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3.2 Saberes e fazeres de elaboração indígena na

2. Testemunho oral

A possibilidade de estudar a obra do pintor-decorador Maximo Rodrigues se deve fundamentalmente ao testemunho de sua filha, Arlete Rodrigues Pereira (Figura 2), pe- dagoga aposentada e ex-aluna do bacharelado em Museologia da Universidade Federal 3 Antecedidos apenas pelo ensino de “ofícios mecânicos” por Jesuítas, ainda no período colonial (FER- REIRA; BITTAR 2012), os Liceus e Escolas de Artes e Ofícios foram implantados em grandes centros urba- nos das Américas, após a independência de cada país, como lugares de instrução das classes mais humil- des e apartados da formação em profissões liberais, normalmente destinada às classes mais abastadas. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro foi fundado em 1858 (MARTINS 2018, p. 267), a Escuela de Artes y Artesanías de Montevidéu surgiu em 1915, a partir das oficinas de arte (talleres de arte) desenvolvidas na Casa de Los Ejercicios desde 1890 (Escuela de Artes y Artesanias 2019). A Escola de Artes e Ofícios de Pelotas foi construída em 1917 (LONER; GILL; MAGALHÃES 2012, p. 122). Não dispomos de qualquer registro de instituições congêneres no interior do Uruguai ou na região fronteiriça.

de Pelotas (UFPel). No dia 23 de julho de 2018, Arlete falou por quase duas horas sobre suas memórias familiares, enunciando e circunstanciando a trajetória de seu pai antes e depois de se fixar em Pelotas, onde viveu a maior parte da vida. Arlete teceu comen- tários sobre as técnicas e práticas do pai, suas relações sociais e vínculos profissionais, além de localizar duas residências por ele ornamentadas, e uma por ele construída do princípio ao fim, com a participação direta de seu núcleo familiar.

A família de Maximo Rodrigues transitou entre as fronteiras de Uruguai, Argentina e Brasil por mais de uma geração. Segundo as memórias de Arlete, os avós eram primos, mas de nacionalidades diferentes. Ela uruguaia, ele argentino. Também um irmão de Maximo era argentino, não uruguaio como ele e, ainda na primeira infância dos filhos, a família se mudou para Jaguarão, cidade brasileira de fronteira. Embora não possa preci- sar onde o pai aprendeu as artes que se tornaram seu ofício de toda a vida, Arlete con- jectura que “ele foi um artista, né? Deve ter aprendido lá”. E reconhece: - “não sei onde ele aprendeu isso, mas em algum lugar ele aprendeu”.

A julgar pela idade que tinha quando migrou para Pelotas, cerca de 19 anos, a inicia- ção profissional de Maximo deve ter se completado na região fronteiriça, o que permite considerar a possibilidade de um instrução marcada por referenciais estéticos e precei- tos técnicos de elaboração indígena e influência missioneira.

Figuras 1 - Maximo Rodrigues em fotografia da coleção particular de Arlete Rodrigues Pereira, s/d. Fonte: Acervo pessoa de Arlete R. Pereira.

Figura 2 - Arlete R. Pereira em visita ao Laboratório Multidisciplinar de Investigação Arqueológica da UFPel. Diante dela, as fotos de sua coleção particular e um

fragmento de revestimento arquitetônico. Fonte: fotografia do autor.

A identidade étnico-racial de Maximo, entretanto, não está definida e nada permite avançar nessa questão. A informante não foi questionada a esse respeito, mas deu o se- guinte testemunho:

Quando o pai era mais velho, tinha aparência de japonês. Tanto é que minhas colegas que chegavam, quando viam meu pai diziam assim: “-teu pai é japonês? - Não, meu pai não é japonês”. Porque tinha aqueles olhos rasgados, tinha, as- sim, o rosto saliente. E ele era bem moreno e tinha o cabelo bem negrinho, bem lisinho, caído.

Com suas próprias referências culturais, e instruída por um professor de História que garantiu a ela que no Uruguai não havia índios, Arlete interpretou a ascendência do pai para além da fenotipia, e concluiu: -“Pelo aspecto do meu pai, eu achava que ele era chi- leno”. Perguntou a si mesma, e respondeu: -“Chileno é índio, né? Chileno é índio”!

