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Manancial Missioneiro e a construção de uma imagética missioneira

4.1 A construção de uma identidade missioneira

5. Manancial Missioneiro e a construção de uma imagética missioneira

Data de 1926 a criação de um loteamento urbano nos arredores do antigo templo de São Miguel Arcanjo que repovoou a região e constituiu um distrito do município de Santo Ângelo e se emancipou político-administrativamente em 1988, através da Lei Es- tadual nº 8.584. Logo em seguida, foi iniciada a obra de pavimentação do recém-criado município de São Miguel das Missões. Mas, durante a abertura das ruas surgiram vestí- gios materiais do período das reduções jesuíticas-guarani existentes ali, decorrentes dos séculos XVII e XVIII, os quais foram em grande parte coletados pelos moradores e guar- dados em suas residências e/ou amontoados em terrenos baldios. Não se sabe ao certo o destino de todos os objetos encontrados naquela ocasião. No entanto, fica evidente o interesse da população que, cuidando desses vestígios materiais, acabou por contribuir para o esclarecimento da história da colonização e de povoamento da região.

Assim, no princípio do século XXI, um miguelino chamado Valter Braga idealizou e procurou na comunidade objetos que referendassem a história da região e de seus ha- bitantes, organizando-os para compor a Exposição da Cultura Missioneira. Do ponto de vista prático, pode-se dizer que os primeiros anos da exposição foram importantes para a conquista de certa visibilidade social e pelo reconhecimento de que a exposição era (e poderia ser) um espaço de memória, e isso contribuiu para o aumento de doações por parte da população.

O acervo era composto por objetos que referendavam a presença da colonização je- suítica-guarani e de posteriores povoadores. Grosso modo, de seu acervo fazem parte bens da cultura material, oriundos das diversas culturas que transitaram e/ou transitam pela região e que se vinculam à cultura dos Mbyá-Guarani e de grupos africanos escravi- zados, à cultura campeira e/ou à tradição gaúcha. No espaço expositivo do Ponto de Me- mória Missioneira, há uma alusão à Opy (Casa de Reza Guarani, onde se realiza o ritual de purificação, conhecido pelo nome de Ritual da Erva Mate (caá) (Figura 1)). Isso, somado ao diversificado acervo apresentado ao público visitante, remete-nos à construção de uma narrativa que dá ênfase e destaque à história missioneira e ao patrimônio cultural correspondente, dando vazão e concretude à memória coletiva da população que, atra- vés dessas narrativas, reforça seus vínculos identitários e de pertencimento a esse lugar, como no caso da alusão ao Tatarandê durante as visitas guiadas ao espaço (Figura 2).

13 “A atividade de criação de gados pelos guaranis e suas correspondentes técnicas de trabalho não pode operar como um elemento fundante das tradições gaúchas. O conceito de “tradição”’ excede os processos de trabalho – e até mesmo os hábitos e costumes – e expressa um conjunto de representações simbólicas. No Rio Grande essa simbolização ideal toma como modelo a estância latifundiária privada em uma performance gauchesca. Ora, não existe nada mais radicalmente contraditório aos Sete Povos do que o gauchismo” (GOLIN, 2004, p. 103)

Figura 1 – Opy Fonte: Portal das Missões

Figura 2 – Tatarandê Fonte: Portal das Missões

Na medida em que o acervo se ampliava, a população condicionava a doação dos bens e objetos “ao compromisso de manter o empreendimento livre de relações clien- telísticas”, ou seja, distanciado de favoritismo de políticos locais. Esse movimento se ca- racterizou pela construção de “uma consciência crítica em relação ao gerenciamento do patrimônio cultural na região missioneira”, uma vez que condicionava as doações à isenção de possíveis acordos político-partidários (VIVIAN, 2012, p. 1201).

Vale salientar ainda que a criação da Exposição da Cultura Missioneira surgiu pela insatisfação da comunidade com as políticas oficiais de preservação dos bens culturais existentes em São Miguel, uma vez que a população se sentia alijada das decisões sobre o patrimônio que fazia “fronteira com o quintal de suas casas” (SILVA, 2009, p. 6), e que,

cercado para visitação, deixava-a de fora. Diante disso, a Exposição da Cultura Missio- neira apresentou-se para os moradores da região como uma alternativa que permitia à comunidade criar um espaço de memória que lhe possibilitava falar de si e divulgar seu patrimônio e sua história.

Em função disso e desse crescente interesse da população pela exposição, houve, em 2010, uma aproximação da Exposição da Cultura Missioneira com o Setor de Pesquisa do Museu das Missões, que identificou o Programa de Pontos de Memória14 do Ministério da Cultura – MinC como uma política que poderia ajudar a fortalecer essa ligação e a “colaboração entre o Museu das Missões, a Coordenação de Museologia Social e Edu- cação do Instituto Brasileira de Museologia e o empreendimento comunitário migue- lino” (VIVIAN, 2012, p. 1204). Esse movimento culminou na aprovação do projeto Ponto de Memória Missioneira em 2011 e na participação deste no Edital do Programa Pontos de Memória do Instituto Brasileira de Museologia com o Prêmio Pontos de Memória15. Contudo, o Ponto de Memória Missioneira, antes mesmo de sua institucionalização, já se utilizava de práticas museais de natureza comunitária e popular, buscando recuperar, preservar e divulgar valores que fortaleciam a identidade da região de São Miguel das Missões (, 2012).

