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Missioneirismo: a criação de uma identidade missioneira

4.1 A construção de uma identidade missioneira

4. Missioneirismo: a criação de uma identidade missioneira

A região intitulada como missioneira7 se compõe de quatro municípios: São Luiz Gon- zaga, São Miguel das Missões, Santo Ângelo e São Nicolau, além de dois distritos: São João Batista e São Lourenço das Missões. São Borja8 não foi integrado como missioneiro no período analisado; no entanto atualmente os referenciais históricos têm sido repensados e retomados na tentativa de viabilizar o turismo em toda a região.

Embora seja utilizado o termo “missões” para identificar uma área geográfica, isso não se dá como caracterização de “uniformidade cultural e identitária”, uma vez que a região tida como missioneira é “legitimada pela memória e tradição”. Alguns municí- pios, contudo, situam-se geograficamente nessa região, mas “suas bases de fundação não estão vinculadas ao período colonial de domínio espanhol”, como é o caso de Cerro Largo, Dezesseis de Novembro, Eugênio de Castro, Guarani das Missões, Mato Queima- do, Pirapó, Salvador das Missões, São Paulo das Missões, São Pedro do Butiá, porque esses municípios estão ligados “à chegada de colonos alemães, italianos, poloneses e portugueses, na passagem do século XIX para o XX” (POMMER, 2008, p. 67).

Na segunda metade do século XX, o repovoamento da região noroeste do Rio Grande do Sul ocorreu pela atração exercida pelas terras férteis e muito “contribuiu para aumen- tar a destruição do patrimônio paisagístico e arquitetônico das antigas reduções, como se deu em São Luiz Gonzaga, São Borja e Santo Ângelo”. Diferentemente de outras áreas como São Lourenço das Missões, São João Batista, São Nicolau e São Miguel. Pois como escreve Pommer (2009, p. 13), “as ações culturais dos grupos que povoaram a região, especialmente a partir do século XX, foram definidoras para a valorização, ou não, do patrimônio reducional”.

Vale ressaltar que uma das marcas evidentes da região é “o produto das negociações que a população fez com o passado colonial (...) e se expressa na paisagem, na produção artística e nos discursos políticos”, e, complementa Pommer em sua tese de doutora- mento (2008, p. 13), embora essa negociação sempre tenha existido, ela foi mais incisiva nas “três últimas décadas do século XX”, quando se instala uma crise econômica nacio- 7 A produção da ideia de uma região missioneira como classificação feita para dar sentido ao mundo e estruturar uma comunidade imaginada para se apresentar como missioneira. Sua dimensão espacial se efetiva a partir do uso que sua população foi estimulada a fazer dos referenciais do passado colonial (POMMER, 2008, p. 21).

8 São Borja que, diferentemente das outras áreas as quais tiveram suas primeiras ocupações ligadas ao período reducional, não negociou com essas referências do passado, mas optou por enfatizar um período mais recente que lhe capacitasse apresentar-se como Terra dos Presidentes (POMMER, 2008, p. 21).

nal e regional, quando “a população local foi estimulada a voltar-se de forma especial para o período colonial da região, o que acabou erigindo um movimento cuja essência pretendeu alterar a composição das identidades locais”.

A crise se intensificou com as relações globalizadas/globalizantes9 que geraram o aumento do paradoxo global e local. Isso se deu pelo desenvolvimento da modernida- de, pela expansão das empresas transnacionais, pelas transformações tecnológicas dos meios de comunicação que proporcionaram uma intensa conexão em todas as partes do mundo, bem como em contrapartida, proporcionou o aparecimento de questões identitárias regionais.

Na contracorrente do processo de massificação cultural imposto pela globalização dos mercados, o Brasil, a partir de diferentes identidades regionais, começa a produzir uma tradição identitária inventada10, que se firma no âmbito de diferentes culturas e tradições locais e que, no caso da região das missões no Rio Grande do Sul, culminou na criação de uma identidade regional que foi cognominada de “missioneirismo”, sen- do realizada em dois níveis de produção simbólica: os monumentos representativos do passado histórico reducionais que compõem a paisagem missioneira original e outros monumentos e elementos agregados intencionalmente11, sobrepostos aos originais que articulam a memória local.

Nesse sentido, a memória é considerada a partir de uma dimensão cultural e ima- ginária da sociedade, uma vez que as representações do passado são criadas e/ou re- criadas e projetadas nesses espaços. Isso porque “a paisagem cultural obviamente não brota a partir do mundo físico”, ou seja, “é conduzida a compor-se de monumentos que articulam a memória, a tradição e a identidade de seus grupos humanos com objetivo de levá-los a reconhecerem-se e apresentassem-se como missioneiros”. Assim, afirma Pommer (2009, p. 78), o uso das referências12 do passado tornado tradição para ser acei- to como modo de vida do grupo deve ter suporte ao espaço cultural identificado como região Missioneira.

Para compor a paisagem com características missioneiras, referências foram criadas. Entre elas destacam-se: as placas indicativas nas estradas, com a inscrição: “Bem-vindo ao Caminho das Origens”; as réplicas da cruz missioneira colocadas em diversos mu- nicípios da região; o pórtico de acesso ao município de São Miguel, com gravuras em alto-relevo, que narra ao visitante uma versão da história; e o Projeto Rota das Missões que sustenta o desenvolvimento do turismo histórico ou ecoturismo à criação de uma identidade regional.

9 Isso acabou produzindo a impressão de que o mundo é uma “aldeia global” de cultura mundializada, que favorece o deslocamento de referências culturais e a fusão entre as mesmas nos mais diferentes e dis- tantes lugares. Esse processo, convencionalmente conhecido por “globalização”, está ligado diretamente ao intenso desenvolvimento técnico-científico.

10 Nesse sentido, Hobsbawm (2015, p. 8) explicam “tradição inventada” como “um conjunto de práti- cas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabe- lecer continuidade com um passado histórico apropriado”.

11 No ano de 1973, aconteceu a comemoração do Centenário de emancipação político-administrativa de Santo Ângelo. Essas comemorações foram eventos constantes em vários municípios gaúchos nesse período e articulavam referenciais da identidade local com temas referentes à realidade do período. As comemorações ocorriam no auge do período desenvolvimentista brasileiro e o passado jesuítico-guarani era manipulado no sentido de reforçar a pujança e o progresso. [...] Nesse sentido, foi instalado um mo- numento, com uma réplica da Cruz Missioneira original que está no Museu em São Miguel, no trevo de acesso à cidade em Entre-Ijuís. A cruz como símbolo e monumento seguiria sendo replicada em diferen- tes lugares pela cidade e região. (Marchi, 2018, p. 165)

12 Os elementos referenciais daquele modelo [colonial] servem para ressaltar exemplos de resistência, de luta, de bravura e intrepidez e vêm sendo utilizados como elementos singulares de identificação para a região (POMMER, 2009, p. 75).

Pommer (2009, p. 78-79) enfatiza uma peculiaridade da região: “a existência de um gaúcho missioneiro, portador da mesma têmpera do gaúcho de outras regiões do esta- do, a cavalo e o chapéu, mas singularizando-se na lança, marca que remete ao guerreiro guarani das reduções”, ou seja, “isso não significa que o gaúcho missioneiro não se com- preenda como rio-grandense”, porém, “antes de ser gaúcho13 no sentido lato, apresen- ta-se como missioneiro”.