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SUMÁRIO

2 O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO: AS ORIGENS DE SEU DESENVOLVIMENTO

2.2. O INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO

O ISD é uma corrente teórica que está fundamentada nas noções gerais do Interacionismo Social, construído por Vygotsky. Como já foi anteriormente mencionado, o Interacionismo Social contraria os princípios teóricos de Piaget, conforme o qual o comportamento humano é fruto de elementos biológicos, que auxiliam no seu desenvolvimento. Ainda, opõe-se a Piaget no que concerne à evolução dos seres humanos, pois o mesmo autor considera que esse processo é oriundo de um individualismo, ou seja, que só à medida que os sujeitos crescem desenvolvem princípios de ordem social e cultural (BRONCKART, 2006, p. 100).

Contrariando os princípios teóricos de Piaget, o Interacionismo Social inscreve-se em uma corrente teórica que valoriza as relações existentes entre os seres humanos e os aspectos de ordem social. Isto é, passa a se constituir enquanto uma perspectiva voltada para os aspectos que compõem a ontogênese do pensamento consciente (BRONCKART, 2006, p. 100), compreendida como a história dos sujeitos, o processo de desenvolvimento humano e de domínio de seu comportamento.

Aderindo a esses princípios fundadores do Interacionismo Social, o ISD é uma corrente teórica que teve seu início na década de 1980, a partir de um grupo de pesquisadores da Unidade de Didáticas de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Esse grupo de pesquisadores,

constituído por Bernard Schneuwly, Daniel Bain, Joaquim Dolz, Itziar Plazaol, sob a coordenação de Jean-Paul Bronckart, desenvolveram um amplo programa de pesquisa em que consideraram como referência maior o quadro de desenvolvimento humano de Vygotsky e Bakhtin, no que concerne ao campo da linguagem. De acordo com Guimarães e Machado (2007, p. 10), “esses pesquisadores posicionaram-se a favor da reunificação da Psicologia, atribuindo-lhe uma dimensão social, com a finalidade de esclarecer as condições da emergência e do funcionamento do pensamento consciente humano”.

Em um primeiro momento, o ISD esteve voltado para a produção e para o experimento de sequências didáticas, bem como para a organização de uma perspectiva teórica que estivesse preocupada em explicar essas práticas de ensino. Em um segundo momento, o ISD preocupou-se em aprimorar essa perspectiva inicial e, acima de tudo, voltou-se para as atividades de linguagem, no que concerne ao quadro de desenvolvimento humano (BRONCKART, 2006, p. 13 -14).

É nesse segundo momento que Jean-Paul Bronckart concebe um movimento maior, em direção a uma Ciência do Humano, através de princípios teóricos que estão atrelados à linguagem e sua relação com as atividades humanas. Com isso, é importante destacar que o ISD parte dos pressupostos teóricos da corrente histórica do Interacionismo Social e contraria uma possível fragmentação das Ciências Humanas/Sociais, ou seja, não é uma perspectiva linguística ou psicológica, tenciona ser reconhecida enquanto uma “Ciência do Humano” (BRONCKART, 2006, p. 10).

Essa corrente busca compreender as atividades humanas e contribuir com reflexões e mudanças no cenário social em que os sujeitos vivem e se desenvolvem. Para compreender esse processo de desenvolvimento humano, o ISD concebe a linguagem como aspecto determinante, no sentido de que esse elemento exerce influência na constituição e na identidade dos seres humanos, na construção de novos conhecimentos e no controle do comportamento humano.

De acordo com Bronckart (2008), o quadro teórico do ISD inspira-se nos princípios do materialismo, do monismo e do evolucionismo. O materialismo envolve os aspectos materiais que compõem as atividades humanas, inclusive o pensamento humano, concebido como uma realidade material. O monismo concebe todos os objetos, em sua essência, como matéria. Por mais que possa haver alguns

objetos físicos e outros psíquicos, isso é apenas uma diferença fenomenológica e não de essência, como Bronckart explica. Já o evolucionismo inscreve-se em uma corrente que considera que a matéria, no decorrer da evolução do universo, propiciou o desenvolvimento de objetos complexos e, nos organismos vivos, elementos para a sua própria subsistência. Somado a isso, no processo de evolução, há uma interação entre a organização interna dos objetos com os fatores externos.

