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Esse capítulo destina-se a construir um lugar de leitura das monografias, uma perspectiva de análise teórico-epistemológica que marca uma posição possível de leitor/analista na rede de significados onde se entrelaçam os discursos que disputam espaço – por tratar-se de uma tensa e intensa política de sentidos – nos textos produzidos pelos estudantes. Um tal esforço se justifica como uma exigência mesma do problema de investigação, uma vez que estamos tentando dar resposta a uma questão estreitamente ligada ao processo formativo de estudantes de Graduação em Física, a saber, como é que eles significam o teórico e o epistemológico na definição, caracterização e resolução de seus projetos de pesquisa para a monografia de final de curso. Acredito q ue esse enfoque me permitirá obter pistas do processo formativo, conforme apontamos no Capítulo 1, quando colocamos o problema em termos de permanências, ausências e mudanças. Para tentar evidenciar esses aspectos formativos, optamos por trabalhar com idéias de Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, não somente porque ambos são oriundos das ciências empírico-analíticas, mas porque fizeram caminhadas próprias e apropriadas a partir de leituras críticas da história factualista das ciências de base positivista. Além disso, eles também demonstraram em suas obras uma densa implicação com a produção de conhecimento em seus campos de origem. Isso se revela, por exemplo, na preocupação de Bachelard com as bases epistemológicas da formação, quer pedagógica, quer científica, que culminaram no que ele chamou de uma psicanálise do conhecimento, perspectiva que lhe rendeu a elaboração de uma epistemologia da negação, do erro, da ruptura, da descontinuidade, da indeterminação. Por outro lado, as análises sociológicas da história da ciência realizadas por Thomas Kuhn sobre a produção de conhecimento a partir da idéia de existência de uma comunidade científica e suas práticas

coletivizadas de validação e normatização dessa produção, levaram-no aos conceitos de paradigma e de incomensurabilidade entre sistemas de conhecimento. Todos esses elementos se integram na concepção de análise que dá corpo a esse trabalho. Além disso, ambos concordam que, pelo menos a partir de um dado período, notadamente após o advento da teoria da relatividade e da mecânica quântica, os problemas científicos são resolvidos, ou pelo menos abordados, coletivamente, em grandes laboratórios, públicos ou privados, e grandes grupos de pesquisa nas universidades e centros de pesquisa.

Bachelard construiu seu edifício teórico a partir de uma abordagem epistemológica da história das ciências. Kuhn, por seu turno, fez uma crítica à história da ciência desde uma perspectiva sociológica. Embora tenham tomado posições de análise bastante distintas, ambos modificaram irreversivelmente a forma de compreensão da história da ciência. E é a implicação dessas leituras com a idéia (e os processos) de formação que nos interessa.

Gaston Bachelard nasceu em 1884 e teve a felicidade de atravessar a adolescência na virada para o Século XX em companhia da hipótese do quantum de energia, formulada por Max PlanckK (2000a; 2000b) em conexão com o problema de radiação do corpo negro. Essa hipótese produziu desdobramentos de largo alcance na compreensão da matéria e de sua interação com a radiação eletromagnética e fez surgir a mecânica quântica, uma teoria tributária de muitas mentes, mas construída principalmente por Louis de Broglie que trouxe a idéia de atribuir às partículas de matéria – entes espacialmente localizados – uma descrição característica do movimento ondulatório, de ondas, objetos espaço-temporalmente deslocalizados, e produziu um dos mais importantes deslizamento de sentidos do início do Século XX (BACHELARD: 2006, p.204); Niels BohrL que tentou criar um esquema de quantização a partir da órbitas clássicas (PIZA: 2003, p. 12-13) abandonando-o anos mais tarde em favor de uma interpretação probabilística da função de onda; Erwin Schrödinger que lançou a equação diferencial para as ondas de matéria de L. de Broglie; Werner Heisenberg que introduziu uma descrição matricial para as variáveis quânticas; e Paul Dirac que criou uma estrutura conceitual tecnicamente mais robusta, operacional, capaz de conter as descrições de Schrödinger e Heisenberg como casos particulares.

Em 1905, o jovem Bachelard vê surgir uma outra hipótese ousada: a crítica formulada por Albert EinsteinM ao conceito de simultaneidade de eventos, que deu origem ao conceito

de espaço-tempo e à possibilidade de conversão26 massa-energia, idéias centrais na teoria da relatividade e que culminaram no advento da energia nuclear.

Tal como a mecânica quântica, a teoria da relatividade desenvolveu-se rapidamente por cerca de duas décadas e contou com a participação decisiva de cientistas de renome como Arthur EddingtonN, Leopold InfeldO e Hermann MinkowskiP.

