• Nenhum resultado encontrado

3.2 Saberes e fazeres de elaboração indígena na

3. Testemunho material

Apresentamos a seguir uma primeira análise daquelas residências cuja localização foi indicada pela interlocutora. São construções onde Maximo Rodrigues trabalhou, dentre as quais apenas uma, a casa da própria família (Figura 7, mais adiante), foi construída por Maximo das fundações ao acabamento, contando com a mão de obra de seu núcleo familiar.

Lamentavelmente, a casa da família do pintor também é aquela que passou por re- formas mais invasivas, e a única que não se presta mais à função de moradia. Não dis- pomos de registro iconográfico de suas condições anteriores, mas é possível inferir que boa parte das características originais se perdeu, sobretudo no interior. Isso não signifi- ca que a volumetria e os principais aspectos da fachada tenham sido alterados. Telhas substituídas não parecem ter afetado a posição do telhado de uma só água com inclina- ção acentuada e caimento para os fundos. Não há, e provavelmente nunca houve, plati- banda. O vidro substitui a madeira nas aberturas, mas não há motivo para supor que as medidas ou a posição das mesmas tenham sido profundamente afetadas. A associação de tais elementos num mesmo edifício não possui bons paralelos na zona urbana de

Pelotas e, por isso, em âmbito local a casa da família do pintor resulta rara6.

Duas outras casas apontadas na entrevista são residências maiores. Situadas à rua Andrade Neves, também na zona norte do centro da cidade (Figura 3 e 4), são obras nas quais Maximo teria se dedicado principalmente à ornamentação e à textura das paredes externas, acabamentos e serviços diversos. Mas, não é possível excluir a possibilidade dele ter contribuído também com o projeto e a construção.

Assim como se faz na mensiocronologia, abordagem desenvolvida no âmbito da ar- queologia da arquitetura italiana e espanhola7, é possível cotejar estas construções a partir da individualização de elementos significativos, cuja variação tipológica é limitada e contínua. A mensiocronologia se distingue das tipologias estilístico-formais arquite- tônicas por evitar seu idealismo, por recusar a valoração a partir de modelos ideais, por desenvolver uma análise baseada em circunstâncias concretas e bem delimitadas. Esta abordagem individualiza não só os edifícios, mas as “fases dos edifícios”, priorizando tanto a definição de indicadores cronológicos locais, sua duração e dispersão, quanto o estudo do emprego de materiais e técnicas construtivas (QUIRÓS CASTILLO 1996, p. 2-5). Para os propósitos mensiocronológicos, “os produtos suscetíveis de ser tipificados (tipologizados), são aqueles produzidos em série, e que se encontram em espaços ge- ográficos circunscritos, de forma que ofereçam certa homogeneidade produtiva e de consumo”8 (QUIRÓS CASTILLO 1996, p. 3).

Consideramos a tipologia dos pormenores de ornamentação externa, das aberturas e dos telhados, como elementos mais úteis e viáveis à análise, posto que carregam grande carga simbólica. Mesmo sem dispormos de séries preestabelecidas e medições locais, podemos aqui começar por elaborar “tipologias de aplicação e complexidade crescente, [a serem ampliadas] conforme forem aumentando as observações realizadas” (QUIRÓS CASTILLO 1996, p. 5).

As residências da rua Andrade Neves que tiveram a mão de Maximo (Figuras 3 e 4) seriam facilmente classificadas como pertencentes ao primeiro período moderno, data- do entre 1933 e 1949 (MOURA; SCHLEE 1998, p. 18-19) ou ao proto-modernismo, como os conjuntos de habitação popular construídos em Pelotas entre 1942 e 1956 (CHIARELLI 2014, p. 60-61). Mas, sendo grandes residências unifamiliares, não guardam maior rela- ção com edifícios responsáveis pela periferização, verticalização e consequentes trans- formações demográficas na cidade (SOARES 2003). As casas em questão testemunham a persistência coetânea e vicinal de uma arquitetura de mais destacado valor distintivo e pecuniário, que nem por isso deixa de compartilhar os predicados e pressupostos es- tilísticos das edificações habitacionais de mais baixa renda.

6 Algumas construções com tais características se preservam nos bairros operários de Pelotas, muita vez inseridas em conjuntos arquitetônicos heterogêneos e descontínuos. No limite entre o bairro do Porto e a área central da cidade, à rua Cel. Alberto Rosa, nº 325, há uma casa cuja parte da frente, talvez sua por- ção mais antiga, muito se assemelha ao exemplo aqui considerado.

7 Para uma revisão dos desenvolvimentos da Arqueologia da Arquitetura na Espanha e na Itália que aqui não serão apresentados em pormenor, ver Brogiolo (2002) e Quirós Castillo (2002).

8 Nesta citação e nas subsequentes, quando feitas a partir de publicações em língua estrangeira, as traduções são todas do próprio autor. Termos tradução imprecisa são reproduzidos em itálico, entre pa- rênteses.

Figuras 3 e 4 - Residências situadas à rua Andrade Neves, zona norte do centro de Pelotas. Em ambas, Maximo Rodrigues realizou serviços de ornamentação, pintura e

a textura das fachadas. Fonte: fotografia do autor.

Localizadas a poucos metros de distância uma da outra, na mesma rua, as casas onde Maximo trabalhou para sua clientela estão em área de grande especulação imobiliária, ocupam terrenos de cota superior e seu índice de aproveitamento é inferior à média lo- cal. Possuem gradis, jardins, garagem, e suas fachadas não estão alinhadas com o limite do terreno, como a maioria das residências de Pelotas.

Há certa copiosidade no arranjo geral dessas duas construções. As empenas com beiral largo são duplicadas com o mesmo ângulo, mas não com a mesma extensão. Os telhados não estão alinhados, não se sobrepõem, sendo que o menor cobre um cômodo destacado, e margeia o limite sul do terreno (à esquerda nas Figuras 3 e 4). Ambas as construções apresentam fundações aparentes em pedra, venezianas de duas folhas nas janelas, e lajotas vermelhas guarnecendo os peitoris e os pisos cobertos da área externa. A chaminé, em um caso, o alpendre e a terceira água do telhado, em outro, são, dentre os elementos dessemelhantes, aqueles mais notáveis.

Aspectos enfatizados em entrevista que podem ser levantados in loco nestes dois ca- sos são a textura, frisos, molduras e demais acabamentos. Em uma das casas, contornos de volutas ou pseudo-volutas servem de base às extremidades laterais do edifício, se re- petindo paralelamente (Figura 5). O óculo assimétrico protegido por grade também se repete, e as extremidades dos caibros aparentes receberam acabamento repetitivo se- melhante ao contorno da pseudo-cornija destacada nos cantos da moldura que acom- panha toda a extensão do beiral (Figura 6).

Figuras 5 e 6 - Pormenores da fachada de uma das residências situadas à rua Andrade Neves (vista completa da fachada na Figura 3). Fundações aparentes e contorno assimétrico repetido, textura, um dos óculos da fachada, moldura, caibros e

Reformas e adaptações podem sobrepor, majorar, minorar ou arrasar elementos como estes, mas a julgar pelo aspecto e pela correlação das partes, muito da construção original se preservou nesses dois exemplos, o que encoraja abordagens interessadas no diálogo entre os modos de construir e ornar, nas múltiplas apropriações estéticas e vin- culações estilísticas de mais longa duração.