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Recolonização e os caminhos do patrimônio cultural

4.1 A construção de uma identidade missioneira

2. Recolonização e os caminhos do patrimônio cultural

Após a Guerra-Guaranítica (1773-1776), a recolonização foi implementada na segunda metade do século XIX, ainda no Império, através da lei de terras. Inicialmente essa ocu- pação se deu por migrantes paulistas, paranaenses e de outras regiões do Rio Grande do Sul, em sua maioria descendentes de portugueses que, motivados por objetivos polí- ticos de ampliar redutos eleitorais e manter espaços de poder, tanto a nível local quanto

nacional, de parte da elite agrária e intelectual, empenharam-se em repovoar os antigos centros urbanos da região missioneira. Além disso, chegaram famílias de ascendência açoriana que conquistaram “extensas glebas de terras [...] onde criaram estâncias dedi- cadas à pecuária” na região (Marchi, 2018, p. 84-85).

A chegada de novos grupos provoca alterações espaciais, como nos mostra Pommer (2009, p. 13) na medida em que se iniciou “a composição do perfil de uma nova popula- ção que, cultural e etnicamente, em quase nada lembrava os grupos missioneiros res- ponsáveis pela primeira ocupação da região”. Posteriormente, famílias de imigrantes de diversas etnias (alemães, italianos, poloneses, entre outros) repovoaram a localidade no entorno dos remanescentes do antigo povoado missioneiro que administrativamente conformava o distrito de Cruz Alta e posteriormente de Santo Ângelo.

No início de 1824, sob o patrocínio do governo imperial, temos a chegada de imi- grantes alemães ao Vale do Sinos, no Rio Grande do Sul, e algumas décadas depois, os religiosos inacianos da Companhia de Jesus que, segundo Marchi (2018, p. 305), tinham o objetivo de “dar suporte religioso, social, cultural e econômico para a organização e expansão das novas colônias de imigrantes alemães”, ou seja, os jesuítas2 foram “extre- mamente comprometidos com a organização da colônia, a evangelização e a produção intelectual” (Marchi, 2018, p. 314).

No entanto, segundo Zarth (2002, p. 186), foi somente em 1890, com a construção de uma ferrovia “que foram fundadas as primeiras colônias de imigrantes nas florestas do Noroeste, nas proximidades da fronteira, numa iniciativa do governo republicano”, embora desde o período monárquico tenha havido investimentos do Tesouro para essa iniciativa. E ainda, complementa Zarth (2018, p. 195), “o apoio do Estado e dos grupos do- minantes em favor da imigração, como em outras províncias, foi revestido de discursos ideológicos de cunho racista, relativos à suposta superioridade cultural dos imigrantes”.

A primeira providência oficial com relação aos sítios históricos missioneiros ocorreu através do Regulamento de Terras do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em 1922, institucionalizando a categoria de lugares históricos, de modo que São Miguel passou a ser o primeiro patrimônio histórico oficial reconhecido no Estado. Nesse sentido, o Re- gulamento de Terras assegurou que as ruínas de São Miguel Arcanjo ficassem definidas como sendo de domínio público, uma vez que elas se caracterizavam por serem um lugar notabilizado por fatos relevantes da evolução histórica do Estado. O Regulamento não mencionava as ruínas como sendo um monumento e sim um lugar, expressão que, no final do século XX, adquire novo significado (Nora, 1993), especialmente no que diz respeito à ideia de identidade e pertencimento (Meira, 2007).

No começo do século XX, o que se assistiu no Brasil foi a higienização nas grandes cidades, ou seja, a palavra de ordem era modernizar, civilizar, tanto com relação à estru- tura física, como ao afastamento da população marginal – os negros libertos e os deso- cupados. Isso somente toma vulto nas primeiras décadas do novo século, como escreve Abreu (2007, p. 268), pois, “nossas elites estavam muito mais preocupadas com a moder- nização das cidades do que com a recuperação de fragmentos do passado. Progresso e civilização foram as palavras de ordem”. Nesse sentido, complementa Abreu que “a 2 “Para o êxito do projeto, percebe-se a inserção destes religiosos em diversos espaços da vida pública rio-grandense, e, em consequência disso, a reativação do passado colonial jesuítico-guarani, como forma de respaldar simbolicamente as suas ações junto às instituições e também junto às comunidades, como ocorreu junto à população colonial da região das missões e que se manifestariam em distinto momentos [...] Portanto, sensibilizados pelas estruturas em ruínas, deixadas pelos seus antecessores missionários do período colonial, somava-se, também, no projeto implementado em Serro Azul, a possibilidade de reto- mar àquele passado, buscando fazer justiça à memória dos jesuítas daquele tempo. Para isso, atuariam em outras frentes, como nos espaços culturais e junto à intelectualidade da época.” (Marchi, 2018, p. 315; 321)

posição particular do Brasil enquanto país periférico sedento de figurar entre as grandes nações do Ocidente impedia a emergência de qualquer pensamento preservacionista ou restaurador de coisas do passado”.

