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CAPÍTULO 3 A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO

3.2 Natureza jurídica dos tratados internacionais

Nós nos propusemos, no início, a falar da responsabilidade do Estado Brasileiro em face de sua omissão em dar segurança a seus nacionais frente à elevada criminalidade interna. Para exame da questão, impõe-se saber qual a natureza jurídica dessa obrigação assumida pelo Estado.

Como sabemos, o dever de dar segurança aos seus nacionais, a par de constituir razão primeira da criação do estado moderno, está inserido como

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MAÑERO, Rosário Besné. El crimen internacional – nuevos aspectos de la responsabilidad internacional de los estados. Universidad de Deusto, Bilbao, 1999, p. 19.

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Idem, p. 43. 38

FERNANDES, Raul. A responsabilidade dos Estados em Direito Internacional. Revista Forense, Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1953.

obrigação assumida em tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. É necessário, pois, definir a natureza jurídica dessas categorias normativas. Para o Professor Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros39 a “doutrina tradicional sustenta que os tratados, a exemplo dos contratos de Direito Privado, só produzem efeitos entre as partes contratantes”. Já Hildebrando Accioly40 diz que os ajustes internacionais “são atos jurídicos por meio dos quais se manifesta o acordo de vontades de dois ou mais Estados”, sendo “comparáveis aos contratos de direito civil”. Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet41 definem tratado como “... qualquer acordo concluído entre dois ou mais sujeitos de direito internacional, destinado a produzir efeitos de direito e regulado pelo direito internacional”. No mesmo sentido é a definição expressa no art. 2.º, § 1-a, da Convenção de Viena de 1969 sobre o direito dos tratados, a qual exprime que “a expressão ‘tratado’ designa um acordo internacional, concluído por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, quer esteja consignado num instrumento único, quer em dois ou vários instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua denominação particular.”42 Para a Professora Flávia Piovesan43 os tratados internacionais “são acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculados (pacta sunt servanda)”, constituindo a principal fonte de obrigações do Direito Internacional.

Ao que parece, há certo consenso em torno da idéia de que os tratados internacionais efetivamente têm natureza contratual. Todos os elementos contidos nas definições levam a esse entendimento. Com efeito, contrato é o acordo de duas ou mais vontades, que objetiva produzir efeitos jurídicos,44 ou na definição romana

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CACHAPUZ, Antônio Paulo de Medeiros. O poder de celebrar tratados. Porto Alegre : Sérgio Antônio Fabris, 1995, pp. 194-195. O Professor Cachapuz, em seqüência, afirma que modernamente, “os Estados aceitam, portanto, a intervenção de uma terceira vontade na formação dos tratados multilaterais, vontade essa pertencente a um sujeito do Direito Internacional que não será parte na convenção”, referindo-se às organizações internacionais.

40

ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro, 1956, 2.ª ed., p. 543. O autor fundamenta seu ponto de vista em Kelsen, o qual, sobre os tratados assinala: “é um acordo de vontades de dois ou mais sujeitos”, sendo que “as vontades ou antes, as manifestações de vontades dos sujeitos que concluem a convenção devem aparecer dirigidos para o mesmo objeto (“La théorie juridique de la convention”, Archives de Philosophie au Droit et Sociologie juridique X, 1940, p. 371”.

41

Droit Internacional Public, 4.ª ed., Librairie Genérale de Droit et Jurisprudence, E.J.A., Paris, 1992, p. 107. 42

Segundo Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, a fórmula foi mantida “sem prejuízo das necessárias adaptações, para os tratados concluídos entre Estados e organizações internacionais ou entre organizações internacionais” entre si, na Convenção de 1986 (ob. Cit. p. 109).

43

PIOVESAN, 2000, p. 65. 44

de Ulpiano: est pactio duorim pluriunve in idem placitum consensus.45.Tem como elementos constitutivos a vontade manifestada através de declaração, a idoneidade do objeto, a forma, quando da substância do ato, e elementos extrínsecos como a capacidade e a legitimidade das partes, objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei.46 É regido pelos princípios da autonomia da vontade, da relatividade das convenções e da força vinculante dos contratos47 (pacta sunt servanda).

A pluralidade de partes se situa ordinariamente em posições antagônicas. Mas às vezes admite forma de conjunção de esforços para um objetivo comum, ou seja, os interesses das partes se mostram paralelos, desse modo as mesmas apenas se obrigam mutuamente a combinar seus esforços ou recursos para lograr fim comum. Tal é o que ocorre, por exemplo, no contrato de sociedade.

