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Os pesquisadores da área entendem que a primeira facção criminosa surgida no Brasil foi o Comando Vermelho (CV), no estado do Rio de Janeiro. Sua origem remonta ao final da década de 1970, mais especificamente em 1979, mas com atuação visível na década de 1980, e teria ocorrido em decorrência da convivência de presos comuns com os presos

89 Para mais informações sobre algumas questões socioeconômicas e criminalidade no Brasil, dentre elas o fenômeno da interiorização da criminalidade, recomenda-se a leitura de: RODRIGUES, Fillipe Azevedo.

Análise econômica da expansão do Direito Penal. 2013. 194 f. Dissertação (Mestrado em Direito) –

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013. p. 39-45.

90 MINGARDI, Guaracy. A investigação de homicídios: construção de um modelo. Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/analise-e-

pesquisa/download/concurso_pesquisasaplicadas/a-investigacao-de-homicidios-construcao-de-um- modelo.pdf. Acesso em: 22 mar 2017. p.81.

políticos, que foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional, no Presídio Cândido Mendes, localizado na Ilha Grande91.

Além dessa convivência, entende-se como fatores que deram origem a essa organização criminosa os conflitos abertos entre as diversas quadrilhas nas prisões, as precárias condições físicas desses estabelecimentos, a corrupção e a violência institucional, fatores macrossociais e a chegada da cocaína, que abriu um novo e muito lucrativo mercado ilícito. Por volta de 1985, o CV se dividiu, fazendo surgir grupos rivais, dentre eles, o Amigos dos Amigos (ADA)92.

Os fundadores do Comando Vermelho ao fugirem do Presídio de Ilha Grande, buscaram uma nova mentalidade no mundo do crime, levaram para as favelas do Rio de Janeiro uma forma de ação que imitava as principais características da guerrilha urbana dos anos 70. Surgem no vocabulário do crime novas palavras: assalto vira “expropriação” ou “retomada”; quadrilha vira “coletivo”. Esses criminosos criam um manual, batizado pela polícia de “As doze regras do bom bandido” 93, que serviria de bússola para o bandido solto. Embora fossem instruções simples, eram bastante eficientes para evitar os erros de iniciantes praticados pelos bandidos despreparados94.

Mudanças realizadas nas atividades das organizações criminosas pelo resto do mundo também influenciaram as organizações criminosas no Brasil. Em decorrência de expansão de territórios, máfias da cocaína latino-americanas procuraram sócios no Brasil. A proposta era que essas máfias entregassem a cocaína e os criminosos locais vendessem. Assim, o Comando Vermelho precisava dar um salto em sua estrutura e controlar a totalidade dos pontos de venda de drogas nas favelas, aliciando ou destruindo as pequenas quadrilhas

91 Para mais informações sobre o surgimento do Comando Vermelho ver AMORIM, Carlos. CV-PCC: a irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2004.

92 DIAS, Camila Caldeira Nunes. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 100.

93 “As doze regras do bom bandido” eram: 1”. Não delatar. 2. Não confiar em ninguém. 3. Trazer sempre consigo uma arma limpa, carregada, sem demonstrar volume, mas com facilidade de saque e munição sobressalente. 4. Lembrar-se sempre de que a polícia é organização, e nunca subestimá-la. 5. Respeitar mulher, criança e indefesos, mas abrir mão desse respeito quando sua vida ou liberdade estiverem em jogo. 6. Estar sempre que possível documentado (mesmo com documento falso) e com dinheiro. 7. Não trazer consigo retratos ou endereços suspeitos, bem como usar objetos com seu nome gravado. 8. Andar sempre bem apresentável, com barba feita. Evitar falar gíria. Evitar andar a pé. Não frequentar lugares suspeitos. Não andar em companhia de “chave-de-cadeia” (uma referência a gente vaidosa, que sempre fala demais e compromete os outros). 9. Saber dirigir autos, motos etc. Conhecer alguma coisa de arrombamento, falsificação e noções de enfermagem. 10. Lembrar-se sempre que roubar 100 ou 100 milhões resulta na mesma coisa (cadeia, condenação). 11. Estar sempre em contato com o criminalista. 12. Não usar tatuagem em hipótese alguma.” (AMORIM, Carlos. CV-PCC: a irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 166-167).

independentes, começando a guerra nos morros95. Guerra que persiste até os tempos atuais no Rio de Janeiro.