Nessa ocasião, a região missioneira era lugar de expansão agrícola, com recursos na- turais a serem explorados, formação de cidades e de redutos eleitorais. Ressalte-se que a maior parte da elite missioneira era descendente de estrangeiros e, portanto, herdeira de um pensamento colonial expansionista e, por isso, sem estima pelos remanescentes arquitetônicos das reduções e tampouco percebiam o significado histórico e cultural. Prova disso é que se encontra, na região, ainda hoje, as pedras grés retiradas das cons- truções do período reducional que foram reaproveitadas3 para alicerces de muros, edifi- cações, escadarias e outros.

Após as benfeitorias para proteção das ruínas de São Miguel, nos anos de 1920, pro- movidas pelos dirigentes do Estado do Rio Grande do Sul, o patrimônio ficou recoberto do heroísmo da história do passado jesuítico-guarani e tornou-se representante do na- cionalismo rio-grandense, surgindo a missioneirização na região, alavancada pela eco- nomia e a vida nas colônias, que tinham atrelados “trabalho e religiosidade”.

Mas foi somente com Getúlio Vargas e a República Nova que, dentro de um proje- to modernizador da economia, se buscou promover um sentimento unificador para o país, em que se criava uma ligação entre o país colonial e o país independente. Nessa perspectiva, foi criado o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)4 através do decreto-lei 25 de 1937, que estabelecia uma política de Estado de preservação dos bens culturais materiais relacionados com a história brasileira, com suporte numa relação próxima entre tradição e modernidade. Após a criação do SPHAN, Carlos Drum- mond de Andrade e Lúcio Costa vieram às ruínas do Sítio Arqueológico de São Miguel, fato este que resultou na indicação técnica para a intervenção arquitetônica e sugestão para tombamento, o qual foi efetivado em 1938, de modo que, a partir de então, as ruí- nas foram reconhecidas como patrimônio cultural nacional. Além disso, segundo Meira (2007, p. 83-84), houve a sugestão de criação de “um abrigo para guardar e expor as ima- gens e peças esculpidas que se espalhavam no solo das antigas reduções”, sendo então construído o Museu das Missões.

Na década de 1960, a Unesco deu destaque ao turismo cultural “como atividade de promoção, desenvolvimento e sustento do patrimônio cultural” (Leal, 2008, p. 19). Assim, o consultor da Unesco, o arquiteto francês Michel Parent, esteve no Brasil no período de 1966/1967 com o objetivo de desenvolver “sua missão pelo Brasil após a Recomenda- ção de Paris de 1962, a qual tratava de um processo de reformulação de estratégias de atuação das políticas patrimoniais frente aos desafios do crescimento urbano e obras de infraestrutura que ameaçavam a paisagem” (Marchi, 2008, p. 161). Dessa consultoria resultou a indicação de São Miguel entre as cinco prioridades regionais para o turismo no “plano de desenvolvimento econômico do Brasil, que desejava criar um elo com Ar- gentina e Uruguai” e que fossem resolvidas as principais dificuldades de infraestrutura existentes, bem como, que se implementasse um produto turístico que atraísse visitan- tes para a região e que culminou na produção do espetáculo de “Som e Luz”, que desde então, acontece todas as noites após o fechamento para a visitação do Parque Histórico Nacional das Missões.

Esse espetáculo transcendeu a condição de atrativo turístico a partir do patrimônio e se transformou, ele mesmo, num patrimônio agregado a este. Pois, há quarenta anos, ele faz parte do cotidiano da pequena comunidade que de suas casas vê os reflexos das 3 Essa prática, em 1904, foi inclusive regulamentada na Lei Orçamentária do Município de Santo Ânge- lo, na seção referente a “Diversos Impostos” que estipulava valores para cada carrada de pedras retirada (Marchi, 2018).

luzes e escuta o som todas as noites5, realçando “os bens materiais através de uma his- tória romantizada que dá sentido ao lugar e que reforça os laços de identidade” daquela região missioneira (Marchi, 2018, p. 193).

No final dos anos de 1970, o Brasil indicou o sítio arqueológico de São Miguel como Patrimônio da Humanidade, como mostrado por Williams (2012, p. 294), pelo fato de re- conhecer “que o ‘estado’ jesuíta transcendia as fronteiras políticas modernas. Ela situava o sistema das missões no contexto do fenômeno global do colonialismo”, sendo, como tal, reconhecido em 1983.

Além disso, com base nesse argumento, foi feito um arranjo identitário especial, le- vando-se em conta a história do passado jesuítico-guarani que, de fato, embasou uma nova representação como forma de enfrentar as adversidades decorrentes da situação criada pela crise econômica dos anos de 1970/1980. É, portanto, com a perspectiva de atrair investimentos e estimular o crescimento econômico, que alguns municípios e mesmo algumas regiões buscam elementos locais para a afirmação de sua identidade, como veremos com maiores detalhes nos itens subsequentes.