Nessas condições já se poderia afirmar que os tratados internacionais, pelos seus requisitos, têm a mesma natureza jurídica dos contratos de Direito Privado. Isto, porém, não ocorre, pois, desde há muito a doutrina tem percebido diferenças entre os tratados internacionais, quanto à sua natureza jurídica. Hildebrando Accioly48 assinala que, sob este aspecto certos autores admitem duas categorias de tratados: tratados-contratos e tratados-leis. Sobre os primeiros, diz destinarem-se a regular interesses recíprocos e concessões mútuas dos Estados e têm aparência de contratos. Seus signatários são poucos e seus efeitos são essencialmente subjetivos. Já os últimos, os tratados-leis, não têm absolutamente por contra-parte prestações recíprocas, são geralmente multilaterais, resultam de um acordo de vontades no mesmo sentido, estabelecem regras objetivas e têm por fim fixar normas de direito internacional comparadas às leis. O Professor Gerson de Brito M. Bóson,49 da PUC/MG, em nota de rodapé, assinala que os “alemães indicam com palavras distintas as duas espécies de tratados: Vertrag (contrato) e Vereinbarung (tratado-lei). Acentua também que M. Sibert condena essa distinção e o emprego da

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É o mútuo consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto. Pothier, citado por Sílvio Rodrigues (1983, p. 10), ensina: “un contrat est une espécie de convention. Pour savoir ce que c’est qu’un contrat, il est donc prealable de savoir ce que c’est une convencion. Une convention est le consentement de deux ou plusieurs personeses, pour forma ente elles quelque engagement ou pour em resondre um précédent, ou por le modifier:

Duorum vel pluriun in idem placitun consensus ... (Traité des Obligations, n.º 8, in Ouvres Complétes de Pothier,

ed. Depelafal, Paris, 1835, vol I). ” 46 RODRIGUES, 1983, 3.º vol., p. 13. 47 Idem. p. 15. 48 ACCIOLY, 1956, pp. 551-552. 49

palavra tratado-lei. Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, sobre o assunto, enfatizam que a distinção entre tratados-leis e tratados-contratos é clássica e uma das mais controversas, possuindo interesse histórico e sociológico, mas não possui qualquer alcance jurídico, vez que “não existe um regime jurídico próprio para cada uma destas categorias de tratados.” Terminam por indagar: “como poderia ser de outro modo, se um mesmo tratado pode ter um caráter misto, ser um amálgama de disposições dos dois tipos?”.

Em seqüência, porém, minimizando a crueza da assertiva e o desafio da indagação, comentam que a distinção tem utilidade em matéria de interpretação das convenções, citando parecer sobre reservas à Convenção sobre Genocídio, rec. De 1951 e sentença arbitral de 17 de julho de 1986, proferida no processo franco- canadense do Filatage dans le golfe de Saint Laurent, do qual trazem um tópico que nos penitenciamos em transcrever:

Porém, assistimos a um ressurgimento desta velha distinção no caso dos tratados de caráter humanitário a propósito dos quais o art. 60.º, parágrafo 5.º, da Convenção de Viena de 1969 esclarece que não se lhe pode por termo ou que a sua aplicação não pode suspender-se invocando como pretexto a violação substancial pela outra parte. As jurisdições internacionais têm, de resto, acentuado o caráter particular dos tratados relativos à proteção dos direitos do homem (cf. T. I. J., parecer supracitado de 1951; Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, acórdão de 11 de janeiro de 1961 (Áustria c. Itália)), Rec. 7 p. 23 ou Tribunal Interamericano dos Direitos do Homem, parecer consultivo de 24 de setembro de 1982 acerca dos Efeitos das reservas sobre a entrada em vigor da Convenção Interamericana, I. L. M, 1983, 37).50

O Professor Cachapuz,51 estribado em doutrina internacional que cita, afirma que modernamente os Estados, nos tratados multilaterais elaborados mediante intervenção de organismos internacionais, tem sua liberdade limitada para aceitar ou não as obrigações emergentes de tratados coletivos. E por outro lado enuncia que, devido a proliferação de convenções destinadas a codificar certas partes dos Direitos das Gentes, juristas de nomeada e doutrina passaram a defender a existência de regras consuetudinárias. Após, menciona nesse sentido, a Convenção

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DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER Patrick e PELLET Alain. Direito Internacional Público, trad. De Vítor Marques Coelho, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999, p. 111.

51

CACHAPUZ, 1995, p. 194-197. Sobre o tema, o Professor Cachapuz, em nota de rodapé cita Richard R. Baxter e Louis B. Sohn que adotam este ponto de vista, enquanto Ian Sinclair discorda, pois acha que “uma convenção codificadora não ratificada apresenta sintomas de fracasso nas negociações e como tal deve ser reconhecida” (Idem, p. 197).

sobre Direitos e Deveres dos Estados, adotada pela Sétima Conferência Internacional Americana, de 26 de dezembro de 1933; sentença da Corte Internacional de Justiça, no caso da plataforma do Mar do Norte, de 1969; e parecer da mesma Corte sobre as conseqüências jurídicas da presença contínua da África do Sul na Namíbia, de 1971, conclui que, se “quase todos os Estados demonstram interesse na aplicação de uma regra, inserida em convenção multilateral, e agem de acordo com ela, há clara presunção de que a regra tenha se tornado costume internacional mesmo que a convenção não tenha sido ratificada.”

Pelo visto, a doutrina mais numerosa sustenta haver diferença de natureza jurídica entre os tratados internacionais, dadas as particularidades de cada qual. Admite que inúmeros deles têm efeitos semelhantes às regras jurídicas de caráter geral, mesmo que consuetudinárias. Há, portanto, tratado que é um contrato, com características de Direito Privado, e tratado que é norma geral, lei.

Consoante nossos objetivos, queremos saber a que natureza jurídica pertencem os tratados de Direitos Humanos.