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Interesse “local” da cultura?

É pacífico o entendimento de que o Município tem competência para legislar no tocante a normas de proteção ao Patrimônio Cultural, a partir de matérias de interesse local. Sabe-se que a discussão a respeito do significado e conteúdo da expressão interesse local é antiga. As constituições anteriores referiam-se mais especificamente a “peculiar” interesse.

Modernamente, mesmo com a reafirmação constitucional que dá competência aos municípios para legislarem sobre temas de interesse local, tem-se que tal expressão não significa interesse privativo do município. O que estabelece a Lei Maior é a prevalência do

interesse local. O interesse local deve prevalecer - sob a ótica da competência municipal -,

uma vez que é da natureza do poder municipal cuidar das necessidades locais essenciais. É competência do Município, pois, cuidar de tudo que se refere à sociedade local.

A competência do poder municipal de legislar sobre assuntos de irrestrito e inquestionável interesse local, não retira da expressão, ou dos limites de abrangência que ela permite, suscita ou autoriza, o caráter complexo e problemático do conceito, uma vez que este só pode ser definido quando diante de uma situação concreta. Haverá, sem dúvida, diferentes assuntos e diferentes interesses locais definidos, ou a serem definidos, nesta ampla possibilidade que a expressão permite enquadrar.

De igual modo, importa deixar claro que a temática envolta na expressão interesse

local não abarca tão somente a que faz referência ao interesse exclusivo do Município; senão

que aquele assunto que afeta, predominantemente, a população do lugar. Vale destacar o registro sentencial de Hely Lopes Meirelles, ao ensinar que “(...) o assunto de interesse local se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) de interesse para o Município, em relação ao Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância” (MEIRELLES, 1996, p.122).

Tem-se, pois, a competência do Município, estabelecida pela predominância do interesse. O que, aliás, é princípio geral e orientador em se tratando de repartição de competência quando envolvidas entidades que compõem o Estado federal.

O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse, segundo o qual a União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral,

nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local (...)

(SILVA, 2004, p. 476).

Reforça-se a convicção de que é no âmbito da esfera da administração do Município que estão presentes os fatos sociais e suas conseqüências para a vida das pessoas, na dinâmica diária que as envolve. Não pode o Poder Público municipal deixar de sentir e perceber, não apenas as necessidades que lhe são inerentes, mas, igualmente, de receber as demandas, cada vez mais complexas e abrangentes, que o interesse local faz emergir, impondo e exigindo soluções imediatas e, às vezes, cobranças veementes.

É a vida em sociedade, é a sociedade viva, no local em que os cidadãos existem e atuam concretamente que, pressionada pela realidade objetiva e dinâmica, concretizada nos dados que lhe dão vida, reafirma seu protagonismo e existência; não apenas no abstrato dos conceitos, mas na vida real e cotidiana que se processa num espaço determinado, de tempo e lugar, com todas as exigências de um interesse local efervescente e múltiplo, já que imbricado na realidade dos cidadãos destinatários das ações de um governo local municipal.

Deve ficar claro, anote-se, que existem temas, que embora digam respeito ao interesse nacional no seu todo, não deixam de conter aspectos que exigem regulamentação específica e própria para determinados locais, não devendo o Município fugir desta sua competência de prover legislação cabível ao interesse local em pauta (SANTOS, 1999). Esposamos a definição de interesse local, no sentido amplo, defendida por Hely Lopes Meirelles, cuja posição é mais consoante e coerente; afirmando que existem matérias que estão subordinadas à competência legislativa da União, Estados e Municípios.

Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização, etc; regulamentos sanitários municipais (MEIRELLES, 1996, p. 123).

Reafirma-se, assim, a convicção de que o interesse local não se verifica em determinadas matérias, mas em determinadas situações. Aspectos da mesma matéria, ensina Santos (1999), podem exigir tratamentos diferenciados pela União, pelos Estados e pelos Municípios. O que importa é que a noção de sistema seja levada sempre em conta, que não se

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perca a indispensável compatibilidade que deve haver entre os diversos diplomas legais e a Constituição.

Forte nesta visão de sistema e de compatibilidade entre diplomas legais diferentes e a Constituição, ressalte-se a assertiva incisiva:

Não se pode, a nosso ver, excluir matérias do rol dos temas a serem legislados pelo Município. A fórmula à qual recorreu o Constituinte revela que sempre que prevalecer um interesse do local o Município poderá editar sua própria lei, independente da matéria ter sido atribuída à competência de outro ente da Federação. Deve, é evidente, ser a norma municipal compatível com as normas já adotadas pela União e pelo Estado, se a essas entidades tiver sido atribuída a competência a respeito da matéria (SANTOS, 1999).

É de se considerar, igualmente, o fato de que há diferença substancial na forma com que a Constituição trata da competência legislativa de Estado e União e aquela com que define a competência do Município.