Outra característica marcante dessa mudança do perfil dos criminosos é que o Comando Vermelho sabia da necessidade de colaboração da população carente. Dessa forma, incentivava importantes iniciativas comunitárias nos “territórios conquistados”, financiando e construindo creches, entre outras ações. Além do interesse imediato de proteção do tráfico, o “trabalho social” realizado pelo Comando Vermelho visava afastar ou destruir o criminoso cruel, e que eles seriam melhores que seus antecessores96.

Além disso, outro comportamento marcante desses novos criminosos que surgiam no país era uma solidariedade interna, visto que parte do dinheiro arrecadado com assaltos, por exemplo, era entregue ao Comando Vermelho para pagar advogados e melhorar a situação dos que ainda estavam presos, financiando comida e drogas nos presídios97.

A mobilização das massas carcerárias em busca de melhorias fez surgir outras organizações criminosas no Brasil. A maior dessas facções criminosas é o Primeiro Comando da Capital (PCC)98 e que implementou (e aperfeiçoou) muito do que já vinha sendo feito pelo CV no Rio de Janeiro.

Enquanto nas décadas de 1980 e 1990 o Rio de Janeiro era visto como o centro da desordem social e da criminalidade violenta, São Paulo seguia com aumento nos principais crimes relacionados à violência urbana (roubos e homicídios). Por outro lado, quanto ao tráfico de drogas, embora já presente em São Paulo, o comércio era desorganizado e fragmentado, ocorrendo disputas violentas para assegurar o poder local ou garantir o pagamento das dívidas contraídas, em contraposição à organização existente no Rio de Janeiro.

O PCC surgiu em 1993, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté, região do vale do Paraíba, no Estado de São Paulo. O processo de expansão do PCC no interior do sistema carcerário teve início no ano de 1994, sendo sua influência visível a partir de 1995, causando aumento das rebeliões ano após ano, até resultar na megarrebelião, ocorrida em 200199. A

95 AMORIM, Carlos. CV-PCC: a irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 215. 96 Ibidem, p. 217.

97 Ibidem, p. 347.

98 Para mais informações sobre o surgimento do Primeiro Comando da Capital ver DIAS, Camila Caldeira Nunes. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Saraiva, 2013.

99 EM 2001, megarrebelião promovida pelo PCC envolveu 29 penitenciárias. Folha de São Paulo, São Paulo,

14 maio 2006. Cotidiano. Disponível em:

violência física foi instrumento central na expansão do PCC no sistema penitenciário neste momento inicial100.

O evento ocorrido em 29 unidades prisionais do Estado de São Paulo, megarrebelião de 2001, expôs publicamente a existência do PCC e teve dois efeitos imediatos: de um lado desencadeou a resposta repressiva do Estado por meio da criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD); e do outro, fortaleceu e impulsionou a expansão do PCC mais rapidamente no sistema carcerário. Assim, o PCC passou a ter mais visibilidade e domínio. Nessa fase, houve uma redução da instabilidade das unidades prisionais, visto que boa parte do território já havia sido conquistada, e consequentemente da violência101.

Dentro da evolução das organizações criminosas no país, destaca-se a passagem da vingança privada para coletiva, ocorrida no transcurso da história do PCC com a conquista da sua hegemonia, fazendo com que fossem criados os tribunais do crime, que podem ser considerados “como instâncias soberanas de resolução de conflitos e não como imposição da vontade pessoal de algum líder, como era no início da organização”102.

Para Gabriel Feltran, dentre os diversos atores sociais que atuam nas periferias urbanas, apenas o chamado “mundo do crime” foi capaz de implementar um dispositivo (“tribunais do crime”) capaz de oferecer parâmetros de comportamento e de estabelecer operadores de fiscalização e instâncias, tratadas como legítimas, para julgar e punir os desvios e os desviantes103.