A importância dessas teorias em nosso trabalho está nas rupturas ontológicas e epistemológicas que produziram. Edgar Morin (2005b) também acentua a centralidade dessas teorias na grande virada do quadro epistemológico do início do Século XX. Ele assinala que:

(...) houve de início duas brechas no quadro epistemológico da ciência clássica. A brecha microfísica revela a interdependência do sujeito e do objeto, a inserção do acaso no conhecimento, a desreificação da noção de matéria, a irrupção da contradição lógica na descrição empírica; a brecha macrofísica une numa mesma entidade os conceitos até então absolutamente heterogêneos de espaço e de tempo e quebra todos os nossos conceitos a partir do momento em que eles eram transportados para além da velocidade

da luz. (MORIN: 2005b, p.18). (Grifo nosso)

É necessário pontuar que a virada epistemológica de que fala Morin no excerto ac ima não era associada a fenômenos “para além da velocidade da luz”. Ele provavelmente pretendia dizer: “para velocidades próximas à da luz”, porque esta velocidade é um limite superior absoluto no quadro teórico da relatividade. Segundo Hawking e Mlodinow (2005, p.114), “podemos acelerar as partículas até 99,99% da velocidade da luz, mas, por maior que seja a energia de alimentação, não conseguimos que elas ultrapassem a barreira da velocidade da luz”.

Curiosamente, tanto o surgimento da mecânica quântica quanto o da teoria da relatividade podem ser entendidos a partir de uma crítica baseada na idéia de medição. E aqui há uma dupla implicação nesse processo. Primeiro, porque há uma naturalização das variáveis clássicas, assumidas como absolutamente mensuráveis; segundo, porque a medição em mecânica quântica implica uma irreversibilidade assinalada pelo chamado colapso ou redução da função de onda (PRIGOGINE & STENGERS: 1997, p.178-179) que é incompatível com a própria equação de Schrödinger da evolução temporal dos estados. De fato, a redução da função de onda é um postulado útil no processo de medição, mas já há

26 Não se trata simples mente de transformação de massa em energia, mas sim de u ma forma que

ontologicamente não pode ser cindida: não é uma coisa que se transforma em outra é a mes ma coisa em estados diferentes

casos em que se verificou uma quebra dessa prescrição (BRUNE et alli: 1996, apud PIZA: 2003, p.82).

Mas o gênesis do problema de medição, por uma razão bem diversa da supracitada, está lá no âmago da mecânica clássica de Newton. Para a teoria newtoniana, conhecidas as forças que atuam sobre um sistema físico, se as posições e as velocidades das partes desse sistema em um determinado instante são conhecidas, então qualquer estado, seja para um instante anterior ou posterior, isto é, seja no passado, seja no futuro estará completamente determinado (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p.45). Um dos problemas dessa teoria é que não se diz27 como as posições e as velocidades poderiam ser medidas simultaneamente, porque elas são assumidas como totalmente mensuráveis, revelando aqui a perspectiva do realismo ingênuo, no qual “(...) as grandezas construídas pela teoria física correspondem diretamente ao que observamos na natureza, e a que atribuímos diretamente valores numéricos” (PRIGOGINE: 1996, p.140).

É nessa brecha teórico-epistemológica que entra a interpretação de Heisenberg, dizendo que tal determinação simultânea é impossível e demolindo o conceito de trajetória – ligação clássica entre o passado e o futuro –, tão caro ao determinismo. Surge dessa crítica seu famoso princípio de incerteza. Ele enfatiza o caráter experimental desse princípio, trazendo à tona a necessidade de medição dos conceitos próprios da teoria:

Constatou-se que não é possível determinar simultâneamente a posição e a velocidade de uma partícula elementar, com um grau de precisão arbitráriamente fixado. Pode medir-se com grande exactidão a posição, mas então a influência do instrumento de medida dificulta em certo grau o conhecimento da velocidade; e inversamente, dificulta-se o conhecimento da posição ao fazer uma medida exacta da velocidade, de tal modo que a constante de PLANCK constitui um limite inferior do produto das duas imprecisões. (HEISENBERG, 1955, p.29)28

Essa abstração seminal de Heisenberg põe em marcha uma nova perspectiva de compreender os objetos de conhecimento. Bachelard (1996, p.87) enfatiza esses desdobramentos relatando ainda o problema de medida de posição:

27 Este é um traço importante do realismo ingênuo: a med ição é silenciada porque não foi problematizada no

corpo da teoria, no processo mesmo de sua construção. Esse aspecto será retomado na análise das monografias.