O ISD também se inscreve em uma perspectiva dialética e histórica. As atividades humanas não são descritas apenas por elementos biológicos; ao contrário, para a organização dessas atividades humanas, manifesta-se a linguagem, como instrumento capaz de propiciar o desenvolvimento humano e, sobretudo, contribuir para ações socialmente contextualizadas.

Levando em consideração esses princípios teóricos, o programa de pesquisa do ISD segue um método de análise descendente, que abrange três etapas para a sua constituição:

[...] primeiro, a análise dos principais componentes dos pré-construídos específicos do ambiente humano; depois, o estudo dos processos de mediação sociossemióticos, em que se efetua a apropriação, tanto pela criança quanto pelo adulto, de determinados aspectos desses pré- construídos e, enfim, a análise dos efeitos dos processos de mediação e de apropriação na constituição da pessoa dotada de pensamento consciente, e posteriormente, no seu desenvolvimento ao longo da vida (BRONCKART, 2008, p. 111).

Nessa abordagem descendente, Bronckart (2008) parte de um contexto mais amplo, dos aspectos que compõem a interação e o desenvolvimento humano, com o intuito de, ao final, aproximar-se da língua, enquanto elemento necessário para a construção do pensamento consciente. No entanto, Bronckart (2008) ressalta que o quadro de desenvolvimento humano não se limita a essa abordagem descendente, visto que essas três etapas envolvem questões de ordem dialética, nas quais o processo de mediação contribui para a (re)construção dos coletivos e, do mesmo modo, para o desenvolvimento das capacidades psicológicas individuais. Assim, confirma-se a tese retomada por Mazzilo (2004, p. 302), de que “os discursos, mesmo produzidos apenas por um só indivíduo, em pensamento, por exemplo, ou em diálogo com o outro, são sempre dialógicos”.

Partindo desses princípios, no primeiro nível da abordagem descendente, Bronckart (2006) apresenta quatro pré-construídos humanos que conduzem o comportamento humano em sua relação com a linguagem. O primeiro compõe os diferentes tipos de atividades humanas ou de trabalho. Esse conjunto está presente no espaço social e, por sua vez, organiza-se através de instituições criadas nesse mesmo contexto. O segundo constitui-se através das atividades coletivas gerais, representadas pelo comportamento humano em sua relação com o ambiente social. O terceiro é constituído pelas atividades de linguagem, que orientam e organizam as ações efetuadas pelos seres humanos. Por sua vez, essas atividades realizadas por intermédio da linguagem se realizam através dos textos, que sob diversos elementos estruturantes, orientam as ações humanas e, por conseguinte, as interações entre os sujeitos. O quarto é constituído pelos mundos formais, que dizem respeito às estruturas que organizam e orientam as atividades humanas (BRONCKART, 2006, pag. 128-129).

Em um segundo nível há os processos de mediação formativa, em que o adulto integra as crianças nesse conjunto de pré-construídos. Já o terceiro nível está relacionado aos resultados que “essas mediações formativas exercem sobre os indivíduos” (BRONCKART, 2006, p. 129). Nesse caso, as interações que os adultos estabelecem com as crianças auxiliam em seu crescimento e no desenvolvimento de seu pensamento consciente. Em outras palavras, as crianças passam a realizar abstrações, a desenvolver estruturas interiores que contribuem para o domínio de seu comportamento (BRONCKART, 2006, p. 129). Machado (2009) ressalta que, nessa abordagem descendente, a linguagem assume um papel fundador e, sobretudo, a atividade discursiva um papel decisivo, visto que essa atividade é envolvida pelos três níveis acima mencionados, isto é, coordena as atividades humanas, contribui para que os seres humanos memorizem os pré-construídos e, por último, auxilia no desenvolvimento do pensamento consciente humano.

