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O impacto da interdisciplinaridade envolvendo ciências naturais e culturais no entendimento de imagens em madeira policromada de Missões Jesuíticas

envolvendo ciências naturais e culturais no entendimento de imagens em madeira

2. O impacto da interdisciplinaridade envolvendo ciências naturais e culturais no entendimento de imagens em madeira policromada de Missões Jesuíticas

Paraguaias

Nas últimas décadas foram publicados numerosos artigos por historiadores da arte so- bre esculturas produzidas nas missões. Lidando com questões estilísticas e iconográficas, estas publicações tiveram diferentes abordagens para compreender o quadro geral des- ta arte e dos seus criadores. As esculturas foram vistas principalmente do ponto de vista estilístico e sua aparência heterogênea foi dividida em categorias como “importadas”, “feitas por escultores europeus nas Américas” e “feitas pelos povos indígenas” [Plá 2006] ou explicadas por uma ordem cronológica [Sustersic 2010]. Esses estudos contribuíram enormemente para a popularidade desse patrimônio e, em muitos casos, reuniram pela primeira vez um número importante de esculturas. Produções como o Inventário da Ima-

ginária Missioneira no Brasil ou os trabalhos argentinos Historia social y cultural del Río de la Plata [Furlong 1969] e Patrimonio artístico nacional: inventario de bienes muebles

[Schenone et al. 1982 -2010] deram uma visão geral das propriedades ainda existentes na região. O principal problema foi sempre o fato de a arte missioneira ser “eminentemente

anónima”, como dizia Josefina Plá [Plá 2006: 56]. Isto significa que quase não há obras

assinadas ou datadas. No campo da proveniência as fontes são escassas e a história das esculturas individuais está espalhada por numerosos documentos nos arquivos locais ou perdidos. O trabalho meticuloso de encontrar vestígios de todas as centenas de obras de arte restantes e de reconstruir o seu paradeiro desde 1767 até hoje apenas começou. Em alguns casos, a iconografia das esculturas ainda é debatida por estudiosos [Gil 2016], o que torna mais difícil a sua identificação nos documentos. Qualquer tentativa de catego- rizar a herança missioneira permaneceu uma hipótese quase impossível de provar.

Na Argentina, as primeiras análises de materiais foram realizadas em um grupo de qua- tro esculturas do Museu de La Plata em 2010. [GÓMEZ et al. 2010; FAZIO et al. 2010, TOMA- SINI et al. 2010]. Estes investigações pioneiras revelaram-se vitais para a compreensão do processo de trabalho e da rede de abastecimento das oficinas. Com o projeto já mencio- nado, iniciado em 2015, foi escolhida uma abordagem através da história da arte técnica por meio do estudo das fontes arquivísticas e das próprias esculturas para complementar 6 Um melhor entendimento sobre ciências naturais e ciências culturais pode ser conseguido em del Egido (2008).

as pesquisas já existentes sobre o tema. Estas investigações tecnológicas podem também ajudar a sublinhar semelhanças e diferenças entre certas esculturas. Duas representa- ções da Inmaculada Concepción em São Miguel das Missões e San Ignacio Guazú, por exemplo, têm flores azuis contendo smalt (vidro de cobalto) pintadas em seus vestidos, embora não pareça ter sido um pigmento muito comum. Curiosamente, as duas virgens são estilisticamente muito semelhantes e a policromia é executada na mesma técnica do

estofado a punta de pincel.7 Em outros casos, a identificação dos materiais ajuda a en- tender a aparência original e, portanto, é uma fonte valiosa para os historiadores de arte. Folhas de prata oxidadas, especialmente, mudam drasticamente de aspecto e, portanto, a interpretação das esculturas. É o caso de um São Francisco de Borja, de Santa Maria de Fe, cuja casula hoje aparece preta com flores pintadas de vermelho. O exame minu- cioso da policromia sob o estereomicroscópio já indicava o prateamento a água, porque uma camada vermelha semelhante a um bollus se mostrava sob a camada preta. Além disso, a estrutura interna das flores foi raspada da cor vermelha mostrando a camada preta subjacente. Isto lembrava um esgrafiado, uma técnica normalmente encontrada em douramento ou prateamento. No corte estratigráfico obtido da área, o bollus era cla- ramente visível. A análise físico-química da amostra confirmou a teoria (Fig. 1). Em um tratamento de restauração passado, as perdas foram retocadas com a cor preta imitando a camada de prata escurecida.

Figura 1 - São Francisco de Borja do Museu de Santa Maria de Fe com detalhe estereomicros- cópico da flor pintada sobre a prata e linhas internas riscadas (esquerda); a estratigrafia corres-

pondente com camada de fundo, bollus, prata e retoque em microscopia óptica e SEM-EDS (direita). Foto: Fernando Franceschelli/Isabel Wagner/Christian Gruber

Uma escultura de São Pedro do mesmo museu está usando uma alva branca com listras horizontais pretas. Fomos indicados de que uma alva como um vestido litúrgico 7 Imagens das esculturas podem ser encontradas na Fig. 6 do artigo “Investigaciones tecnológicas de esculturas policromadas en madera de las Reducciones Jesuíticas Guaraníes en Paraguay y Brasil.

formal nunca pode ter outra cor que não seja o branco. Então investigamos a policro- mia primeiro visualmente e depois retiramos uma amostra. Como algumas das listras pareciam ter sido pintadas, primeiro pensamos que um pigmento branco, como o bran- co de chumbo, tinha se tornado escuro. A análise do corte estratigráfico mostrou, con- tudo, que a alva estava originalmente decorada com um estofado branco sobre pratea- mento a água. As riscas horizontais foram riscadas da camada branca para imitar uma trama de prata. Sob a influência da humidade e dos poluentes a prata oxidou-se, ou seja, ficou preta, ao longo do tempo. Isto foi mal interpretado como listras horizontais pretas num tratamento de restauro passado e as listras foram completadas com retoques pre- tos (Fig. 2).

Figura 2- San Pedro do Museu de Santa Maria de Fe com detalhe

estereomicroscópico da alva com esgrafiado e retoque (esquerda); e a estratigrafia correspondente com camada de fundo, bollus, prata e retoque em microscopia

óptica e SEM-EDS (direita).

Foto: Fernando Franceschelli/Julia Brandt/Christian Gruber

Este último exemplo mostra como o conhecimento do historiador ou historiador de arte que está familiarizado com as tradições iconográficas pode ser o ponto de partida ao colocar uma questão. Em um próximo passo, um conservador-restaurador examina a escultura como um todo para entender a técnica e restaurações anteriores. Só então é possível tirar uma amostra do local certo com as camadas necessárias para responder à pergunta inicial. No corte estratigráfico preparado a partir da amostra, o bollus era claramente visível por baixo da camada escura. A análise físico-química foi então capaz de identificar a substância preta como prata. Tendo as informações sobre o material e a estratigrafia, o resultado é, por um lado, importante para a história das esculturas, mas também para o seu futuro. O escurecimento da prata é uma reação irreversível, mas sabendo que se trata de uma folha de prata e não apenas de uma camada preta, que

talvez até mesmo seja confundida com uma sujidade, sabemos que não podemos “lim- pá-la” durante a próxima intervenção, pois ela é parte integrante da policromia original. A consciência desse fenômeno nos ajuda também a olhar mais de perto a policromia em outras esculturas. E mesmo que não seja possível realizar mais análises, torna-se cla- ro que uma camada preta pode não ser apenas uma camada preta, mas uma folha de prata que é muito sensível à água e a outros solventes.