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Interesse “local”, território e identidade cultural

O entendimento de interesse local está associado, diretamente, à existência de grupos humanos, vivendo em determinado espaço geográfico. No caso do presente estudo, este

18 A referência à aquisição da nacionalidade, pelo Jus Soli, é porque se entende ser a que melhor expressa e

reforça a idéia de lugar, de lócus, de ambiente físico ligada ao ato pelo qual o Homem passa a ter consciência da sua existência: o nascimento

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interesse local situa-se no âmbito do município e de sua população, enquanto aquele, ente

federado, institucionalmente fazendo parte de um todo político-administrativo, e esta formando o ambiente de uma comunidade de pessoas.

Não iremos alongar considerações sobre as diferentes conceituações e abordagens referentes a termos, especialmente território, espaço, pertencimento, identidade, não apenas em razão da vastidão a que já chegaram os estudiosos desses temas, mas porque, entende-se necessário referir os conceitos que são, por pertinência cultural, utilizados – assim se quer -, mais apropriadamente.

Entendemos ressaltar, por importante, a diferença de conceitos que existe entre espaço e território, feita por Raffestin (1998): ele considera que espaço relaciona-se, mais apropriadamente, ao patrimônio natural, que existe em determinada região delimitada. Já o conceito de território significa a apropriação do espaço através da ação social com sujeitos diversos.

Temos, então, atores atuando neste espaço, nascendo daí identidades relacionadas a limites geográficos. O território nasce como produto de uma “ação social que, de forma concreta e abstrata, se apropria de um espaço (tanto física como simbolicamente), por isso denominado um processo de construção social” (FLORES, 2006).

A conceituação de Tizon (1995) para território reforça o significado que se quer dar a

interesse local da cultura, ao entendê-lo como ambiente de múltiplas referências, de vida e

de ação, reveladoras do pensamento da comunidade, que se associam aos processos pelos quais se torna possível a construção de sua identidade própria.

Percebe-se que o território não é mero espaço geográfico ou físico, mas estabelece relações sociais, procedimentos coletivos, construção de identidade, o sentimento de pertencimento, solidariedades interpessoais e grupais. Aos poucos, vai se construindo uma identidade social, política, cultural.

A construção de uma identidade cultural, centrada nos modos de vida, nos saberes e nas tecnologias locais é que vai determinar, através das relações nos espaços em que se movimentam e atuam – e aqui se poderia falar em rua, vila, bairro, cidade – as formas e expressões simbólicas, códigos comuns que vão expressar pertencimento, territorialidade, porque há uma interligação permanente e dinâmica entre as pessoas e o local, definindo e manifestando seus interesses múltiplos.

A construção de identidade não está dissociada de território e vice-versa. Território, pertencimento, identidade, processam interesses e sentimentos convergentes, embora possam ser diferentes, na vida das pessoas e da comunidade.

Na esteira de que o interesse local, por si só, é expressão vazia e descontextualizada, pouco expressa ou terá outras abrangências, é que se pode afirmar que a incessante defesa de um território e de uma identidade significa, nos propósitos que aqui se explicitam, a “redescoberta do sentido de lugar e da comunidade”, como explicita Santos (2002). Daí que o

interesse local determina também identidade própria, imbricação com o lugar e expressão

solidificada e solidária de comunidade.

O interesse local da cultura está no Município porque, em certa medida, pode-se

afirmar que cultura e territorialidade têm significados idênticos: são sinônimos. Assim, também, Cultura e Cidadania não são díspares, mas antes, expressões que se integram e completam nas significações multifacetadas que carregam e revelam.

Entende-se fundamental, diante da realidade dinâmica e acelerada, pós-moderna ou moderna, não só globalizada, mas também enraizada, que o interesse local para uma Cultura com sentido e uma Identidade re/encontrada possa estar na Cidade que ainda é possível re/criar. Porque “quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação” (SANTOS, 1998, p. 61).