Para compreender esse papel central da linguagem, Bronckart (2012) recupera outros princípios teóricos que explicitam essa ideia e contribuem para uma visão mais ampla sobre a função da linguagem. O autor considera os pressupostos teóricos de Habermas (1987), que enaltecem o agir comunicativo e as relações entre linguagem e atividade humana.

De acordo com Bronckart (2012), o agir comunicativo é uma dimensão constituída, inicialmente, pelo psiquismo humano. Essa dimensão advém do surgimento da linguagem enquanto um instrumento de negociação humana que auxilia no desenvolvimento das atividades propícias da espécie humana. É no âmbito dessas ações que surge o signo, como instrumento representativo do ambiente em que os sujeitos encontram-se envolvidos. Por outro lado, o agir comunicativo também é constitutivo do social. Nesse contexto, os signos são instrumentos que estão disponíveis a todos os indivíduos, contribuindo para o desenvolvimento de representações individuais. Entretanto, veiculam-se também representações coletivas sobre o meio, que podem ser concebidas como os mundos representados.

Para Habermas, a atividade humana é constituinte da representação de três mundos: mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo. O mundo objetivo diz respeito às atividades desenvolvidas em um espaço físico. Essa representação requer certos conhecimentos materiais que possam contribuir para a mobilização da atividade. Já o mundo social direciona-se para as atividades que são desenvolvidas por um grupo particular, as quais se organizam a partir de regras e restrições. Os conhecimentos coletivos oriundos dessas regras de organização contribuem para a constituição do mundo social. Por fim, as atividades também se desenvolvem através de pessoas, que além de serem formadas por fatores psíquicos, individuais, também são fruto de um processo público de conhecimento. O produto desse processo é característico do mundo subjetivo (BRONCKART, 2008, p. 22).

Bronckart (2012) assegura que, por intermédio do agir comunicativo, “o homem transforma o meio (ou o mundo em si, que permanecerá eternamente como um “limite jamais atingido”) nesses mundos representados, que constituem, a partir daí, o contexto específico1 de suas atividades” (p. 34). Com isso, há a influência do social sobre o humano, isto é, os conhecimentos humanos passam a envolver questões de ordem coletiva. Esses supostos aspectos coletivos organizam-se em um mundo representado, a saber: o mundo social. Por sua vez, o mundo social orienta os indivíduos quanto aos objetos que se encontram no meio e, por esse fato, acaba conduzindo a estruturação do mundo objetivo e subjetivo.

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Dessa abordagem, a linguagem assume, inicialmente, “uma produção interativa associada às atividades sociais” (BRONCKART, 2012, p. 34), é o instrumento de comunicação, de interação comunicativa no decorrer das atividades humanas. À sombra dessa dimensão que a linguagem assume, a confrontação do valor ilocutório das produções interativas se harmoniza com signos. Cada signo corresponde a uma significação, a uma representação do mundo e, por conseguinte, a linguagem passa a assumir outra função, que, de acordo com Bronckart (2012), é da ordem representativa ou declarativa.

Para Bronckart (2012), as interações com o meio social transformam as representações dos seres humanos. Por sua vez, essas representações passam a ser concebidas enquanto atividades particulares, já que os signos, por mais que possam vir a exercer atividades coletivas, desempenham uma função autônoma. Assim, atribui-se o “nascimento de uma atividade que é propriamente de

linguagem e que se organiza em discursos ou em textos2” (BRONCKART, 2012,

p. 35). Esses textos, por sua vez, se diferenciam em gêneros. É através dos textos, dos signos, que se “constroem os mundos representados definidores do contexto das atividades humanas, esses mundos, por sua vez, também se transformam permanentemente” (BRONCKART, 2012, p. 35).