28 Co mo a citação foi extraída de u ma tradução portuguesa dos anos 50, foram mantidos os acentos diferenciais

Para encontrar o lugar de um electrão, é preciso clarificá-lo por meio de um fotão. O encontro do fotão e do electrão modifica o lugar do electrão; modifica, aliás, a frequência do fotão. Em microfísica, não há portanto

método de observação sem acção dos processos do método sobre o objecto observado. Há pois uma interferência essencial do método e do objecto.

(BACHELARD: 1996, p.87) (Grifo nosso.)

Na mecânica quântica as quantidades que não podem ser determinadas simultaneamente com precisão arbitrária são chamadas de incompatíveis ou complementares. É este o caso para a posição e a velocidade na citação acima. Todavia, a teoria contém também conjuntos de grandezas que são compatíveis entre si. Cada um desses conjuntos corresponde a uma descrição que tem o maior número possível de informações sobre um sistema físico, informação máxima possível, mas sempre incompleta, porque cada uma das grandezas dentro do conjunto tem o seu complemento em outro conjunto. Esse é um desdobramento importante do princípio de incerteza. E essa impossibilidade de obter a informação plena está associada à idéia bachelardiana de perfil epistemológico (p.126).

A necessidade de falar de medição nos parágrafos precedentes é imperativa, não somente porque deve-se enfatizar o aspecto manifestamente experimental das quantidades associadas à descrição do fenômeno físico, mas principalmente porque para Bachelard a medição é a forma técnico-metodológica de conceber um conceito científico, ato que ele batizou de fenomenotécnica. Ou seja, a medição ou determinação experimental de uma variável está de acordo com a concepção de Bachelard acerca do caráter necessariamente operacional de um conceito científico. Ele diz enfaticamente que “um conceito torna-se científico na proporção em que se torna técnico, em que está acompanhado de uma técnica de realização” (BACHELARD: 1996, p.77).

Vê-se, pois, o quanto as teorias físicas modernas são fundamentais para Bachelard. Ao analisá-las ele construiu alguns dos conceitos mais importantes de sua epistemologia, como a idéia de ruptura, de negação, de obstáculo e retificação, presentes em toda sua obra epistemológica. A centralidade dessas noções na obra de Bachelard fica bem evidente quando ele descreve o advento da teoria da relatividade. Ele evidencia como os desdobramentos do ato de negar a naturalização do conceito de simultaneidade levam à relatividade. Segundo ele:

(...) Ela nasceu de uma reflexão sobre os conceitos iniciais, de um pôr em dúvida ideias evidentes, de um desdobramento funcional das ideias simples. Por exemplo, que há de mais imediato, de mais evidente, de mais simples, que a ideia de simultaneidade? (As carruagens do comboio partem todas simultaneamente e os carris são paralelos: não estaremos perante uma dupla verdade que ilustra ao mesmo tempo as duas ideias primitivas de paralelismo

e de simultaneidade? A Relatividade atacará no entanto a primitividade da ideia de simultaneidade, tal como a Geometria de Lobatchewsky atacou a ideia de paralelismo.) Por uma súbita exigência, o físico contemporâneo pedir-nos-á que associemos à ideia pura de simultaneidade a experiência

que deve provar a simultaneidade de dois acontecimentos. Foi desta

exigência inaudita que nasceu a Relatividade. (BACHELARD: 1996, p.36) (Grifo nosso).

Está em jogo aqui a idéia de negação do conhecimento estabilizado, a necessária operacionalização de um conceito científico, ou seja, a descrição densa de uma forma de medi-lo, e a conseqüente ruptura com uma estrutura de conhecimento que naturalizava os conceitos sem dizer como eles poderiam ser determinados. Bachelard (1996, p.90) explicita essa posição dizendo que “(...) o conhecimento a que falta precisão, ou melhor, o conhecimento que não é apresentado junto com as condições de sua determinação precisa, não é conhecimento científico”. E essa é a essência da idéia de formação em Bachelard.

Além disso, embora essas teorias sejam marcadas por alguns ind ivíduos, elas se desenvolveram ao longo de algumas poucas décadas com a participação/contribuição de muitos cientistas, às vezes de forma colaborativa, outras vezes de forma competitiva; esse cenário vai marcar também a construção coletiva29 de conhecimento a partir do início do Século XX. Essa idéia de teorias construídas por uma comunidade científica em vez de autores isolados é uma das marcas importantes daquilo que Bachelard chamou de novo espírito científico, muito embora a solidão (da criação e da escrita) também seja um momento importante na produção de conhecimento. A AD de linha franco-brasileira também se solidariza com essa noção de comunidade, no contexto discursivo, e põe justamente o cientista medieval, aquele do período pré-científico, em oposição ao cientista moderno e contemporâneo. Aqui são esclarecedoras as palavras de Orlandi (2007c): “O autor científico, na Idade Média, tinha singularidade: a credibilidade de sua produção estava diretamente vinculada a seu nome. Hoje a ciência se faz em laboratórios, em equipes. O autor não é singular” (op. cit. p.140)