Certamente, não se há de chover no molhado quando se advoga, com ênfase e convicção animadoras, a importância de se pensar a Cultura e o Patrimônio Cultural, a partir do interesse local que ele começa a despertar e confirmar, a partir do Município. De um lado se pôde constatar e lamentar

a descontinuidade administrativa dos municípios, a inexistência de políticas culturais locais, a falta de investimento na formação de técnicos na área, a suscetibilidade às pressões de grupos da comunidade, o forte jogo de interesses imobiliários, a aceitação generalizada de uma noção de progresso e desenvolvimento associada à verticalização e a instauração de processos de renovação contínua das cidades sobre elas mesmas são fatores que podem esclarecer o fato de as cidades do interior (...) estarem cumprindo o mesmo destino da capital, já identificado por Claude Lévi- Strauss em 1953: cidades que passam do frescor à decrepitude sem conseguirem ser antigas (LÉVI-STRAUSS apud SANTOS, 2001, p.3).

De outra parte, já é possível acender os faróis da esperança, quando a referida autora, ao lembrar a concepção de Patrimônio Cultural em toda a amplitude e complexidade, vê sinais de que ele

começa a se impor como um dos principais componentes no processo de planejamento e ordenação da dinâmica de crescimento das cidades e como um dos itens estratégicos na afirmação de identidades de grupos e comunidades, transcendendo a ideia fundadora da nacionalidade em um contexto de globalização (FONSECA apud RODRIGUES, 1997).

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Não resta dúvida de que os Municípios estão obrigados a protegerem o Patrimônio Cultural. A todos os entes da Federação Brasileira está afeto este dever de proteção:

Sendo assim, seria inadmissível que a Constituição não desse competência para os estados e municípios legislarem sobre a forma como protegerão seus patrimônio culturais. Aliás, os três entes estão obrigados a cuidar, proteger, resguardar todos os bens culturais, independente do ente a que tenha referência.

Trata-se de um patrimônio da União que deverá ser protegido pelo estado e pelo município, de um patrimônio estadual que deverá ser protegido pela União e pelo Município, e de um patrimônio municipal que deverá ser protegido pela União e pelo Estado (SOUZA FILHO, 1997, p.83).

Cada vez mais, cresce de importância o papel que o Município deve desempenhar no intuito de proteger e preservar o Patrimônio Cultural. Além disso, ampliam-se ainda mais, não apenas as concepções, mas também a quantidade que elas enumeram ao querer se saber de qual Patrimônio Cultural se trata. A lista oferecida pela ONU, recentemente, relaciona todos os tipos de Patrimônio Cultural por ela considerados:

Cidades históricas; paisagens culturais; territórios sagrados; herança cultural submersa; museus; artesanato; herança documental/digital; documentos cinematográficos; tradições orais; línguas; festivais folclóricos; ritos e crenças; música e canções; artes cênicas; medicina tradicional; literatura; tradições culinárias; esportes e jogos (COSTA, 2005, s/n ).

Diante desta gama tão diversa de tipos de Patrimônio Cultural, será que teremos condições e meios de re/conhecer quais são – ou quais não seriam – os que têm interesse

local? E qual legislação municipal, a partir do interesse local, os protegeria? Ou então,

indagar, na preocupação de profissionais de museus, segundo Heloisa Helena Costa: “Como coletar e conservar, por exemplo, territórios sagrados, medicina tradicional ou herança cultural submersa, sem correr o risco de se cometer graves erros e inadequações?” (2005, s/n). Reafirmando preocupações, a autora em referência quer alertar para a necessidade, diante desses novos desafios, que se impõem:

reciclar ideias, especializar-se em novas tecnologias de informação e de comunicação, trabalhar as questões da gestão institucional “para poder atender adequada e eficazmente à inadiável demanda que ‘diz respeito à salvaguarda do patrimônio cultural universal (COSTA, 2005, s/n).