Sob essa dimensão, compreendemos que a linguagem é o instrumento que conduz a esse processo de desenvolvimento de atividades humanas. Por intermédio da linguagem, o indivíduo apropria-se dos três mundos e, com isso, orienta as suas próprias ações.

De acordo com Bronckart (2012), as atividades de linguagem se realizam apenas no quadro de uma língua natural particular. Nesse caso, cada língua é constituída por elementos próprios, por uma semântica que a orienta e organiza. É através dessa organização semântica, dessa condução própria de significados e sentidos, que os mundos representados se constituem.

Nesses mundos temos comunidades verbais heterogêneas, com diversos fatores sociais que interferem em seu processo de organização. São opiniões divergentes, complexas e com aspectos sócio-históricos que influenciam e conduzem a uma diversidade linguística. No que concerne a essa dimensão,

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Bronckart (2012) acrescenta que toda comunidade verbal é composta de diversas formações sociais, cada uma desempenhando as suas atividades com objetivos e interesses individuais. É no quadro dessas formações sociais que são considerados os pressupostos teóricos de Foucault (1969), no que tange às formações discursivas. As formações discursivas, que o ISD conceberá como formações sociodiscursivas,

[...] são mecanismos que, no próprio movimento que gera modalidades particulares de organização dos signos que chega a formas variadas de “discurso” (que chamaremos de gêneros de textos3

), moldam os conhecimentos (objetos, conceitos, estratégias, etc.) dos membros de uma mesma formação social de uma forma particular (BRONCKART, 2012, p. 37).

Bronckart (2012) assegura que toda a língua é heterogênea e, por esse fato, não deve ser concebida enquanto um produto isolado, homogêneo. Sob esse ponto de vista, os mundos representados, que contribuem para o desenvolvimento das atividades humanas, são orientados por pressupostos particulares que advêm dos gêneros de texto em uso, por características específicas que definem os diversos tipos de texto, fazendo com que os sujeitos construam representações distintas sobre objetos que se encontram no espaço social.

Para Bronckart (2012), uma língua natural só se realiza através de produções verbais, constituídas em situações distintas e em múltiplos contextos sociais. Essas diversas formas de produção verbal são denominadas de textos, compreendidos como “toda unidade de produção linguageira situada, acabada e auto-suficiente” (BRONCKART, 2012, p. 75). Essas unidades, por sua vez, organizam-se através de diversos conjuntos, denominados de gêneros de texto. Os gêneros desempenham uma relação de dependência com as atividades humanas e, por isso, Bronckart (2012) assegura que

os gêneros são múltiplos, e até mesmo em número infinito, os segmentos que entram em sua composição (segmentos de relato, de argumentação, de diálogo, etc.) são em número finito, podendo, ao menos parcialmente, ser identificados por suas características linguísticas específicas (p. 75-76).

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Diante dessa definição, compreendemos que os gêneros desempenham uma importante função no quadro de desenvolvimento das atividades humanas. Eles representam o instrumento necessário para que as interações aconteçam e para que os indivíduos possam desempenhar as suas atividades de forma socialmente contextualizada.

Como afirma Bronckart (2012), o projeto do ISD parte de princípios teóricos que consideram “as ações humanas em suas dimensões sociais e discursivas constitutivas” (p. 31). Com isso, cumpre-nos salientar que as pesquisas que orientam essa corrente teórica centram-se na análise de textos, sejam orais ou escritos, com a finalidade de identificar como se desenvolvem as atividades humanas, sejam elas sobre o ensino ou sobre o trabalho.

Concluída a apresentação da teoria do ISD, buscamos, no capítulo seguinte, apresentar os princípios teóricos que orientam a perspectiva do trabalho. Para tanto, inicialmente, discorremos sobre a constituição do termo trabalho, em específico o trabalho docente, para na sequência, apresentar os pressupostos teóricos do ISD que fundamentam e definem o trabalho do professor.