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CAPÍTULO 9 O CASO “URSO BRANCO”

9.3 Importância do caso

O caso da Penitenciária Urso Branco – Carcel de Urso Branco – é importante não só por ser o primeiro caso brasileiro submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também por firmar na doutrina e na jurisprudência a necessidade de desenvolvimento do regime jurídico das obrigações

erga omnes de proteção da pessoa humana, tanto na dimensão vertical – Estado x

indivíduo – quanto na horizontal – indivíduo x indivíduo.

O caso em si, notório pelos muitos relatórios enviados à Corte pelas autoridades brasileiras se comprometendo a solucionar o caso, revela, no plano internacional, uma característica já bem sedimentada do Estado brasileiro que é a manifestação efusiva no sentido de dar solução a um problema, sem contudo enfrentá-lo. No caso da violência, seja na Urso Branco ou nas ruas das grandes cidades brasileiras, a retórica substitui a ação. Muitas considerações, palavras, mas ausente a efetividade esperada. No caso em análise, o Estado, em sua defesa, prima por duas linhas, ambas superadas: a organização federal do Estado e o fato de terceiro.

Quanto à estrutura federal do Estado, o Professor A. A. Cançado Trindade adverte (item 15 do voto concorrente) que há uma “jurisprudência centenária” no sentido de que “um Estado não pode alegar sua estrutura federal para deixar de cumprir uma obrigação internacional”, devendo cumpri-la “independentemente de sua estrutura federal ou unitária”.

Quanto ao fato de terceiro, alegou o Estado brasileiro que as violações dos direitos humanos na Penitenciária Urso Branco se deu em razão da ação de presos contra presos e não à ação de seus prepostos.

Como se observa, o Estado aqui está preso às limitações do ordenamento jurídico interno, cujos ditames não se impõem à Corte. A responsabilidade interna do Estado brasileiro é muito acanhada em relação à sua responsabilidade internacional pela violação dos direitos humanos, advinda da Convenção Americana. Nesse ponto o Professor A. A. Cançado Trindade foi categórico: “O Estado tem o dever iniludível de proteção erga omnes, ainda que nas relações inter-individuais, porquanto vítimas e algozes se encontram sob sua custódia” (item 9 de voto concorrente).

Em resumo, em todo e qualquer circunstância se impõe a obrigação da devida diligência por parte do Estado, para evitar danos irreparáveis a pessoas sob sua jurisdição e sua custódia.

De outra feita, como salientado no início deste tópico, o caso Penitenciária Urso Branco é também importante por reafirmar a necessidade de desenvolvimento do regime jurídico das obrigações erga omnes de proteção da pessoa humana, tanto na dimensão vertical, quanto horizontal.

Como bem salienta A. A. Cançado Trindade, as medidas provisionais de proteção adotadas tanto no caso Carcel de Urso Branco, quanto no caso das Comunidades del Jiguamiandó y del Curbarado, com base no artigo 63(2) da Convenção Americana, contribuem para a formação gradual de um verdadeiro direito de assistência humanitária. Nesse novo Jus Gentium, o exercício do direito emerge da necessidade à assistência humanitária e não no potencial de ação dos agentes materialmente capacitados a prestá-la. Adverte o Professor A. A. Cançado Trindade que o fundamento último de exercício desse direito reside na dignidade inerente à toda pessoa humana: “os seres humanos são efetivamente os titulares dos direitos protegidos, assim como do próprio direito à assistência humanitária, nas situações de vulnerabilidade e sofrimento em que se encontram – sobretudo em situações de pobreza, violência crônica, insalubridade e marginalização social, e quiçá de brutalização – realçam a necessidade (de desenvolvimento) das obrigações

erga omnes de proteção dos direitos que lhes são inerentes”. E conclui o Professor

que o fenômeno atual da expansão da personalidade e capacidade jurídica internacional da pessoa humana responde, como se desprende dos recentes casos submetidos à Corte atinentes a membros de coletividades humanas, a uma

necessidade premente da comunidade internacional de nossos dias. Em fim, o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial das obrigações erga omnes de proteção da pessoa humana, em toda e qualquer situação ou circunstância, certamente contribuirá para a formação de uma verdadeira ordre public

CONCLUSÃO

Em conclusão ao trabalho, observa-se que a tese da obrigação geral de garantia – obrigações erga omnes – por parte do Estado em relação a todos que se encontram sob sua jurisdição é vitoriosa na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte pontifica que o descumprimento de tal obrigação gera a responsabilidade objetiva do Estado, já que a mesma, emanada do jus cogens, engloba a todos os destinatários das normas jurídicas (omnes), tanto integrantes do poder público, quanto particulares em suas relações privadas.

