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O inquérito policial é disciplinado no Código de Processo Penal e conceituado como o conjunto de atos praticados pela polícia judiciária com o objetivo de apurar a autoria e materialidade de uma infração penal, reunindo elementos que possam viabilizar o exercício da ação penal. Dessa forma, se a ação penal não puder – ao menos potencialmente – ser iniciada, é inviável a instauração da investigação preliminar. Portanto, se o fato não tiver qualquer repercussão criminal (ilícito civil, por exemplo), se faltar uma condição de procedibilidade (representação da vítima) ou se tiver ocorrido alguma causa extintiva da punibilidade (como a prescrição ou a anistia), o inquérito policial não pode sequer ser instaurado359.

A denominação inquérito policial, no Brasil, surgiu com a edição da Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871. Embora seu nome tenha sido mencionado pela primeira vez na Lei nº 2.033, suas funções existiam bem antes disso e tornaram-se especializadas com a aplicação efetiva do princípio da separação da polícia e da judicatura. Assim, já existia no Código de Processo de 1832 alguns dispositivos sobre o procedimento informativo, mas não havia o nome jurídico de inquérito policial360.

Continuando no contexto histórico, a origem da estrutura formal da investigação criminal, como é desenvolvida nos dias de hoje, data do século XIX, visto que já existia no

358 ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Controle externo da atividade policial pelo Ministério Público. 2014. 1303 f. Tese (Doutorado em Ciências Jurídico-Criminais) – Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, 2014. Disponível em: https://docs.di.fc.ul.pt/bitstream/10451/17696/1/ulsd070111_td_Thiago_Avila.pdf. p. 12.

359 AGRA, Wendell Beetoven Ribeiro. O controle da eficiência da atividade policial pelo Ministério Público. 2016. 345 f. Dissertação (Mestrado em Segurança Pública) – Instituto Universitario de La Polícia

Federal Argentina, Buenos Aires, Argentina, 2016. p. 176.

Código de 1832, mas não havia o nome jurídido de inquérito policial 361. A investigação era realizada por um juizado de instrução de perfil contraditório, sob a direção de um juiz leigo e eleito, o qual, a partir de uma reforma realizada em 1841, foi substituído pelo chefe de polícia da corte ou das províncias, nomeado diretamente pelo Imperador dentre desembargadores e juízes de direito. Esses chefes de polícia, para o exercício das funções antes conferidas aos juízes de paz, passaram a ser auxiliados por delegados, nascendo daí a expressão “delegado de polícia”, que investigavam crimes por delegação dos chefes de polícia, que eram magistrados362. De acordo com Bruno Calabrich, a expressão “polícia judiciária” também remonta ao século XIX, época em que as autoridades policiais brasileiras eram dotadas de poderes reservados às autoridades judiciárias, no entanto, diante do que dispõe a Constituição de 1988, não há mais como se empregar a expressão na sua significação original363.

A finalidade do inquérito policial é a investigação do crime e a descoberta do seu autor, com o objetivo de munir elementos para o titular da ação penal promovê-la em juízo,

seja ele o Ministério Público, seja o particular, conforme o caso 364. Importante ressaltar que esse objetivo de investigar e apontar o autor do delito sempre teve por base a segurança da ação da justiça e do próprio acusado, pois, essa instrução prévia, por meio do inquérito, permite que a polícia judiciária reúna todas as provas preliminares que sejam suficientes para apontar, com relativa firmeza, a ocorrência de um delito e o seu autor. Como se sabe, o simples ajuizamento da ação penal contra alguém provoca um fardo à pessoa de bem, não podendo, assim, ser ato leviano, desprovido de provas e sem um exame pré-constituído de legalidade. Portanto, esse mecanismo auxilia a Justiça Criminal a preservar inocentes de acusações injustas e temerárias, garantindo um juízo inaugural de delibação, inclusive para verificar se se trata de fato definido como crime365.

A investigação preliminar, materializada normalmente, mas não exclusivamente, no inquérito policial, permite que a acusação seja formulada de forma segura, amparada num

361 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 55. 362 SALGADO, Daniel de Resende. O controle externo, a seletividade e a (in)eficiência da investigação criminal. In: SALGADO, Daniel Resende; DALLAGNOL, Deltan Martinazzo; CHEKER, Monique (Coords.). Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. p. 241-273. p. 257.

