco-brasileira a partir de diálogos com textos de Michel Pêcheux, Dominique Maingueneau, Francine Mazière, Helena Brandão, Patrick Charaudeau e, mais densamente, de Eni Puccinelli Orlandi. Textos de revistas impressas e publicações eletrônicas também foram consultados e serão citados eventualmente, de acordo com a pertinência e a oportunidade.

A preocupação primeira quando da elaboração desse texto é tentar evidenciar os liames entre vários conceitos operacionais da AD. Por isso, algumas idéias e noções reaparecem em diferentes seções, acentuando o caráter recursivo da escrita.

A AD se estrutura em torno de noções de Língua, Fala, Texto e Discurso, Condições de Produção, Formações Discursivas, Interdiscurso, Sujeito, Esquecimento e Memória Discursiva. A partir delas desenvolvem-se as bases de análise, estabelecendo-se metodologias e dispositivos de interpretação. Sobre elas são erigidas também as noções de posição e lugar, de textualidade e discursividade, de autor e sujeito, de real e imaginário. Far-se-á também uma tentativa de explicitar os conceitos de Função discursiva Autor e de enunciação, analisando os efeitos do dito e do não-dito e de suas relações com discurso e ideologia, passando pelo Efeito Metafórico, a Produção da Leitura e suas condições.

Ao discutir o Lugar da Interpretação, Orlandi (2007a) coloca como característica mais importante de um dispositivo de interpretação ouvir naquilo que é dito o silenciado, também produtor de sentidos. Isso já sinaliza aí a importância, na enunciação, daquilo que se diz e daquilo que não se diz no processo de descrição e interpretação e, portanto, de produção de

sentidos. Além disso, é de suma importância na elaboração do dispositivo de análise estabelecer relações do dito com o não-dito, do dito em um lugar com o dito em outro lugar, e do dito de um modo com o dito de outro modo (Orlandi, 2007a). O enunciado tem um papel insubstituível no processo de interpretação porque uma de suas características mais marcantes é introduzir, já de início, a alteridade do cientista/analista. Mas também tem o próprio enunciado a possibilidade de tornar-se outro, de ser descrito de outra forma e interpretado de outra forma; sua propriedade fundamental é então essa susceptibilidade à mudança, essa imanente possibilidade de ser outro. Isso delimita, demarca a Possibilidade de Interpretação. Essa inamovível alteridade, esse outro discursivo, pode se dar por ligação, por identificação, ou por transferência e é ele que efetivamente possibilita a interpretação.

Um outro aspecto da Possibilidade de Interpretação é a exterioridade, que tem que ver com o interdiscurso, ou seja, com tudo aquilo que a gente tem de me mória discursiva (e não a memória individual), ou não, mas utiliza (CAZARIN, 2006, p.307). Isso se relaciona também com a noção de apagamento, que será discutida um pouco mais adiante no texto, em conexão com as noções de autor e sujeito, sobretudo porque na condição de autor tanto o interdiscurso quanto a memória são fundamentais.

Outro ponto relevante é a relação entre ideologia e inconsciente que é a base de toda a análise de discurso, na perspectiva aqui colocada, e ela se expressa, se mobiliza na possibilidade de interpretação através de jogos simbólicos, equívocos, derivas, e permitem a interpretação porque afeta a constituição de sujeitos, de sentidos e significados, pois segundo Cazarin (2006, p.309):

(...) os sujeitos não estão fora da interpretação e, por conseguinte, da história. Importa, então, no processo de leitura, compreender como o sujeito-leitor, ao ler, desconstrói a estabilidade do texto e dos sentidos esperados pelo sujeito-autor – desconstrói para reconstruir, de acordo com os saberes próprios ao lugar social em que está inscrito. É nesse processo que intervém a ideologia e o inconsciente como constitutivos do dizer. (CAZARIN: 2006, p.309) (Negrito nosso).

Isso quer dizer também que o movimento de constituição do sujeito e dos sentidos se dá de forma complementar: sujeito e sentido nascem juntos.

O Quadro 5 traz dois elementos fundamentais da leitura: a descrição e a interpretação. Além disso, exibe os dois momentos de interpretação pelo Analista. No primeiro momento ele descreve como o sujeito, pela interpretação, produz sentidos. No segundo momento e le compreende que, no ato de descrever, também interpreta. Ou seja, quando o Analista se

coloca em ato de análise e tem à sua frente o material simbólico (os textos, o corpus) e começa a fazer um trabalho de descrição daquilo que lá está, então esse material já está produzindo sentidos pelo sujeito que o colocou em circulação. E é isso que se busca no primeiro contato com a superfície. Mas o Analista também tem de se colocar na condição de que le r é também ser sujeito naquele processo de produção de sentidos e, portanto, ter consciência de que a descrição também é interpretativa. Então, há na verdade dois atos de interpretação aí: um é na tentativa de descrever a superfície e o outro é na consciênc ia de que na descrição ele já está também alterando, porque está interpretando. Aqui, segundo Pêcheux (2002, p.54):

“(...), o problema principal é de determinar nas práticas de análise de discurso o lugar e o momento da interpretação, em relação aos da descrição:

dizer que não se trata de fases sucessivas, mas de uma alternância ou de um batimento, não implica que a descrição e a interpretação sejam condenadas a se entremisturar no indiscernível.” (PÊCHEUX: 2002, p.54): (Cursivo nosso).

Quadro 5. Os momentos da interpretação.

1º momento O Analista descreve como o sujeito – pela interpretação – produz sentidos. 2º momento O Analista compreende que, ao descrever, interpreta.

3º momento O Analista compreende porque o autor significa de uma maneira e não de outra

Essa intervenção do Analista, descrevendo/interpretando, lhe impõe algumas restrições. É necessário tentar um deslocamento – porque a neutralidade não é alcançada nunca – para uma posição em que tenha consciência de que a descrição é também um ato de interpretação, do qual não se pode fugir, mas que ele vai tentar fazer isso, com o menor grau de subjetividade possível. Aqui não se pode falar nem mesmo de objetividade, mas de uma pequena pincelada de subjetividade. Para realizar o deslocamento ele precisa usar um

dispositivo teórico que faça essa mediação entre o analista e os objetos simbólicos (o texto, a

fala, a gravura...). Isso quer dizer também que o ato de interpretar, ou mais ainda, o ato de compreender, a atitude compreensiva, se dá no jogo da descrição e da interpretação: a compreensão contém a descrição, contém a interpretação, mas as transcende. E isso tem que

se dar, segundo Orlandi (2005), desde o início da análise até o último momento, num ir e vir constante entre o dispositivo teórico e o texto ou o material simbólico disponível, o tempo inteiro. De fato, o começo da análise é já o ser/estar afetado pelo objeto de estudo ou pelo campo onde o objeto/problema se inscreve.

Assim, descrição e interpretação se condicionam o tempo todo: faz-se a descrição – que é um ato também interpretativo – e este ato interpretativo reconfigura o dispositivo teórico, portanto reorganizando e remodelando a descrição.