No caso de Estados e União as matérias de suas competências estão claramente definidas, ao passo que em relação ao Município a definição de competência é genérica. Já quanto à competência para suplementar a legislação federal e a estadual, busca-se como critério definidor das matérias passíveis de lei municipal, a existência ou não de competência administrativa por parte do Município. O ensinamento de Sundfeld é no sentido de que “os Municípios dispõem de poder de suplementar as normas (gerais) nacionais e as (suplementares) estaduais, toda vez que estas se refiram à atividade administrativa municipal” (SUNDFELD, 1993, p. 272-281).

Desta forma, parece claro e inquestionável que o Município tem competência para legislar em todas as circunstâncias que façam referência ao interesse local; da população, evidente e em última análise. Ao ter competência para legislar em prol de necessidades que são, intrínseca e radicalmente, de interesse local, tem dever o Município de atender todas as demandas que a realidade impõe.

E cada vez mais, dever-se-ia valorizar os anseios da comunidade, também naquilo que ela tem de consciência histórica, de identificação com o local, de relações de afeto e memória, de pertença e laços de raiz e tradição - o ambiente cultural com a face que a população lhe dá. Deste modo, o ambiente cultural, por tudo que representa, reafirma-se como parte integrante do interesse local. E, por conseguinte, consolida-se enquanto objeto estruturante da comunidade, razão pela qual se impõe que seja contemplado nas políticas públicas exeqüíveis sob a participação democrática e o protagonismo consciente e transformador da cidadania.

No capítulo subsequente, buscaremos demonstrar a dimensão cultural que há, também, no conceito de interesse local. Por que não se entender ou por que as demandas abarcadas no

interesse local não são também expressões das necessidades culturais, do interesse cultural,

que sem dúvida perpassa a vida e a história das pessoas e das comunidades definidas e localizadas? Por que a Cultura e o Patrimônio Cultural, que cada vez mais se comprova estão imbricados com o interesse local, não alcançam, pela sua natureza e significado, o destaque que devem ter na vida das comunidades e dos indivíduos? O que ou quem são a base mais consistente deste interesse local? Não seria a cultura e suas múltiplas faces e possibilidades, expressas no Patrimônio Cultural que é por, tudo que significa e simboliza, uma das colunas mestras a sustentar os verdadeiros e duradouros interesses da comunidade local?

Entendem-se perfeitamente condizentes essas indagações, uma vez que, não apenas é característica do ser humano, mas também necessidade para mantê-lo relacional com o ambiente e com os outros, esse sentimento de pertença a um local e a uma história que lhe dão identidade própria no trans/correr do tempo: seja no tempo passado; seja no tempo presente ou naquele que se constrói porque ainda é futuro.

São, pois, esses interesses locais da Cultura – sintetizados na abrangência rememorativa de Patrimônio Cultural – que em última análise motivam e conduzem os Homens e Mulheres, dando-lhes estimulante farnel para prosseguirem, geração após geração, a caminhada que os identifica como construtores de vida mais digna e de melhor qualidade porque movida por sentimentos, não de destruição, mas de promoção e proteção do meio ambiente cultural, onde as lembranças e as memórias, com toda a carga de limitações, complexidades e circunstâncias, são expressão de uma vitalidade dinâmica e prospectiva e não de nostalgias e anacronismos inconseqüentes.

3 INTERESSE LOCAL CULTURAL

Pretende-se neste capítulo buscar e apresentar elementos de reflexão e análise que possam sustentar a ideia de que há, igualmente, circunscrito ao sentido de interesse local, embasamento para, em se tratando de Cultura, reconhecer-se, também este, como interesse

local cultural sempre e quando estiver em cena o Patrimônio Cultural no e do Município.

Embora o aparecimento do Homem sobre a Terra ultrapasse cem mil anos, a consolidação daquilo que chamamos civilização remonta a apenas seis mil anos. E as civilizações começam a existir, enquanto expressão da cultura humana, somente neste período. É quando surgem os primeiros agrupamentos humanos procurando fixarem-se à terra; vale dizer a um espaço físico determinado, a um território. Estavam nascendo as primitivas cidades que, passados milhares de anos, ainda hoje mantêm significado similar aquele que lhes deu origem.

Os primeiros núcleos urbanos, as primitivas cidades que as civilizações reconhecem e proclamam formam-se à mercê da necessidade cultural do ser humano. A incipiente complexidade que a sua vida sedentária – ao fixar-se em um espaço territorial como centro de convívio social – revela, necessita de mínima organização para não gerar o caos da desorganização de quem aos poucos abandonava a vida nômade. No entender de Mosca e Bouthoul (1983, p. 14):

Para atingir certo grau de cultura, para criar o que se chama uma civilização, foi necessário, certamente, e antes de tudo, fixar as regras de uma moral social. Foi preciso, portanto, recolher e transmitir às gerações sucessivas uma quantidade de experiências e de conhecimentos, acumular os primeiros capitais sob forma de animais domésticos e de instrumentos agrícolas. Tudo isto não podia ser conseguido senão pela reunião de numerosos grupos humanos, a fim de formar uma sociedade única cuja organização estivesse fundada essencialmente sobre a colaboração, consciente ou inconsciente, dos indivíduos que dela fizessem parte.