363 CALABRICH, Bruno Freire de Carvalho. Pequenos mitos sobre a investigação criminal no Brasil. In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Orgs). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. São Paulo: Atlas, 2015. p. 127-148. p. 136.

364 Para conhecer o atual modelo de investigação criminal brasileiro, recomenda-se a leitura de: SOUZA, Rodrigo Telles de. A investigação criminal e a vedação ao anonimato no sistema jurídico brasileiro. 2012. 359 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.

suporte probatório capaz de demonstrar a justa causa para a persecução criminal em juízo. O inquérito policial é um procedimento administrativo de caráter informativo, preparatório da ação penal, no qual a polícia documenta os atos de investigação criminal (depoimentos, perícias e outras diligências realizadas). Embora seja dispensável, uma vez que a ação penal pode ser promovida a partir de outros elementos, o inquérito policial ainda é o principal instrumento de investigação das polícias de investigação criminal brasileiras (federal, civis e militares)366.

Conforme já dito, o inquérito policial é regulamentado por meio do atual Código de Processo Penal, que é de 1941. Em razão de ter sido editado na ditadura de Vargas, ele ainda mantém algumas características inquisitivas. Apenas para exemplificar o contexto histórico no qual foi forjado o CPP, de acordo com a exposição de motivos, de autoria do então ministro da Justiça e Negócios Interiores, Francisco Campos, não era possível àquela época a adoção do preconizado juízo de instrução – que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas – em razão da “realidade brasileira” de então, destacando a vastidão do território nacional, as deficiências dos meios de condução e as diferenças regionais entre os centros urbanos e os remotos distritos do interior que impediam a imediata intervenção do juiz instrutor367.

Ao longo dos anos, foram muitas as reformas ocorridas no Código Processo Penal, mas nenhuma alteração relevante ocorreu no disciplinamento do inquérito policial, que, atualmente, tem-se se mostrado um procedimento arcaico e obsoleto, que chega a ser mais burocrático que a própria ação penal. Após a Constituição de 1988, foram diversas as reformas com o objetivo de adequar o Código de Processo Penal brasileiro às normas constitucionais, porém a estrutura do inquérito policial, como procedimento formal destinado à investigação de crimes, permanece a mesma do século XIX, mesmo com a completa mudança do contexto fático, principalmente no que se refere às características da criminalidade (natureza e quantidade de delitos)368. Daniel Salgado cita como exemplos do desgaste funcional do inquérito policial os sucessivos pedidos de prorrogação do prazo das investigações, informações negativas, repetições de atos, oitivas desnecessárias, preocupações demasiadas com práticas cartorárias, fetiches procedimentais e formais que subtraem tempo e

366 AGRA, Wendell Beetoven Ribeiro. O controle da eficiência da atividade policial pelo Ministério Público. 2016. 345 f. Dissertação (Mestrado em Segurança Pública) – Instituto Universitario de La Polícia

Federal Argentina, Buenos Aires, Argentina, 2016. p. 176. 367 Ibidem, p. 178.

não conduzem a quaisquer resultados práticos, excesso de papéis inúteis, entre os quais se escondem os elementos de informação369.

A burocratização existente no inquérito policial eiva o procedimento, tornando-o mais demorado do que realmente deveria ser, resultando em um desserviço à comunidade em sua totalidade. Quando se analisa o apenso do processo criminal, ou seja, o inquérito, é possível verificar páginas e páginas que nada acrescem ao procedimento investigatório – tomando não somente o tempo da autoridade policial como de todos aqueles que fazem parte do sistema processual penal370.

O Ministério Público pode, e deve, pleitear que sejam realizadas mudanças no Código de Processo Penal com o objetivo de tornar o inquérito policial menos burocrático, mais ágil, mais eficiente. É uma luta que deve ser enfrentada, mesmo com todos os obstáculos que surgirão diante dos Poderes Legislativo e Executivo, porque resultará em mais eficiência, celeridade e resolutividade para a sociedade. Nos mesmos moldes, deve-se pleitear que a obrigatoriedade de comunicação pela autoridade policial sobre a instauração de inquérito policial prevista para o juiz de garantias também se aplique ao Ministério Público, para ciência, controle e eventual requisição de diligência em tempo real.