Ao constatar que se vive momento onde um dos traços marcantes da realidade cultural é o “reconhecimento do patrimônio”, a autora advoga a necessidade de “estimular na

população a tomada de consciência sobre a importância de preservar o patrimônio comum a todos os cidadãos, o patrimônio universal”, pois entende que “a compreensão e a valorização das raízes histórico-culturais de cada comunidade só tendem a favorecer uma melhor integração da sociedade civil” (COSTA, 2005).

Partindo desta premissa, a de que a compreensão e a valorização da história da comunidade são importantes para consolidar vínculos entre eles, Heloisa Helena Costa enfatiza que praticando a integração efetiva, os pertencentes à determinada comunidade poderão dar mais importância à qualidade de vida. Alcançando-se melhor qualidade de vida, será possível refazer “o vínculo social atualmente tão desgastado pela quase absoluta perda de valores éticos, culturais, espirituais, dando lugar a um estado de violência e desagregação”.

De tudo o que se abordou até aqui, fica claro a impossibilidade de o Município se omitir sobre o papel que lhe cabe na preservação e proteção do Patrimônio Cultural. Em outras palavras, quando se trata de interesse local, de proteger e preservar o Patrimônio Cultural, o grande e principal responsável é o Município, que não pode se omitir.

Reafirmam-se as assertivas e premissas expressas – no intuito de deixar claro o papel e a responsabilidade do Município -, com o ensinamento de Souza Filho (2010, p. 120):

Compreende peculiar interesse do município e evidente interesse local o cuidar das coisas da cidade, e é nela que estão concentrados os bens culturais, sejam federais, estaduais ou locais. (...) Os imóveis, com predominância dos conjuntos e prédios urbanos, mas também muitas vezes as paisagens notáveis e mesmo os sítios arqueológicos, paleontológicos ou ecológicos, estão inseridos dentro das cidades, exigindo serviços e obrigações às autoridades municipais além da obrigação constitucional de protegê-los. A existência destes bens gera problemas de ordem urbanística, de trânsito, de ambientação, de visualização, de poluição, que devem ser resolvidos por normas municipais, exigindo que as autoridades locais contem com serviços especiais, que fruto de sua autonomia, devem auto-organizar.

As abordagens que mais interessam são exatamente estas. Procurar esclarecer e re/afirmar o papel que o Município tem na definição de instrumentos legais que tenham preocupação com interesse local, expresso nas circunstâncias que aqui são ressaltadas, pelo cuidado em proteger e preservar o Patrimônio Cultural.

É preciso que fique claro, do ponto de vista de competência legislativa e do que seja interesse local imbricado a Patrimônio Cultural, para se pensar na adoção de práticas que possam atender tais objetivos. Com Souza Filho (2010, p. 119) reafirma-se, com ênfase e clareza, que

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O poder legislativo federal define o que é patrimônio nacional; o estadual o que é patrimônio estadual; e as leis municipais dizem o que é o patrimônio cultural local. Mas, independente destas três esferas de definições, o poder público está obrigado a proteger os bens culturais legalmente definidos como tais. Assim, não importa qual ente define como cultural um determinado bem, todos são obrigados a protegê-lo, ainda que o considere desimportante para a esfera do poder que representam. Desta forma, qualquer município, com ou sem lei municipal, é obrigado a proteger e respeitar os bens culturais integrantes do patrimônio nacional ou estaduais existentes no seu território.

Resta incontestável o papel e a participação do Município, seja com lei própria específica ou ao amparo e determinação dos mais diversos instrumentos legais - a começar pela Constituição Federal -, que foram promulgadas para estas amplas finalidades de proteção, restauro, promoção, valorização, preservação e resgate do Patrimônio Cultural.

Ao tempo em que revela e legitima a história cultural do Município, ressignificando valores, identidades, símbolos, crenças, dignidade de vida, o Patrimônio Cultural deve se tornar um elo de múltiplas alternativas comunitárias postas a serviço da grande parcela da população que, quase sempre, pouco valoriza e preserva, porque pouco conhece e pouco significado diz ao seu cotidiano.