Percebe-se, então, que desde o início da formação das sociedades humanas, estão presentes os elementos que, posteriormente, como visto no capítulo anterior, são demarcadores e estão na gênese do significado original de Cultura, qual seja o cultivar a terra, recolher, acumular e transmitir conhecimentos, expressão de uma “moral social”; identificadora dos grupos humanos e cuja compreensão as distingue daquela sociabilidade, também presente em outras espécies animais. Constata-se, assim, que desde os primórdios da organização social e política do Homem, há um traço cultural marcado pela valorização da terra, do território, de sentimentos comuns, de identidades coletivas, de trocas e organização.

O auge da chamada civilização grega, alguns milhares de anos mais tarde, não apenas confirma esta dimensão cultural imposta pela necessidade de organização social e política do Homem, como lança concepções e abordagens, teóricas e práticas, que alcançam nossos dias, com as devidas contextualizações e análises próprias do dinamismo das idéias sociais e políticas, vale dizer, de Cultura.

O que são – ou foram- as cidades gregas na concepção fundamental de que o homem é um ser social, é um ser da pólis, uma expressão da cidade, lugar onde a cultura, na multiplicidade de seus significados e dinâmicas, acontece individual e comunitariamente? Ao reafirmar, na prática de um espaço de convívio comunitário, a descoberta de Aristóteles de que o homem é um animal político, os gregos estabelecem os fundamentos da cidade-Estado,

cidade-comunidade, cidade-cultural, cidade-relacional, cidade-identidade que os novos

conhecimentos, através dos séculos, ainda tomam por base para expressar divergências ou referir convergências ou descobrir novas sínteses do pensamento social, político, cultural que a História confirma ou não reconhece, nos estudos que lhe são próprios.

No dizer de Chevalier (1982), a Cidade, a pólis, era para os gregos a unidade mais significativa da vida social, o agrupamento perfeito de seres humanos. Mesmo que não seja prioritário aqui, ressalve-se que, para ser considerado cidadão, era preciso ser grego, e não bárbaro, homem livre e não escravo. Mas, pode-se destacar ainda, na expressão do autor em referência (p.22), que:

A cidade era o ambiente, de caráter sagrado, que lhes permitia levar em comum a vida mais rica de significado, em total independência dos outros grupos humanos de mesma natureza. Ela constituía uma sociedade perfeita que se bastava a si própria em todos os domínios (a autárkeia).

Se os gregos tinham a cidade como lugar natural da sociedade dos homens, cumpre considerar que Aristóteles, ao definir a Cidade, no início de seu tratado A Política (Livro I, 2;

1252 a 24- 1253 a 37), a contrapõe a duas outras formas de agrupamento social: de um lado a

família, ao congregar indivíduos do mesmo sangue; de outra parte, a aldeia, que faz os vizinhos convergirem em razão de interesses (CHÂTELET, DUHAMEL, PISIER- KOUCHNES, 1985) salientando que, nas duas situações, o que está em jogo é a sobrevivência. No entanto, para Aristóteles a família e a aldeia não tinham a dimensão que ele queria dar à cidade, cujo fim seria o eu Zein, significando “Viver como convém que um

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sabe-se que, em outros textos, Aristóteles especifica, por um lado, que “o homem não é nem uma besta nem um Deus” – que é um meio termo entre esses extremos -, e, por outro, que faz parte da essência dele ser “um animal que possui o logos”, ou seja, a capacidade de falar de maneira sensata e de refletir sobre os seus atos. Desse modo, a famosa fórmula “o homem é um animal político” ( polis=cidade), significa que somente na Cidade – organização fundada não sobre a força bruta, não sobre interesses passageiros, não sobre as prescrições dos deuses – é que o homem pode realizar a virtude (= a capacidade) inscrita em sua essência (p.14-15).

Mais do que um corte epistemológico sobre as Ciências Sociais e, quem sabe, sobre a Ciência Política e a Antropologia especificamente, é possível compreender a pertinência de um olhar sobre a História, levando-se em conta a trajetória das sociedades humanas. Certamente, esta visão da História da Humanidade autorizará que não se hostilize a concepção que os gregos antigos tiveram de cidade, que em alguma medida “anunciava o Estado moderno. Daí a expressão, cunhada em nossos dias, de Cidade-Estado ou Estado-Cidade, ao mesmo tempo por analogia e contraste com a Nação-Estado ou Estado-Nação do futuro” (CHEVALIER, 1982, p.22).

As reflexões de Raymond Aron (1961)16 quando refere a “autenticidade das semelhanças”, servem para justificar “a despeito das diferenças”, a necessidade que o ser humano tem, ainda hoje, com todas as características e conseqüências da pós-modernidade, avanços tecnológicos e comunicacionais, globalização e desterritorialização, de voltar-se para um “lócus” que possa dizê-lo seu e onde lhe seja possível expressar sua individualidade e viver sua contingência de ser social e comunitário.