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Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina. Mesmo os próprios cientistas têm haurido essa imagem principalmente no estudo das realizações científicas acabadas, tal como estão registradas nos clássicos e, mais recentemente, nos manuais que cada nova geração utiliza para aprender seu ofício. (KUHN: 2006, p.19).

Essa noção de aprender de acordo com os grandes manuais (livros-textos) não encontra correspondência em autores contemporâneos. E isso porque apenas uma parte do

trabalho institucional, o livro-texto, está sendo evocada. Há todo um trabalho de coerções político-administrativas (como os sistemas de avaliação baseados em “conservar” ou “promover” os alunos) e de práticas pedagógicas (aula expositiva, aulas de campo, exploração e descoberta, etc) que são tão ou mais determinantes que o livro. Maurice Tardif (2000) ao discutir a formação de professores da perspectiva de construção de uma epistemologia da prática docente, por exemplo, acredita que no tocante à formação há uma forte resistência dos formandos em relação aos conhecimentos universitários. “Conseqüentemente, a formação para o magistério tem um pequeno impacto sobre o que pensam, crêem e sentem os alunos antes de começar” (TARDIF: 2000, p.20). Também Villani et alli (1977), analisando as permanências observadas sob a perspectiva do processo de avaliação, põem em evidência a robustez (persistência) das concepções primeiras dos estudantes, desse processo de retenção ou de construção de concepções não científicas, caracterizando um obstáculo epistemológico, isto é, a possibilidade de atravessar todo o processo formativo sem se modificar ou com diferenciações que não bastam para gerar uma ruptura capaz de produzir um conhecimento científico, pois, segundo esses autores “os professores não conseguem perceber que os estudantes, mesmo os que foram aprovados, construíram concepções bem diferentes das científicas. Além disso, os próprios estudantes não tomaram consciência dessa diferença”. (VILLANI et al: 1977, p. 43) Também Bachelard reconhece essa dificuldade quando diz: “(...) acho surpreendente que os professores de ciências, mais do que os outros se possível fosse, não compreendam que alguém não compreenda” (Bachelard: 1996a, p.16).

Isso já responde parcialmente pela permanência de algumas concepções que eles mantêm mesmo depois de passarem pelo processo de formação universitária, evidenciando a robustez da história de vida-formação dos sujeitos. Sobre esse aspecto são esclarecedoras as palavras de Tardif (2000, p.20):

Na verdade, eles terminam sua formação sem terem sido abalados em suas crenças, e são essas crenças que vão se reatualizar no momento de aprenderem a profissão na pratica, crenças essas que serão habitualmente reforçadas pela socialização na função de professor e pelo grupo de trabalho nas escolas, a começar pelos pares, os professores experientes.

Alem de trazer implicitamente as idéias de totalização (parcial) e atualização, esse enunciado revela um traço importante da formação de (sujeitos-)docentes: o papel determinante dos mecanismos de controle institucional – social, portanto – do processo formativo. Tem-se registrado aqui que a socialização na função docente nutre-se das representações do papel de professor, isto é, dos lugares sociais que docentes e não docentes

constroem em seu imaginário. É necessário marcar a atualidade desse fenômeno porque ele corresponde ao mecanismo de antecipação na análise de discurso.

Um traço ainda mais profundo da idéia de vida-formação que desenvolvemos aqui encontra fundamentos em Tardif (2000): os saberes acadêmicos e os saberes de experiências somente se excluem mutuamente na esfera da vigilância racional (e institucional). Na prática, todavia, eles se misturam indissoluvelmente e se influenciam de forma determinante, porque o sujeito do conhecimento é também um sujeito discursivo, isto é, atrelado irremediavelmente às FDs CDs e PDs, aos discursos que lhe permitem – pelo assujeitamento – tornar-se sujeito. Aqui, a partir de uma leitura de Bachelard, Lecourt (1972, p.25) traz um comentário que se integra a esse raciocínio:

«Os cientistas nem sequer professam sempre a filosofia da sua própria ciência». Isto significa que a filosofia dos cientistas é contraditória: para empregar uma expressão de Bachelard, mistura-se aqui uma «filosofia diurna» que é a filosofia evidente da ciência e uma «filosofia nocturna» que é a filosofia dos filósofos, a qual os cientistas recorrem, inevitavelmente, quando reflectem sobre a sua própria prática. Podemos dizer que o cientista mantém uma «relação Imaginária» com a sua prática, e que a filosofia dos filósofos tem o seu papel na constituição" desta relação.

Faz-se necessário aqui, na esperança de uma completeza (e não de completude), ter em mente que as crenças dos cientistas determinam o que será investigado e como será investigado, a exemplo dos trabalhos de Johannes Kepler (KUHN : 2006, p.195), cuja adoração pelo sol levou-o a adotar as idéias de Nicolau Copérnico e buscar as leis do movimento planetário que levam o seu nome.