Na sequência, houve um processo de modificação da estrutura interna do PCC, chamado por seus integrantes de democratização, no qual foi acrescida a igualdade ao lema já existente desde sua criação (“paz, justiça e liberdade”). Nessa etapa, verifica-se que o PCC passou a apoiar a legitimação de seu domínio não mais no medo, mas pela explicitação dos diferenciais de poder presentes nessa organização104.

O PCC, à medida que foi ganhando terreno dentro e fora do sistema penitenciário, foi modificando sua forma de organização, diluindo e fragmentando seus centros decisórios, tornando mais complexa a identificação dos focos de poder, retirando de indivíduos singulares a importância na definição do rumo das atuações da facção.

100 DIAS, Camila Caldeira Nunes. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 211.

101 Ibidem, p. 220. 102 Ibidem, p. 226.

103 FELTRAN, Gabriel de Santis. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo. Caderno CRH (UFBA. Impresso), Salvador, v. 23, p. 59-73, 2010. p. 59-73. 104 DIAS, Camila Caldeira Nunes, op. cit., p. 230.

Importante esclarecer que o “mundo do crime” passou a ter no PCC uma instância regulatória central, que resultou numa homogeneização das normas, práticas, valores e princípios em torno de todos os outros organismos sociais criminosos que agiam de forma dispersa. As demais organizações criminosas deixaram de ter uma estrutura piramidal (decisões centralizadas na sua cúpula) e passaram a ter uma formação muito mais complexa.

Após o surgimento, expansão e consolidação dessas duas grandes organizações criminosas em seus territórios iniciais (CV e PCC), o movimento natural foi a expansão para outros Estados. Acredita-se que um dos primeiros que idealizaram um processo articulado nacionalmente para unificar os comandos foi Luís Fernando da Costa, conhecido por Fernandinho Beira-Mar, liderança do CV que, mesmo preso105, determinava a eliminação daqueles que se opunham a ele106.

Depois da prisão de Fernandinho Beira-Mar, com o objetivo de avançar no tráfico de drogas no varejo, o PCC buscou ampliar seu domínio no sistema penitenciário em todo o país, iniciando uma espécie de guerra fria no crime. Para garantir seu domínio, o PCC ampliou o batismo de novos filiados, flexibilizando as regras para novos integrantes. Os filiados perdem autonomia, assumem compromissos morais e financeiros, mas, em troca, ganham a proteção e os privilégios de pertencer ao grupo (advogados que aceleram a progressão de penas, empréstimos de armas e dinheiro para novos crimes, ligações com uma grande rede de fornecedores de drogas e proteção contra adversários)107.

Paralelo a esse movimento, os grupos criminosos existentes nos Estados começaram a fazer alianças armadas para enfrentar o PCC, visto que esse último queria dar um golpe nos outros grupos brasileiros. Assim, o CV se articulou com grupos menores em outros Estados para enfrentar o PCC108.

É nesse contexto que a violência entre os grupos rivais faz os percentuais de homicídios crescerem de forma vertiginosa. Em algumas dessas localidades que o PCC quis ganhar terreno, eles eram vistos como arrogantes e opressores, forasteiros que desrespeitam os costumes locais. O Rio Grande do Norte é um desses locais. O Sindicado do Crime, organização criminosa potiguar criada em 2012, adquiriu popularidade ao reunir

105 FERNANDINHO BEIRA-MAR foi preso em 2001 na Colômbia. O Globo, Rio de Janeiro, 24 mar. 2006. O Globo Online Rio. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/fernandinho-beira-mar-foi-preso-em-2001- na-colombia-4593323. Acesso em: 03 mar. 2020.

106 AMORIM, Carlos. CV-PCC: a irmandade do crime. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 410.

107 DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno Paes. A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018. p. 18.

principalmente os descontentes com as regras impostas pelo PCC e sua postura arrogante. Entre as regras que causavam mais descontentamento, estavam a proibição do uso do crack e da pasta base dentro das cadeias109.

