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Vera tinha 18 anos e trabalhava num restaurante quando conheceu o marido, 7 anos mais velho. Ele trabalhava num supermercado e tinha um passado militar, na Guerra Colonial.

Namoraram e depois passaram a viver juntos. Vera engravida e fica muito feliz. Quando lhe conta, ele reage muito mal e pressiona-a a fazer um aborto. Foi o primeiro momento violento. Grávida de 4 meses, Vera foi a um local ilegal, para interromper a gravidez, sem condições de higiene e segurança, acompanhada pelo cunhado e pelo namorado. Vera chorou e perdeu os sentidos.

Começaram a ser constantes as agressões verbais, os insultos, os maus tratos.

Vera volta a engravidar. Desta vez, ele não lhe exige que interrompa a gravidez, mas sujeita-a, durante os 9 meses, a maus tratos psicológicos. Não a deixava sair de casa, a não ser para trabalhar, com o argumento de que as grávidas não devem andar na rua. As cenas de ciúmes eram constantes e Vera era acusada de andar com vários homens. O controlo que ele exercia era permanente, não podia sequer ir à janela sem que isso originasse agressões verbais e ameaças.

O marido obrigava-a a práticas sexuais que não desejava e era insultada durante as relações sexuais. Muitas vezes chorava, mas ele ignorava.

As agressões físicas eram esporádicas, Vera nunca sabia quando surgiam. Inicialmente, não lhe batia à frente dos filhos ou de outras pessoas. Mas ameaçava-a constantemente, fazia-lhe cenas de ciúmes, insultava-a, fechava-lhe a porta de casa à chave se ela chegasse depois da hora esperada. A relação dele com a filha foi sempre pautada por repressão, agressividade e desprezo. Vera tendia a desculpá-lo e esforçava-se por encontrar justificações no seu passado como militar.

Quando a filha tinha 8 anos, Vera decidiu que queria voltar a engravidar. Teve um rapaz. O marido passou a andar permanentemente com uma navalha, o que lhe causava muito medo. Nunca adormecia antes dele, nem fechava a porta da casa de banho ou o cortinado da banheira. Vivia num permanente terror. Até então, só tinha falado deste assunto com a sua vizinha, que ouvia as discussões e que mostrou várias vezes interesse em ajudá-la e em chamar a polícia. Vera pediu que não o fizesse porque era ameaçada de morte pelo marido.

Um dia, Vera contou à médica de família o que se passava. A filha tinha 17 anos e o filho 8 anos. A médica encaminhou a família para acompanhamento psicológico incluindo o pai, que, embora resistisse, acabou por ir às sessões marcadas. A psicóloga diagnosticou um desequilíbrio nas crianças, que tinham um exagerado medo do pai. Perante este diagnóstico, a psicóloga intimou-o a começar um tratamento, sob pena de ser dado início a um processo para lhe retirar os filhos. Ele aceitou cumprir o plano terapêutico porque não queria perder os filhos, mas demonstrava um permanente

Vera decide então sair de casa e refugia-se em casa da irmã, sozinha, sem os filhos. Aguentou 17 dias. Regressou a casa. Sobretudo por causa dos filhos, mas Vera reconhece que sentia muitas saudades dele. Quando a filha fez 18 anos, saiu de casa. Embora Vera lhe pedisse para não o fazer, a filha explicou-lhe que não queria viver mais tempo com o pai e que preferia ir viver com o seu namorado. Mantiveram-se sempre próximas. A filha passou a referir-se ao pai como “o teu marido”.

Vera ficou mais 10 anos em casa. Continuou a ser violentada permanentemente. Embora dormisse no quarto que a filha tinha deixado vago, ele obrigava-a a ter relações sexuais. Vera descobre que o marido tinha armas em casa, o que a aterroriza ainda mais. Costumava abater pássaros durante a noite, como diversão.

Vera está cada vez mais mergulhada numa depressão profunda, auto mutila-se, esfola- se até arrancar a pele e fazer sangue. Tenta o suicídio várias vezes. Passa a ser seguida por um psiquiatra e é medicada. Vera está exausta de tantos anos de violência. Decide finalmente sair de casa. A psicóloga encaminha-a para a AMCV, que prepara com Vera a sua saída. Em poucos dias, Vera reúne secretamente alguma roupa que vai colocando em casa de uma amiga. Numa manhã, depois de o marido ir para o trabalho, sai de casa e é recebida numa casa de abrigo. Partiu o cartão do telemóvel e durante alguns meses não falou com ninguém das suas relações habituais, nem com os filhos. Ao filho, que ficou a viver com o pai, na altura com 21 anos, deixou uma carta de despedida. Algum tempo antes, quando lhe anunciou a sua intenção de se separar, ele reagiu muito mal e declarou que não lhe perdoaria essa atitude.

Vera escreve num caderno as suas memórias. Reconhece que poderia ter poupado muitos anos de sofrimento, se tivesse decidido separar-se mais cedo, mas acha que antes não havia tanta informação e apoio às mulheres vítimas de violência. Como exemplo, recorda uma ocasião em que foi à polícia e lhe foi dito que sem marcas não havia nada a fazer ou outra, em que uma assistente social lhe perguntou se ela tinha coragem de deixar os filhos.

Esteve cerca de um ano em casa de abrigo, conseguiu um trabalho e arrendou uma casa, onde vive sozinha, está a “experimentar ser feliz”. Hoje, Vera sente-se muito mais forte, já não tem medo de encontrar o seu ex-marido, embora reconheça que vive atormentada com as imagens de tantos anos de sofrimento. Se não tivesse o apoio da associação, seria impossível ter saído da situação em que estava.

A relação com a sua filha mantém-se. Sempre foram confidentes e continuam muito próximas. O filho recusa-se a falar com ela. As suas irmãs, que durante os anos em que esteve casada se afastaram, voltaram a telefonar-lhe. Não pensa em voltar a ter relações com outros homens, tem demasiado medo que a história se repita.

Vera, agora com 52 anos, teve conhecimento que o processo de violação foi arquivado e que o processo-crime de violência doméstica teve como resultado a condenação do agressor a 8 meses de prisão, com pena de suspensa e uma indemnização de 2500€.