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O idoso segundo o discurso legal

No documento Estudos Linguísticos (páginas 94-97)

AN OLD-AGED DISCOURSE ANALYSIS SINCE THE ELDERLY STATUTE

2. O idoso segundo o discurso legal

É importante mencionar que nos documentos oficiais publicados anteriormente à década de 60, as pessoas com 60 anos ou mais eram chamadas simplesmente de

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“velhas”. Entretanto, a velhice, muito frequentemente, surgia associada à decadência e/ou incapacidade para o trabalho, ocasionando, com o passar do tempo, a adoção de um termo menos esteriotipado para designar as pessoas de idade avançada, o que indica que a questão da velhice sofre, discursivamente, uma censura – é silenciada, interditada (ORLANDI, 2007) pela substituição de um termo mais severo, por um eufemismo, embora permaneça sub-repticiamente a mesma conotação negativa e exclusora.

A partir da década de 60, o termo “idoso”, passou a ser adotado oficialmente, para referir-se à população maior de 60 anos. Embora a intenção fosse a utilização de um termo mais respeitoso, na realidade, o que houve foi a simples troca de rótulos, portanto, o caráter pejorativo permanece como interdito, mas atua fortemente nos discursos sobre o idoso. Os problemas continuavam os mesmos e os “problemas dos velhos” passaram a ser encarados como “necessidades dos idosos” (BARROS, 1998, p.74). Também é curioso observar que o referido Estatuto surgiu somente em 2003, muito embora, em 1988, o art. 230, da Constituição Federal de 1988, já tivesse atribuído à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas.

O que justificaria o decurso de quinze anos para, só então, proceder-se à criação de uma lei regulamentadora do referido dispositivo constitucional e que revisasse, com maior profundidade o dizer sobre o idoso, promovendo deslocamentos de posições discursivas sobre a velhice? Tal fato parece encontrar justificativa no progressivo e considerável aumento da expectativa de vida dos brasileiros e também na abertura que tal aspecto promove na própria concepção de idoso – ou seja, modificaram-se as condições de produção do discurso sobre o idoso.

Dados do IBGE demonstram que, há 10 anos, o número de idosos no Brasil era de 14,5 milhões (8% da população nacional), contra 18 milhões (12% da população nacional) apurados no Censo de 2010. Portanto, não restam dúvidas de que o “Brasil está envelhecendo” e, em consequência, reclama políticas públicas para os idosos. Não se pode perder de vista que a sociedade brasileira segue um modelo calcado em uma formação ideológica capitalista, na qual o valor está do lado do ser humano economicamente ativo. Em contrapartida, desprestigia o inativo (assim nomeado, preconceituosamente), o aposentado e acaba por promover a marginalização dessas categorias (FERREIRA; SANTOS, 1979). Como poderá o idoso, nessas condições, exercer a cidadania?

Ou seja, verifica-se um duplo movimento aqui – de um lado a longevidade promove uma mudança nas condições de vida do idoso e, consequentemente, nas condições de produção do discurso sobre o idoso; de outro, o enraizamento dos discursos

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sobre o idoso em uma formação ideológica capitalista são responsáveis pela manutenção de antigas condições de produção do discurso do idoso. De uma ou de outra forma, entre o silêncio que não diz discursivamente o direito do idoso e o silenciamento discursivo que oblitera a sua condição, agem para causar uma tensão no próprio discurso legal sobre a velhice. Portanto, a referida Lei, enquanto materialização do esforço de políticos, segmentos organizados da sociedade e especialistas, na tentativa de garantir uma vida digna à população idosa de nosso País e possibilitar o exercício da cidadania, é parte integrante de um conjunto de práticas discursivas que dotam a velhice de significação a partir de formações imaginárias que se cristalizam em formações discursivas arraigadas socialmente.

No meio jurídico adota-se o critério cronológico para designar a pessoa idosa. Assim, o Estatuto do Idoso considera como idosa a pessoa a partir dos 60 anos de idade, muito embora alguns direitos só lhe sejam conferidos a partir dos 65 anos. Além disso, apesar de trazer em seu bojo normas e diretrizes para a elaboração e execução de políticas sociais e serviços destinados aos idosos, o Estatuto ora apresenta o idoso como um cidadão apto para as diversas atividades sociais, ora o apresenta como um ser frágil, carente, inválido e dependente.

Isso porque, apesar de o discurso jurídico ser marcado pelo caráter dogmático e ter uma pretensão de isenção, sabemos com Authier que não há transparência, mas opacidade (AUTHIER-REVUZ, 2004), portanto, não há como negar que a velhice é percebida, sentida e vivenciada das mais diversas maneiras, pois, cada pessoa é um ser único e especial, marcado por condições psíquicas, biológicas e sociais que lhes são próprias e cada ser ou grupo é dito de um modo peculiar pelo(s) discurso(s) do Outro.

Aqui é importante salientar que a noção de formação discursiva é indissociável da noção de discurso. Foucault (1997, p.35) define formação discursiva como sendo “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço e que definem em cada época dada e para cada área social e econômica, geográfica ou lingüística dada as condições do exercício da função enunciativa”. Ou seja, estão presentes na formação discursiva as condições histórico-sociais, englobando todo um conjunto de valores e ideologias, a partir do qual o discurso sobre a velhice se manifesta em um espaço discursivo determinado, in casu, no contexto jurídico nacional.

Nesse contexto, algumas questões merecerem ser respondidas. Quem é e como vive o idoso brasileiro nos dias atuais? Quais são suas necessidades básicas e como o Estado pretende supri-las? Qual seria o sistema de representações criado pelo Estado através da norma jurídica para referir-se ao idoso? A nosso ver a relevância dessa

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discussão reside na possibilidade de, sob a perspectiva da AD, analisar os processos discursivos e as condições de possibilidades do discurso jurídico sobre a velhice.

Considerando-se que a referida Lei é parte integrante de um conjunto de práticas discursivas que dotam a velhice de significação a partir de formações imaginárias deve-se procurar identificar, por meio da análise do interdiscurso que permeia cada título, capítulo e artigo da referida Lei, as diversas formas de representação da velhice. Tendo por base a assertiva de que a velhice é uma questão social, sendo a exclusão do idoso decorrente de ideologias, dos preconceitos internalizados e expressos na nossa sociedade, assim como dos fatores econômicos (CASTRO, 1998:18), por isso, como decorrência será possível apontar mecanismos para a aferição da medida em que a construção de uma determinada imagem da velhice é capaz possibilitar a inclusão ou a exclusão do idoso no seio da sociedade.

Foi Michel Pêcheux quem, na década de sessenta, fez surgir a AD, concebendo o estudo da linguagem sob um novo prisma. A partir de Pêcheux o estudo da linguagem passou a ser realizado de forma totalmente vinculada às suas condições de produção, ou seja, levando-se em consideração os processos históricos e sociais subjacentes à linguagem. De acordo com as palavras da Dra. Maria Cristina Leandro Ferreira, “A AD nos permite trabalhar em busca dos processos de produção do sentido e de suas determinações histórico-sociais” (FERREIRA, 2001: 11). Assim, a análise dos artigos do Estatuto do Idoso considerará o sujeito, a história e a linguagem, sempre atentando para as condições de produção do referido instrumento normativo.

A AD entende que o sentido de um discurso está nas relações que este mantém com outros discursos. Nesse sentido, as diversas formas de representação da velhice presentes no Estatuto evidenciam o interdiscurso que permeia cada título, capítulo e artigo da Lei, pois, a Lei n° 10.741, isso porque:

[...] todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço (PÊCHEUX, 1997).

No documento Estudos Linguísticos (páginas 94-97)