A emergência de questões identitárias desta ordem no decorrer da entrevista se deve, em grande medida, ao modo de condução da mesma. Considerando os propósi- tos da pesquisa, e diante da multiplicação de perspectivas teórico-metodológicas para o emprego de entrevistas em Ciências Sociais e Humanas, optamos por uma abordagem compreensiva, que recusa a estandardização dos modelos clássicos pautados por “ins- trumentos padronizados, totalmente definidos na fase que antecede a coleta de dados e voltados para o teste e comprovação de hipóteses” (ZAGO 2011, p. 296).

Numa entrevista compreensiva, “o pesquisador se engaja formalmente; o objetivo é a compreensão do social e, de acordo com este, o que interessa ao pesquisador é a riqueza do material que descobre” (ZAGO 2011, p. 296). Se não pode deixar de ser uma “represen- tação ideológica das relações sociais”, como definiu o arqueólogo Philippe Bruneau (1974, p. 39-40), a entrevista compreensiva, ao menos, procura antepor a ideologia da pessoa entrevistada, restringindo a influência direta do ponto de vista dos entrevistadores.

Assim, uma série de temas foi mencionada, muitos dos quais de grande riqueza do- cumental. Para efeito de concisão e em favor do recorte temático necessário ao presen- te trabalho, aqui consideramos apenas aquilo que diz respeito, direta ou indiretamente, à atuação de Maximo Rodrigues como pintor, decorador e construtor.

Arlete afirma que seu pai era pintor. “Só pintor”, enfatiza. Mas, acrescenta que tam- bém era letrista e para o que “hoje fazem no computador, ele tinha os moldes”. Pintava

lojas e fazia letras para propaganda. Nos fundos de casa, mantinha uma bancada onde “misturava as tintas e, às vezes, fazia umas esculturas”. Reconhece que tanto o pai quan- to a mãe “nunca estiveram num banco escolar, mas sabiam [muitas coisas]”. Ele fazia os frisos e também os orçamentos, além de produzir as tintas que utilizava. A filha o aju- dava a preparar tintas em tonéis de ferro, e se lembra do calor exalado pela cal virgem. O preparo dos pigmentos incluía o derretimento de colas e a adição de gosma de tuna, uma espécie de cacto. Quando adicionada à tinta, esta gosma “ajudava a parede a não descascar”.

Ainda que fosse “só pintor”, Maximo sabia fazer cimento penteado (revestimento que não leva pintura, usualmente aplicado às fachadas), e revestia pisos e forros com ma- deira: “botava aquele arremate e ficavam do mesmo estilo o forro e o piso”; de “madeira fininha, igual ao parquet. No centro era quadrado, nos cantos era em ‘V’”.

Não é remota a possibilidade de se vir a encontrar indícios da mão de Maximo Rodri- gues em escariolas, ornamentação parietal em estuque pintado com imitação ou fingi- mento de mármore, muito recorrente nas construções residenciais pelotenses datadas entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX4. Não sabemos se teria atu- ado como estucador, o que a presença da cal em sua oficina de trabalho pode indicar, mas o testemunho da filha leva a entender que ele, provavelmente, restaurava composi- ções em estuque. Seu cronograma de trabalhos reservava meses inteiros aos reparos de desenhos e pinturas no interior de residências das famílias abastadas locais, via de regra casarões oitocentistas, herança dos tempos do ciclo econômico do charque5.

Atuando numa época na qual os revestimentos em estuque passaram a ser prete- ridos frente a novos materiais e à parede nua, Maximo revestiu de estuques pintados apenas o banheiro e a cozinha de sua residência familiar, erguida no número 1239 da rua Marechal Deodoro (fachada atual na figura 7), enquanto os demais cômodos foram ornados com pintura mural sobre paredes não aparelhadas de estuque.

O relato de Arlete Rodrigues Pereira também permite inferir algo acerca do repertó- rio do pintor. Em sua própria residência, no banheiro, “ele fez só o friso verde e ondas em verde”; nos quartos, “flores aquáticas”; e na sala, rosas brancas.

