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Contraditória e paradoxalmente, quanto mais se internacionaliza o espaço, abrandam- se fronteiras entre países, e se quer mercado mundial unificado e onipotente, renascem sentimentos “que se contrapõem a esses efeitos tendentes à centralização. Isso se deve ao fato de que só podemos nos situar no mundo a partir de nosso próprio território, a partir de nossas próprias referências culturais (POMMER, 2009, p. 48).

Essas referências culturais formam as memórias individual e coletiva, as quais dão identidade cultural “a um país, estado, cidade ou comunidade”, pois, no entender de Le Goff (1997, p. 138):

(...) é a memória dos habitantes que faz com que eles percebam, na fisionomia da cidade, sua própria história de vida, suas experiências sociais e lutas cotidianas. A memória é, pois, imprescindível na medida em que esclarece sobre o vínculo entre a sucessão de gerações e o tempo histórico que as acompanha. Sem isso, a população urbana não tem condições de compreender a história de sua cidade, como seu espaço urbano foi produzido pelos homens através dos tempos, nem a origem do processo que a caracterizou. Enfim, sem a memória não se pode situar na própria cidade, pois perde-se o elo afetivo que propicia a relação habitante-cidade, impossibilitando ao morador de se reconhecer enquanto cidadão de direitos e deveres e sujeito da história.

Poder-se-ia lembrar, ainda, que Pierre Nora distingue memória e história, entendendo aquela como afetiva e esta como intelectual, e afirmando que a memória é vida, em constante evolução (NORA, 1993, p. 09). De outra parte, ainda Le Goff, ao analisar estas afirmações de Nora, constata que “toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso pela media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas, e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas (1997, p. 467).

Ainda analisando as afirmações de Nora, é possível perceber, no entendimento de Le Goff, uma história que se poderia denominar de “nova”, uma vez que a partir dela nota-se um esforço para “criar uma história científica a partir da memória coletiva”, podendo ser interpretada como “uma revolução da memória”, pois ela cumpriria uma “rotação” ao redor de alguns eixos considerados fundamentais, por abordarem “temáticas abertamente contemporâneas (...) e uma iniciativa decididamente retrospectiva”, “a renúncia a uma temporalidade linear”, em proveito dos tempos vividos múltiplos, nos níveis em que o individual se enraíza no social e no coletivo” (Lingüística, Demografia, Economia, Biologia, Cultura).

A partir desta concepção em que a vida concreta das pessoas funda-se na realidade do social e do coletivo, com as mais amplas significações e abrangências, entende-se a necessidade de “lugares” da memória coletiva, dando suporte à história que acontece no presente. Daí que Nora considera “lugares da memória” coletiva

(...) aqueles em que uma sociedade, qualquer que seja, nação, família, etnia, partido, declare voluntariamente suas lembranças ou as reencontre como uma parte necessária de sua personalidade: lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares simbólicos, como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações: esses memoriais têm sua história. Mas fazer essa história significa reverter o sentido da palavra para confiar a memória dos lugares aos verdadeiros lugares da memória: Estados, meios sociais e políticos, comunidades, experiências históricas ou de gerações movidas a constituir seus arquivos em função dos usos diferentes que eles fazem da memória (NORA apud BREFE, 1996, p. 112).

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É certo que para se chegar a estas conclusões, registrem-se a crescente e complexa evolução das sociedades, as novas descobertas da ciência, o aprimoramento das metodologias e instrumentos de análise, nos últimos anos, que foram importantes para esclarecer “a importância do papel que a memória coletiva desempenha”, além de fazer parte “das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando, todos, pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção (LE GOFF, 1997, p. 469).

Por outro lado, o processo acelerado de urbanização que a segunda metade do século XX particularmente ensejou por razões as mais diversas, operou profundas modificações nas cidades, passando-se a ter delas uma compreensão de conjunto vivo, não feita só de construções materiais, mas também de pessoas. A cidade passou a ter vida, onde o passado e suas referências e significados não apenas puderam ser preservados e valorizados, mas foram, igualmente, integrados à dinâmica que movimenta, acelera e as fazem crescer quase sem medidas, num ritmo desordenado que, muitas vezes, foge ao controle de quem as planeja, gerencia e administra.

O espaço-cidade passa a ser importante para o Patrimônio Cultual porque é nele que a vida da grande maioria das pessoas acontece, têm cenários, emoções, sentimentos, conflitos, convergências, antagonismos, paz, enfim a vida como ela é. A cidade, local da Cultura, não é deserta, mas fomenta e fermenta um dinamismo, onde espaços e grupos, onde o material e o imaterial adquirem significados, vida, numa simbiose que constitui marcas, convívios, olhares, onde pessoas e lugares não podem ser alheios.

A partir desta simbiose, onde esta imbricação se concretiza, cabe afirmar que

não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, umas a outras, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca (HALBWACHS, 1990, p. 143).

Numa outra constatação, Halbwachs deixa claro o entendimento de que a memória é individual e social, e quem lembra é o indivíduo; não significando isto que, por ser individual, a memória se caracterize como isolada, impermeável, fechada. Antes, carece, amiúde, da lembrança de terceiros, uma vez que “um homem para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade” (1990, p. 143).

Tais reflexões, dentre tantas outras, alcançam acentuada importância para confirmar o

interesse local – que se pode reafirmar cultural, porque expressão da coletividade – no

entendimento que se dá à competência do Município para legislar em matéria de preservação e proteção do Patrimônio Cultural, quando disserem, indubitavelmente, de sua realidade intrínseca e circunscrita ao que se dimensiona como entidade político-administrativa, com autonomia constitucionalmente assegurada.

Os Municípios, mas particularmente aqueles espaços urbanos que formam a cidade – lugar onde se dá concretamente as diferentes e multifacetadas vivências que identificam e motivam indivíduos e grupos sociais – não podem olvidar, desconsiderar ou escamotear isto que lhes é essencial à sua natureza de instituição político-administrativa que agrega e motiva a vida em comum. São essas normativas expressas ou tácitas, de ordenamento jurídico- administrativo ou de comportamentos aceitos e reconhecidos coletivamente que dão, não apenas contornos sócio-jurídico-antropológicos momentâneos, mas expressam laços duradouros de convívio e solidariedade, de antagonismos e lutas, de sonhos e realizações, de esperanças e tristezas, de sombras e luzes que marcam e identificam indivíduos e comunidades.

E são, também, esses elementos dinâmicos, autônomos, convincentes, que lhes dá esse amálgama imperceptível, mas real e verdadeiro, que introjecta comportamentos e símbolos, consolidando culturas, identidades, cosmovisões que, sintetizados em conhecimentos, crenças, valores, normas e símbolos resultam em Patrimônio Cultural próprio.