Um fenômeno recorrente que ilustra essa coexistência de concepções filosóficas e práticas na compreensão do mundo é a idéia de “alvorada” em sua manifestação linguageira. Costuma-se dizer que, apesar dos esforços de Copérnico e Galileu, e das teorias de gravitação de Newton e Einstein nos ajudarem a entender o movimento dos planetas e de seus satélites, “o sol continua nascendo42 todos os dias diante de nossas janelas”, muito embora exista um

enunciado ligeiramente divergente na literatura, devido a Roberto Heineck (1999, p.231), tem-se, ao fim e ao cabo, a mesma estrutura: “(...)não soaria bem ouvir uma pessoa afirmar que o dia inicia com fato de que a Terra está se movendo de oeste para leste, indo de encontro

42 Uma variante bastante conhecida, mas que produz sentidos diversos do enunciado supracitado é o conhecido

aos raios solares. As pessoas dirão apenas que o dia inicia porque o Sol nasce no leste e se põe no oeste.” (Grifo nosso).

Aqui subjaz uma episteme superada há muitos séculos: a noção de que o homem, imagem e semelhança de deus, está, por esse privilégio, no centro do universo e de que sua morada – o planeta terra – seria o centro desse universo, o universo geocêntrico. Isso quer dizer que a batalha entre o conhecimento obtido a partir de experiências e o conhecimento obtido a partir de coerções paradigmáticas (discursivas) ou teórico-metodológicas se arrasta durante toda a vida dos sujeitos. Por isso, trago a idéia de vida-formação ao longo desse texto. Há, porém, razões outras, a exemplo da memória (discursiva), dos conhecimentos prévios, da experiência primeira (primeiro obstáculo epistemológico bachelardiano), do senso comum e do enraizamento cultural, todos constitutivos do sujeito discursivo.

Há registros interessantes desse tipo de batalha na literatura, consoantes com a análise de discurso. Em estudo devido a Bragança (2009) sobre as “histórias e memórias de professoras” todos esses elementos, tanto os institucionais quanto os experienciais, estão refletidos nos saberes docentes implicados na prática educativa, como se pode ver no excerto abaixo:

A reflexão sobre a memória ajuda-nos a perceber que os processos de produção do saber docente não se desprendem da “base”, (...). Esta “base” aponta para um conjunto de saberes produzidos pela professora, saberes que foram articulando experiências vindas de várias dimensões da vida, experiências essencialmente coletivas. E é esta base que a professora percebe como mobilizadora de sua práxis educativa. (BRAGANÇA: 2009, p.5-6.) A memória se liga com a robustez ou persistência dos conhecimentos prévios, das impressões primeiras, do senso comum, do enraizamento cultural. A memória aqui não é somente lembrança, embora o sujeito (enunciador) também dependa dela para se localizar na rede de significações, para ocupar posições na ordem do dizer. Essa memória é também tributária do imaginário.

Essa idéia de vida-formação transversaliza vários campos de investigação, a exemplo do trabalho de Souza (2008), que investigou a formação da identidade profissional a partir das histórias de vida de docentes. Segundo Souza (2008, p.42):

(...) a identidade profissional docente é uma elaboração que perpassa a vida

profissional em diferentes e sucessivas fases, desde a opção pela profissão,

passando pela formação inicial e, de resto, por toda a trajetória profissional do professor, construindo-se com base nas experiências, nas opções, nas práticas, nas continuidades e descontinuidades, tanto no que diz respeito às

representações, como no que se refere ao trabalho concreto, as quais são reveladas nos memoriais acadêmicos e de formação. (SOUZA: 2008, p.42) (Grifo nosso).

Assim como Souza (2008), Bragança (2009, p.2) investiga as histórias de vida de professores, entendendo a formação como um processo que se desenrola ao longo da vida e não apenas no tempo restrito, marcado, da formação inicial institucionalizada. Aqui surgem aspectos interessantes para a AD que escapam do alcance e dos propósitos dessa investigação – marca da abertura própria do simbólico. Particularmente, fala-se da memória dos professores – presentes nas narrativas de si – durante o processo de formação (docente). O que é então esse relato, da perspectiva da autoria? Criação/invenção ou reconstrução/re- significação? Aqui várias dimensões de sujeito são consideradas, (re-)ligando os lugares e as posições dos sujeitos, indo de encontro às dicotomias maniqueístas: professor-aluno, ciência- religião, academia-cultura, individual-coletivo. Ainda segundo Bragança:

A memória e a narração integram esse processo como possibilidade de romper com a linearidade do cotidiano, como interrupção de um tempo “cronológico” e “vazio” e resgate da multiplicidade do tempo e de experiências plenas (...). O sentido da experiência plena é definido pela natureza coletiva de sua construção e a narração como partilha e reconstrução dessas experiências. A formação vai conjugando as múltiplas instâncias de produção dos saberes docentes e possibilitando entrelaçar as experiências do passado e do presente, vislumbrando a construção de projetos de futuro. (BRAGANÇA: 2009, p.3)