Quanto custa a violência no Brasil?

A esta indagação, segue-se outra: Quem é o responsável pela violência no Brasil?

As respostas poderiam ser singelas ou não. No presente trabalho, optou-se por buscar uma resposta no âmbito de proteção internacional dos Direitos Humanos, inserida no contexto do papel do Estado Moderno, na crise do Estado atual e em um novo conceito de cidadania (Capítulo I). Nesse contexto, apesar de enfraquecimento dos Estados no plano internacional frente a supremacia e unipolarismo dos USA, destacou-se que os Estados ainda cabem suas funções históricas, dentre as quais e de responsabilizar-se perante as pessoas que estejam sob sua jurisdição.

Nessa linha de raciocínio, tecem-se rápidas considerações acerca da responsabilidade civil e da responsabilidade internacional do estado, que é a que interessa ao trabalho, esta passou por longa evolução doutrinária, indo da irresponsabilidade estatal até a responsabilidade sem culpa, objetiva, baseada no risco administrativo. Essa responsabilidade, porém, é somente a aquiliana, derivada de ato ilícito e não a contratual, pactuada pelas partes. Portanto, os dois campos se distinguem: o da responsabilidade por ato ilícito e o da responsabilidade contratual (Capítulo II).

Ambas as responsabilidades, porém, são próprias do âmbito interno de cada Estado. No âmbito internacional, a responsabilidade do Estado pressupõe uma ação ou inação infringente de uma obrigação internacional imediatamente para com outro Estado, ou mediatamente para com pessoa sob sua proteção, e imputável a órgão ou agente infrator. Pressupõe a infringência de uma obrigação, naturalmente derivada de um tratado internacional ou norma internacional.

ter a mesma natureza jurídica dos contratos de direito privado. Entretanto, como bem acentuou o Professor Cachapuz (item 3.2), se “quase todos os Estados demonstram interesse na aplicação de uma regra, inserida em convenção multilateral, e agem de acordo com ela, há clara presunção de que a regra tenha tornado costume internacional mesmo que a convenção não tenha sido ratificada”.

Conclui-se que a doutrina mais numerosa sustenta haver diferença de natureza jurídica entre tratados internacionais, sendo uns considerados contratos e os outros considerados normas de caráter geral, lei.

Na última categoria, na de norma geral, lei, é que se insere os tratados internacionais de Direitos Humanos, se não como regra legislada, pelo menos como norma consuetudinária (Cachapuz, 1995), entendimento que é endossado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Capítulo III).

Nessa categoria é que se inserem as obrigações derivadas da Convenção Americana de Direitos Humanos, assumidas pelo Brasil, cujas violações, por omissão do Estado, principalmente no que tange ao direito à vida (art.4º), faz surgir a responsabilidade estatal, seja ou não o agente violador estatal. Nesse sentido é a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como no Caso Godínez Cruz x Honduras, onde ficou assentado que o Estado responde por um ato ilícito violatório dos direitos humanos mesmo que inicialmente não resulta imputável diretamente a este, por exemplo, por ser obra de particular, ou por não haver-se identificado o autor de delito, mas sim por falta de diligência para prevenir a violência ou para tratá-la nos termos da Convenção. Assim também reconheceu a Corte no Caso Paniágua Morales x Guatemala onde ficou pontificado que a impunidade criminal dos infratores ofende os direitos humanos das vítimas (Capítulo V).

No caso interno, os direitos humanos integraram todas as Constituições brasileiras (Capítulo V), sendo também institucionalmente violadas. A partir da Constituição de 1988 os direitos humanos ganharam extraordinária referência, passando o Brasil desde então a adotar vários instrumentos internacionais de proteção. Entretanto, a violação destes principalmente do direito a vida, continuou-se dando cotidianamente. No Brasil a cada dia 110 pessoas são assassinadas, 40.000 são mortas por ano e 650.000 foram mortas de 1979 a 1989. A violência custa 10% do PIB brasileiro, ou seja: 112 bilhões de reais por ano (Capítulo VI).

O Estado brasileiro é responsável pela violência interna que vitima as pessoas sob sua jurisdição. Está obrigado a indenizar. Segundo a jurisprudência da

Corte a responsabilidade do Estado existe quer seja em razão de leis violadoras do Convenção Americana, quer seja por sentença judicial violadora, quer seja por ato administrativo violador (Capítulo VII).