O Sindicado do Crime (SDC) surgiu na Penitenciária Estadual de Parnamirim – PEP e teve como principais motivações para sua criação: a forma como as lideranças locais do PCC levavam os problemas da filial potiguar para São Paulo; a obediência “cega” das lideranças locais às ordens de São Paulo; descontentamento com as punições (exemplos: surras, expulsões de pavilhões, proibição de receber visita, mortes dentro do sistema prisional); o valor da mensalidade, chamada de “cebola” 110. Assim, essa facção surgiu para fazer frente ao PCC, que estava nos presídios do Rio Grande do Norte desde 2010.

A popularidade do Sindicato do Crime cresceu principalmente depois de agosto de 2016, quando o grupo promoveu mais de cem ataques nas ruas de 38 cidades do Estado em protesto contra a instalação de bloqueadores de telefone celular nos presídios. As autoridades estaduais estimavam que o Sindicato tinha 3 mil integrantes, bem acima dos setecentos filiados do PCC no estado. Essa superioridade garantia ao Sindicato o domínio de 28 dos 32 presídios do RN. Em Alcaçuz, presídio localizado na cidade de Nísia Floresta, dos cinco pavilhões, apenas um abrigava integrantes do PCC. Nesse presídio, os presos podiam circular livremente o dia inteiro, não havia controle.

No começo de 2017, a situação no presídio de Alcaçuz começou a ficar insustentável e, mesmo em minoria, os integrantes do PCC, que estavam no pavilhão 5, planejaram um ataque contra os membros do Sindicato do Crime utilizando facas improvisadas. A carnificina foi uma das maiores ocorridas no país e foi notícia em todo o Brasil e no mundo111.

Outros eventos relacionados à disputa de território do PCC com organizações criminosas locais aconteceram pelo resto do país, principalmente Norte e Nordeste. A guerra estava declarada112. Com o passar do tempo, os ânimos foram se acalmando nos presídios,

109 DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno Paes. A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018. p. 20.

110 BARBOSA, César. As facções criminosas do RN: sangue e morte em Alcaçuz. Natal: Offset Editora, 2019. p. 59-60.

111 PRESOS de Alcaçuz entram em confronto; há mortos e feridos, diz PM. G1 RN, Natal, 19 jan. 2017. Disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2017/01/presos-voltam-ao-telhado-de- alcacuz-agentes-controlam-confronto.html. Acesso em: 03 mar. 2020; ROSSI, Marina. Confronto em alcaçuz deixa mortos e feridos enquanto Natal espera soldados. El País, Madri, 19, janeiro, 2017. Brasil. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/20/politica/1484870553_916142.html. Acesso em: 03 mar. 2020.

112 Para maiores informações ver DIAS, Camila Nunes; MANSO, Bruno Paes. A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.

mas facções brasileiras continuaram disputando o futuro do mercado nacional e continental de drogas.

Embora na alta cúpula da disputa pelo domínio do tráfico drogas em atacado tenha havido disputas, que resultaram em violência, o traficante varejista sempre foi a figura mais vulnerável da rede. Os conflitos podiam ser entre os próprios companheiros e individuais, ou contra policiais, justiceiros e grupos de jovens rivais do bairro, traficantes ou não. São esses vendedores, um pequeno exército, despreparados e armados, que concentram a maior parte da violência da extensa rede tráfico de drogas113.

É nesse cenário que a violência em razão do tráfico de drogas, antes mais concentrada no sudeste do país, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, dissemina-se para o restante do país, principalmente Norte e Nordeste114. Não encontrando nenhum tipo de preparo das autoridades locais para fazer frente a essa guerra, o abuso da violência e do voluntarismo do policiamento ostensivo, em vez de garantir o Estado de direito, apenas aceleraram os índices de homicídios115.

No próximo tópico, será tratado sobre a influência da guerra entre as facções nos dados estatísticos de violência no estado do Rio Grande do Norte.

3.2 RIO GRANDE DO NORTE: INCREMENTO DA VIOLÊNCIA ATÉ A SITUAÇÃO