O predomínio de motivos vegetais pode estar relacionado aos moldes vazados. Arlete se lembra que “ele tinha um livro, uma brochura, desse tamanho [espaçando as mãos em cerca de 1 metro], com os moldes” que traziam a inscrição “Italy”, além de numera- ção. A clientela pagava por metro quadrado e escolhia os moldes de preferência. Num volume da revista Ensino de 1911, a historiadora Solange Ferraz de Lima foi buscar a im- portância dos moldes na relação entre os pintores e sua clientela, a partir da seguinte comparação (Revista Ensino, 1911 apud LIMA 2008, p. 164, sic):

Achamos ainda interessantes e uteis, como distracção as crianças, os desenhos feitos com o auxilio de chapas (muito semelhantes a esses moldes recortados em aberto sobre papel resistente, por meio dos quaes os pintores fazem rapida- mente a decoração das paredes de nossas habitações).

Os moldes italianos de Maximo se perderam numa inundação ocorrida anos após o seu falecimento, assim como seus rolos para fazer texturas e outros utensílios de 4 Uma descrição eloquente das escariolas associadas ao casario histórico pelotense pode ser encontra- da em ROZISKY; ALVES; SANTOS (2014, p. 144): “As escaiolas na cidade de Pelotas recepcionam as pessoas, estão inseridas na decoração desde as paredes do hall de entrada, seguindo para corredores, salas de jantar, estar, área íntima, cozinha e até o banheiro. Com pinturas em formas e motivos próprios a cada ambiente, lembram os desenhos de mármores e granitos de diversas cores e formas. A base (estuque) é normalmente branca, lisa e lustrada, refletindo a luz e transmitindo uma sensação fria ao toque”.

5 Para maiores informações sobre as charqueadas de Pelotas e sua relação com a constituição do casco urbano local, queiram consultar GUTIERREZ (2004; 1994).

trabalho. Laváveis, os moldes teriam sido aplicados seguidamente, conforme a deman- da, em uma diversidade de programas ornamentais, dos quais não dispomos de registro até o momento.

Maximo Rodrigues contava invariavelmente com algumas das mais abastadas famí- lias pelotenses dentre seus contratantes habituais. Mas, sua condição profissional não foi a mesma ao longo de toda a carreira. Arlete se recorda que, por algum tempo, o pai teve um patrão, o senhor Barrocas, e supõe que os moldes possam ter sido comprados em sociedade com este patrão, pois eram caros. Desfeita a sociedade com Barrocas, o pintor chegou a ter dois empregados que o ajudavam e, “faziam de tudo”, antes de se ver obrigado a demitir ambos e seguir trabalhando solitariamente.

Para além do trabalho como pintor, decorador e construtor, Maximo Rodrigues com- petia em regatas de remo e era radioamador. Com sua “galena”, recebia notícias de todo o mundo e, também por isso, era muito procurado pela elite econômica local, ávida por informações do exterior. Com elevado estatuto social, participou de seletos círculos, como avalia a filha: “Imagina! Ele era um simples pintor e nós éramos sócios do Clube Português e do Brilhante. Ele nos levava para os bailes e lá se reunia com a turma dos grandões”.

Segundo a historiadora Beatriz Loner, os clubes surgidos em Pelotas no início do sé- culo XX

“tinham como critério básico de entrada não mais a nacionalidade ou profis- são, mas sim a posição social, em geral utilizando-se como critério de inclusão/ exclusão o custo da mensalidade e da joia de entrada, ao lado de outras regras, como roupa e conduta, embora continuasse havendo a discriminação pela cor da pele, ou seja, clubes exclusivos para brancos e para negros” (LONER; GILL; MAGALHÃES 2012, p. 83).

A presença da família de Maximo, “um simples pintor”, em agremiações frequenta- das por pessoas de classe social mais elevada evidencia uma ascensão econômica e um prestígio social incomuns, e teria representado inclusive a superação de barreiras discri- minatórias.

Arlete perdeu a mãe em 1963. Seis ou sete anos depois, em condições de atendimen- to médico não explicadas à época, faleceu também seu pai.