Bachelard se beneficiou bastante de ter sido contemporâneo dos desenvolvimentos ulteriores dessas teorias e marcou sua posição como um dos pioneiros na crítica ao método científico pautado na compreensão “empirista-indutivista de produção do conhecimento científico” (GONÇALVES; MARQUES: 1996, p.220). Para ele os papéis do historiador e do

29 Usei a idéia de construção coletiva de conhecimento porque entendo que tanto o colaborador quanto o

epistemólogo se diferenciam basicamente no binômio idéia/fato. Não é bastante dizer que a idéia se liga com as questões epistemológicas e o fato com as questões históricas. Bachelard explicita essa distinção, ao tempo em que aponta para sua importância no quadro teórico que concebeu. É assim, pois que ele traz a noção de contra-pensamento, ou seja, um conjunto de saberes de um dado campo que são usados para explicação/compreensão do mundo, mas que não é capaz de fazê-lo porque tem um erro de origem, a exemplo da experiência primeira. É esse o caso da Mecânica de Aristóteles, que associava diretamente a força com a velocidade, baseando-se apenas na percepção imediata. “De fato, essa observação primeira se apresenta repleta de imagens; é pitoresca, concreta, natural, fácil. Basta descrevê-la para se ficar encantado. Parece que a compreendemos” (BACHELARD: 1996a, p.25). Esse conhecimento (falso), corrigido pelos trabalhos de Galileu Galilei e Isaac Newton, retardou enormemente a evolução da mecânica, porque era assumido como verdadeiro e imobilizava o pensamento do período que Bachelard denominou de pré-científico. Da mesma forma, o pensamento positivo de Newton e contemporâneos imobilizou o pensamento científico europeu e norte-americano por muito tempo, sob o manto do mecanicismo. O período que Bachelard denominou de pré- científico se distingue do mecanicismo Newtoniano não somente pelo advento do racionalismo clássico, mas principalmente porque este último teve um caráter paradigmático, estendendo-se a vários campos do conhecimento. Nesses casos, Bachelard (1996b, p.22) distingue com clareza os papéis das idéias e dos fatos. Segundo ele,

(...) o epistemólogo deve tomar os fatos como se fossem idéias, inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo, é um

obstáculo, um contra-pensamento. (Itálico do original).

Há aqui uma ligação tênue, mas importante, entre o dispositivo teórico e o dispositivo analítico: um fato, como tal, se materializa pela descrição; a descrição, por seu turno, é já em si um gesto de interpretação, de filiação a uma rede de sentidos e significados, inscritos, pela ideologia, na história e na linguagem. Logo, não há fato sem interpretação. Retomaremos essa discussão no Capítulo 5.

Assim, as idéias e os fatos jogam papéis distintos na análise de Bachelard e trazem claramente a centralidade da história em sua obra. Segundo Hilton Japiassú (1979, p.65):

(...) O próprio Bachelard costumava dizer, em seus cursos na Sorbonne, que a epistemologia consistia, no fundo, na história da ciência como ela deveria ser feita. Queria dizer, com isso, que toda reflexão efetiva, capaz de estabelecer o verdadeiro estatuto das ciências formais (lógica e matemática)

e das ciências empírico-formais (ciências físicas, biológicas e sociais), deve ser necessariamente histórica. Contudo, para que esta história possa fornecer uma real inteligibilidade, é preciso que seja regressiva. Quer dizer, para compreendermos uma ciência do passado, devemos nos situar nos pontos de vista ulteriores. (JAPIASSÚ: 1979, p.65)

E foi justamente do fato de ter acompanhado o desenvolvimento histórico da física estatística, da teoria da relatividade e da mecânica quântica que Bachelard elaborou seu projeto epistemológico: a ciência de seu tempo produziu revoluções ontológicas e epistemológicas – com os respectivos desdobramentos metodológicos – que lhe permitiram entrever nas obras do que ele considerou o período pré-científico as noções mais importantes de sua epistemologia. Por isso ele diz com muita convicção que o historiador da ciência tem um papel de epistemólogo, capaz de distinguir “o erro e a verdade, o inerte e o ativo, o prejudicial e o fecundo”, ou seja, “no domínio da história das ciências, é necessário, além de compreender, saber analisar, saber julgar” (BACHELARD: 2006, p.205).