De fato, julgo que a idéia de Formação Inicial, desde a perspectiva institucional, seja na Licenciatura, seja no Bacharelado, pode ser entendida como a inserção de um indivíduo em uma Comunidade Discursiva. CD formada, em torno da estabilidade da ciência normal, paradigmática, através da apreensão de práticas discursivas desenvolvidas durante o curso em um elenco de atividades pedagógicas (curriculares) determinadas institucionalmente pelas práticas pedagógicas e pela organização do trabalho pedagógico durante a graduação. Essa idéia está implicitamente presente em Carvalho (2005, p.63):

A nossa proposta de ensino de ciências em geral e de Física em particular é que devemos entender o ensino e aprendizagem das ciências como um processo de enculturação científica, isto é, temos de levar os alunos a entender e a participar da cultura científica fazendo com que eles pratiquem seus valores, suas regras e principalmente as diversas linguagens das ciências. (CARVALHO: 2005, p.63) (Grifo nosso)

Note-se que esse texto de Carvalho (2005) está completamente imerso no discurso pedagógico formalista, porque pensa na transmissão de um saber ser cientista, isto é, de assujeitar estudantes ao discurso hegemônico de ciência, pela enculturação, indo de encontro aos percursos de vida-formação dos sujeitos. Essa perspectiva pedagógica também se encontra em Fontana43 (2000, p.229), quando diz que os professores procuram “controlar os sentidos que se produzem na relação de ensino”, pela “determinação da perspectiva de onde devem ser vistos e ditos os fatos” apresentados aos alunos na sala de aula. Esse é um efeito ideológico compreensível dentro da AD, a partir da noção de comunidade discursiva, e da noção kuhniana de paradigma, este último em estreita relação com a formação inicial (docente). Aqui aparecem também os conceitos de repetição (Orlandi: 2007a, p.54; 2007c, p.140) e apagamento (confundir-se com, apropriar-se de) (ORLANDI: 2007b, p.140), e o esquecimento nº 1 (ou ideológico), da instância do inconsciente, que dá ao indivíduo a ilusão de ser a origem do dizer (ORLANDI: 2007a, p.35). Fontana (2000) traz esses conceitos em estreita relação com o trabalho docente:

(...) nós professores, a pretexto de expormos um saber, propomos um discurso que, raramente, é organizado por nós, a despeito de o assumirmos como nosso. Conforme analisa Eni Orlandi, pela posição que ocupamos na instituição escolar, nos apropriamos “do cientista e nos confundimos com ele” (...), sem explicitar nossa voz de mediadores. Por meio dessa estratégia, da qual raramente nos apercebemos, a voz do saber legitimado fala em nós e como tal, o que informamos se apresenta como de interesse e utilidade por si mesmo. (FONTANA, 2000, p.229).

Orlandi também discute essa apropriação como efeito do dispositivo ideológico de interpretação – caso o leitor/analista não construa um dispositivo teórico (um lugar) de interpretação – porque assim “o gesto de interpretação vem carregado de uma memória que no entanto aparece negada, como se o sentido surgisse ali mesmo” (ORLANDI: 2007, p.141).

Para sair dos arremates, observe-se na citação abaixo como os conceitos de obstáculo, formação, paradigma, comunidades e práticas discursivas podem estar tão próximos:

The mind tends to stabilize itself confidently when working inside a system of knowledge such as Newtonianism, but it needs intellectual supervision by itself and by those minds of other scientists (‘la surveillance intellectuelle de soi’) to be constantly prompted into becoming ever dialectical (the

‘philosophy of no’)44.(CASTELÃO-LAWLESS: 2000, p.880). (aspas do

original).

A palavra stabilize tanto pode significar obstáculo (contra-pensamento) quanto inserção do sujeito em um conjunto de FDs (formação). Newtonianism é tanto um paradigma quanto uma corrente teórico-epistemológica, um referente para a interpretação, para a estabilização ou imobilização de sentidos. Supervision liga-se com o sujeito (autocrítica), com suas práticas de controle da interpretação e com outros cientistas (intercrítica; comunidades discursivas), mas deixa-se uma brecha para os vazamentos para as derivas, para a deformação e a atualização dos conceitos, para a atualização do próprio sujeito discursivo porque ever dialectical. Ou seja: porque “o sentido sempre pode ser outro” (ANDRADE; MARTINS: 2006, p.149).

44 A mente tende a se estabilizar confiante (em si mes ma) quando trabalha no interior de u m sistema de

conhecimento tal como o Newtoniano, mas ela precisa de supervisão intelectual por si mesma e pelas mentes de outros cientistas (a vigilância intelectual de si) para ser constantemente induzida a tornar-se sempre d ialética (a ‘filosofia do não’).”