Preservar, proteger, conservar, resgatar, valorizar, devem ser conjugados diretamente na prática concreta das ações que precisam acontecer para que o Patrimônio Cultural tenha a densidade histórica que a vida das pessoas, individualmente ou em comunidade, significa. Caso contrário, embora apresentando inegável interesse local, o Patrimônio Cultural, mesmo que ostente algum esplendor, não conseguirá revelar a verdadeira face dos homens, dos lugares, da história que, por sucessivas gerações, foi construída com a consciência de quem deu vida, e a própria vida muitas vezes, para que o presente fosse mais que um obscuro, expungível e imemorado intervalo entre o futuro e o passado.

Sendo assim, e para que tal não aconteça e no intuito de destacar e oferecer aos que se interessam ou têm obrigações, por qualquer razão, com a preservação, promoção, valorização e proteção dos Bens Culturais, especialmente aqueles que estão situados em área do território do Município, no capítulo a seguir, apresentam-se um conjunto de instrumentos legais ou administrativos que, almeja-se, possam servir aos intentos e aos propósitos de tantos quantos, na esfera pública ou no círculo privado, compreendem a importância e a necessidade do

Patrimônio Cultural como essencial à dignidade e à qualidade da vida, que se quer, sempre,

justa, equânime e solidária e cada vez mais ambientada planetariamente, a começar, sem nenhuma dúvida, nos espaços locais, na ambiência concreta e contígua em que o acontecer vital dos indivíduos e das comunidades se processa e se concretiza: o Município.

No capítulo a seguir, intenta-se, à guisa de contribuição ao esforço de se entender o

Patrimônio Cultural como parte integrante da vida das pessoas e da comunidade, elencar um

conjunto de reflexões e de instrumentos legais e administrativos existentes, passíveis de serem postos a serviço da preservação, promoção e proteção do Patrimônio Cultural, mormente aquele situado no território do Município.

Há um acúmulo significativo de legislação protetiva, em grande parte não aplicada ou desconhecida, a partir do que estabelece a Constituição Federal e de inúmeras outras leis infraconstitucionais, que poderia contribuir, eficazmente, para a elaboração de uma adequada e exeqüível legislação de Políticas Públicas pertinentes ao processo de valorização e tutela e de inserção desses Bens Culturais, como ferramenta valiosa e eficaz no processo de desenvolvimento integral e sustentável das comunidades municipais.

Tais normas, voltadas à proteção Patrimonial Cultural, de igual forma, são também aplicáveis no planejamento do presente e do futuro dos centros urbanos, concentradores hoje da maioria da população e, muitas vezes à deriva, quanto ao rumo de sua cidadania, direitos e deveres mais elementares de convivência e civilidade que, muito pouco ainda, se pode esperar de compromissos e responsabilidades na valorização do Patrimônio Cultural comum e no sentimento de pertença à determinada comunidade e seus laços de história e vida relacionada e integrada a dimensões simbólicas duradouras para além do tangível e do momento temporal determinado e específico.

Portanto, há de se crer que a maioria da população vivendo em cidades, seja alvo primeiro de preocupações governamentais, não apenas quanto à qualidade de vida - quase sempre expressa, na maioria das vezes, somente em obras físicas -, mas, igualmente, em dimensões e realidades culturais, nem sempre perceptíveis, palpáveis e manifestas materialmente, que não aniquilem a história individual e coletiva que os trouxe até os dias atuais.

Assim, de certo modo, ao se enunciar e se proceder à concisa e delimitada análise que se entende cabível e concernente, quer se propor ou talvez re/lembrar a existência de um conjunto de instrumentos legais e administrativos, que sejam adequados e úteis, pela sua possibilidade prática, de serem mecanismos eficazes na implementação de alternativas viáveis e cabíveis para a Proteção Legal e a valorização do Patrimônio Cultural, de Interesse Local, existente no Município.

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