Frise-se que já existe determinação na Lei nº 12.852371, de 2012, que determina a comunicação pela Corregedoria ao Ministério Público no caso de suspeita de participação de policial em organização criminosa. Assim, deve-se pleitar que exista essa comunicação de forma mais ampliada em outros tipos de crime, mesmo sem participação de policial. Por exemplo, nos casos de homicídio, o delegado responsável pelo inquérito policial poderia imediatamente comunicar ao Ministério Público, que já tornaria o Promotor de Justiça

369 SALGADO, Daniel de Resende. O controle externo, a seletividade e a (in)eficiência da investigação criminal. In: SALGADO, Daniel Resende; DALLAGNOL, Deltan Martinazzo; CHEKER, Monique (Coords.). Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. p. 241-273. p. 258.

370 NÓBREGA, Julyana Monya de Medeiros Veríssimo. A nova investigação criminal: a busca pela efetivação de garantias. 2019. 102 f. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019. p. 38.

371 Já tratada no item 4.1. (BRASIL. Lei nº 12.852, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

2014/2013/lei/l12850.htm#:~:text=1%C2%BA%20Esta%20Lei%20define%20organiza%C3%A7%C3%A3 o,procedimento%20criminal%20a%20ser%20aplicado.&text=Pena%20%2D%20reclus%C3%A3o%2C%20 de%203%20(,%C3%A0s%20demais%20infra%C3%A7%C3%B5es%20penais%20praticadas.. Acesso em: 05 jul. 2020.).

prevento para todo o restante da investigação, sendo possível que já fossem determinadas diligências de acordo com as circunstâncias do crime já conhecidas pela polícia.

Dentro do escopo de atuação do Ministério Público, o art. 129, VIII, da Constituição, estabelece-se ser função institucional do Ministério Público requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais.

Assim, a requisição da instauração de inquérito policial é uma das formas de assegurar a indisponibilidade da persecução penal, a fim de que a polícia investigue um fato criminoso que, por alguma razão, deixou de ser apurado de ofício, por iniciativa da própria autoridade policial, e em consequência permita ao titular da ação penal (MP) o oferecimento de denúncia ou a promoção de arquivamento. De outro lado, a requisição de diligências, que serão especificadas pelo requisitante, visa à complementação de uma investigação (policial ou do próprio Ministério Público) já existente ou mesmo a produção de uma prova relacionada a uma ação penal já em tramitação372.

A requisição é uma ordem, que deve ser necessariamente atendida pelo destinatário, salvo em caso de manifesta ilegalidade. É em razão disso que o ato deve ser fundamentado, para que o destinatário conheça a sua motivação jurídica. A autoridade policial com competência administrativa para a investigação da infração penal (delegado de polícia, nos crimes comuns, ou oficial militar, nos crimes militares) deve cumprir as diligências investigatórias requisitadas ou instaurar o inquérito policial, sob pena de responsabilização administrativa, civil e criminal. O ofendido, ou o seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, contudo, a autoridade policial poderá recusar a sua realização, se entender que é impertinente, visto que, nessa situação, trata-se de uma simples solicitação. Nesse ponto, é importante diferenciar requisição de requerimento. As requisições do Ministério Público não se sujeitam à discricionariedade da autoridade requisitada, ou seja, à consideração de oportunidade e conveniência para cumpri-la segundo a sua própria ordem de prioridades. O servidor público somente pode recusar o cumprimento de uma requisição do Órgão Ministerial quando lhe seja absolutamente impossível cumpri-la ou quando evidentemente abusiva – situação na qual deverá comunicar formalmente, ao próprio órgão

372 AGRA, Wendell Beetoven Ribeiro. O controle da eficiência da atividade policial pelo Ministério Público. 2016. 345 f. Dissertação (Mestrado em Segurança Pública) – Instituto Universitario de La Polícia

ministerial requisitante, a justificativa para o não atendimento da requisição no prazo concedido373.

5.5 DAS MUDANÇAS IMPLEMENTADAS NO INQUÉRITO POLICIAL PELA LEI Nº