Em julho de 2017, no momento da pesquisa de campo de doutoramento, encontrei um novo empreendimento em São Miguel das Missões. Uma iniciativa turística, coman- dada por um jovem criado desde a infância brincando nas ruínas, ouvindo suas histórias, fábulas e causos. O jovem Robson, conhecido na cidade pelo codinome de Binho, o qual comprou um caminhão e uma jardineira com capacidade para transportar em torno de 18 pessoas, com a finalidade de percorrer de terça a domingo, os principais pontos turís- ticos, históricos relevantes para a comunidade.

Entre os pontos turísticos situados no entorno urbano da cidade onde o “Dindinho Missioneiro”, nome dado à jardineira, conduz o turista, estão: as ruínas do sítio arqueoló- gico onde faz uma parada para uma pequena explicação da história e uma foto do gru- po que o mesmo disponibiliza na rede social virtual do Facebook. O trajeto segue para o Centro de Tradições Nativistas Sinos de São Miguel, depois mostra o centro comercial e o apoio logístico, como comércio, farmácias, igrejas, cafés, restaurantes e disponibiliza uns 20 minutos para que os mesmos façam um lanche e comprem souvenirs do comér- cio central.

Seguindo viagem, Binho mostra uma das casas onde é realizado o ritual de “benzi- mento” através de ervas e orações e explica que caso alguém queira fazer uso desse ser- viço, pode ir à casa do benzedor ou solicitar a ida do mesmo ao hotel. Aqui vale ressaltar que essa atividade chama a atenção de dezenas de visitantes homens e mulheres que chegam à cidade para utilizar esse ritual, pois é notória a presença de cerca de 40 benze- dores na pequena São Miguel. E, por essa razão, Silva (2015, p. 12) afirma que a prefeitura do município desenvolve um evento denominado “Encontro de Benzedores” (desde o ano de 2006), bem como várias estratégias de promoção turística focadas nessa prática. 14 Desenvolvido pelo Instituto Brasileira de Museologia em parceria com o Programa Mais Cultura e Cultura Viva do Ministério da Cultura (MinC), com o Programa Nacional de Segurança Pública com Cida- dania (Pronasci) do Ministério da Justiça (MJ) e com a Organização dos Estudos Ibero-Americanos (OEI), o Programa Pontos de Memória tem como objetivo básico atender os diferentes grupos sociais do Brasil que não tiveram a oportunidade de expor suas próprias histórias, memórias e patrimônios nos museus, estando em sintonia com as diretrizes que sustentam a própria Política Nacional de Museus.

15 Vale salientar que a institucionalização do Ponto de Memória Missioneira carrega consigo os precei- tos estratégicos das políticas públicas da área (a Política Nacional de Museus, o Plano Nacional de Cultura, O Plano Nacional Setorial de Museus, o Estatuto de Museus – Lei 11.904/2009 e o próprio Programa Pontos de Memória), especialmente no que tange à garantia de condições para o efetivo exercício do Direito à Memória pelas comunidades historicamente excluídas.

Por fim, o Dindinho Missioneiro chega ao seu destino de visitação, que é o Manancial Missioneiro, onde Valter Braga convida o turista a adentrar a memória e identidade mis- sioneiras através do acervo existente e de suas narrativas. Ele desenvolve um cronogra- ma que inclui o acendimento do Tatarandê (Figura 2), em diversas datas comemorativas como, na Semana Farroupilha, pelos cavalarianos ligados aos Centros de Tradições Nati- vistas e Centros de Tradições Gaúchas que cruzam a região em busca da Chama Crioula; na programação do Gaitaço Missioneiro em 18 de novembro, evento oficial do município que referenda o Dia do Músico e à Santa Cecília sua padroeira, segundo a tradição da igreja católica. Esses elementos, como mostra a Figura 3, perpassam a própria imagética que envolve o modo como o referido ponto de memória foi construído e concebido por seu idealizador.

Valter Braga durante o dia apresenta a história missioneira e suas memórias aos vi- sitantes do atual Manancial Missioneiro e à noite é funcionário público da Secretaria de Turismo do Município de São Miguel, espaço ao lado do sítio arqueológico, e que o mes- mo faz parte da equipe que todas as noites coloca em funcionamento o espetáculo de Som e Luz, que acontece à frente do monumento da igreja em ruínas.

Figura 3: Vista aérea do Ponto de Memória Missioneira em São Miguel Arcanjo Fonte: Internet