Havendo violação e conseqüente responsabilidade, há o dever de indenizar (Capítulo VIII). As indenizações consistem em reparações variadas, segundo a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além da obrigação de restituição na íntegra (obrigação de fazer, como a soltura de um preso – Caso Tamayo), há ainda indenização por dano material, dano moral, obrigação de editar ou alterar lei interna (Caso Suaréz Rosero), obrigação de punir os responsáveis pelas violações (Caso Velásquez Rodriguez), até a obrigação de tornar nulo processo judicial (Caso Cesti Hurtado).

A jurisprudência da Corte sinaliza no sentido de que está havendo um alargamento do sentido das reparações e de quem seja beneficiário. Nos casos em que as sentenças impuseram obrigações de construir posto médico, editar ou alterar a lei interna, punir os responsáveis pelas violações, com certeza, as reparações dessa ordem, transcendem em muito os aspectos pecuniários e individuais, atingindo positivamente a coletividade. Tais obrigações se revestem de cunho eminentemente social, com o interesse público suplantando o individual.

As formas de execução das reparações determinadas pela Corte são: trata- se o inadimplemento da obrigação como nova violação da Convenção – art. 68.1; pressão moral, representada pela inclusão do Estado recalcitrante no relatório que a Corte submete à consideração de Assembléia Geral da OEA; execução pelo procedimento interno adotado nos casos de sentenças prolatadas contra o Estado – art. 68.2 da Convenção; e nos casos de obrigações de fazer, não fazer e entrega de coisa certa, por analogia com o procedimento adotado para as indenizações compensatórias, o processo interno próprio para execução dessas obrigações.

No caso do Brasil, havendo omissão em implementar a sentença da Corte, cabe recurso ao Poder Judiciário, com legitimidade processual ativa da vítima ou seus dependentes e do Ministério Público.

Nesse ponto, quanto ao adimplemento de obrigações emanadas de sentença da Corte, é importante notar o Caso Urso Branco x Brasil, principalmente o voto concorrente do Juiz brasileiro A.A. Cançado Trindade à sentença determinando medidas provisionais a serem cumpridas pelo Brasil, datada de 07.07.2004, no qual discorre sobre a necessidade de desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do

regime jurídico das obrigações erga omnes de proteção da pessoa humana, amparadas na Convenção Americana, conforme seu art. 1(1), cujo mecanismo de aplicação consiste nos métodos de supervisão do exercício da garantia coletiva dos direitos protegidos, previstos nos tratados de direitos humanos. Referidas medidas provisionais de proteção são acionadas para proteger coletivamente os membros de toda comunidade, embora a base de ação seja a lesão, ou probabilidade de lesão, a direitos individuais.

Com efeito, a obrigação geral de garantia abrange a aplicação das chamadas medidas provisionais de proteção que migraram do direito processual civil para o Direito Internacional Público e daí para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em cujo universo conceitual passaram a salvaguardar mais que a eficácia da função jurisdicional da Corte, os próprios direitos fundamentais da pessoa humana, revestindo-se de caráter verdadeiramente tutelar.

O consagrado Juiz e Professor Cançado Trindade, após mencionar jurisprudência da Corte em que aludidas obrigações erga omnes foram adotas – Caso Las Palmeras, Caso Comunidade de Paz de San José Apartado, Caso Comunidades del Jiguamiandó y del Curbaradó e Opinião Consultiva sobre a condição jurídica dos Imigrantes Indocumentados – pontifica, em síntese, nos seus votos concorrentes, que a obrigação geral de garantia por parte do Estado não se limita às relações destes com as pessoas sob sua jurisdição, mas também, em determinadas circunstâncias, se estende às relações entre particulares. Descumprindo tais obrigações, a responsabilidade objetiva do Estado é inelutável, pois as mesmas, emanadas dos jus cogens, englobam a todos os destinatários das normas jurídicas (omnes), tanto integrantes do poder público, quanto particulares em suas relações inter-individuais.

Finalizando, sobre o Caso Urso Branco, o Professor Cançado Trindade enfatizou que não pode o Estado brasileiro eximir-se da responsabilidade pelas violações dos direitos humanos (direito à vida e à integridade pessoal) alegando que os atos de violência que originaram ditas violações forma perpetradas por algumas pessoas presas contra outros presos. O Estado tem o dever inelutável de proteção

erga omnes, de obrigação geral de garantia, mesmo que nas relações inter-

individuais, porquanto vítima e algozes se encontram sob sua custódia.

Isto serve para quaisquer das comunidades brasileiras, assoladas pela violência, que produz 40.000 mortos por ano e dá 10% do PIB – 112 bilhões de reais

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