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Lágrimas e performance em “Nothing Compares 2 U”, de Sinead

CAPÍTULO 2 – A GÊNESE DA CULTURA DO VIDEOCLIPE

2.2 Clipe como itinerário da cultura midiática

2.2.7 Lágrimas e performance em “Nothing Compares 2 U”, de Sinead

Dois anos após a imagem do “holograma” do vocalista do Dire Straits, presente no videoclipe “Money For Nothing”, estampar a capa da coletânea homônima do grupo, foi a vez da aproximação entre a imagética presente na capa de um álbum encontrar ressonância definitiva no videoclipe. Se, com o Dire Straits, a imagem que aparecia no clipe só ilustrou a capa de um álbum após o suposto sucesso do videoclipe; com a cantora irlandesa Sinéad O’Connor, a relação entre capa de disco e clipe foi ainda mais estreita. A imagem do rosto de Sinead O’Connor sobre um fundo preto presente no videoclipe da canção “Nothing Compares 2 U” (Fig. 22), dirigido por John Maybury, ocupou a capa do álbum “I Do Not Want What I Haven’t Got”, lançado em 1990. Temos, dessa forma, uma extensão da imagética do clipe no álbum e vice-versa.

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Fig. 22

“Nothing Compares 2 U” é uma faixa composta pelo cantor Prince, nesta ocasião, já ocupando um lugar de destaque na música, sobretudo em função do sucesso de canções como “Purple Rain”. A canção encena o arrependimento e a dor de uma pessoa diante do fim de um relacionamento. Possui poucos instrumentais, uma base de teclados e bateria nos momentos em que nos aproximamos do refrão. O arranjo destaca, através do aumento do volume em relação aos outros instrumentais, a voz de Sinéad O’Connor. Temos, portanto, uma faixa com forte vocação melancólica e a convocação, através da voz, de uma presença da cantora. A convocação desta presença é reforçada pela maneira com que Sinéad O’Connor aparece no videoclipe: com seu peculiar corte de cabelo “raspado”, rosto sem maquiagem e um fundo preto. Como estamos diante de um plano 3X4, o que nos é permitido visualizar na cena audiovisual é o pescoço e parte dos ombros da cantora, mas notamos que ela está vestida de preto, com o pescoço encoberto. O fundo também preto reforça e destaca o rosto de Sinéad O’Connor e podemos sugerir que este rosto da cantora vira uma espécie de paisagem, principalmente, porque o videoclipe possui poucos cortes e somos confrontados diante desta imagem. Uma paisagem pressupõe uma observação mais delongada, atenta e a presença do rosto de Sinéad O’Connor incessantemente no vídeo nos encaminha para este tipo de convocação. A melancolia presente na faixa é complementada por imagens externas, filmadas em Paris, em que vemos esculturas, parques, folhas e, em alguns momentos, a cantora caminhando por estes cenários. Num determinando momento, conseguimos ver a roupa inteira da cantora (Fig. 23) e somos convocados a uma interpretação que nos permite sugerir que se trata de

81 uma vestimenta religiosa. A presença de elementos religiosos27, bem como disposições ligadas a representações da melancolia, estão bastante presentes na obra e na construção do senso de personalidade de Sinéad O’Connor. O videoclipe aponta também para a construção de um cenário ligado ao universo melancólico capaz de gerar uma matriz em torno de certos clichês na materialização da ausência e da naturalização, por exemplo, da cidade de Paris como uma espécie de lugar utópico para a melancolia.

Fig. 23

Diante dos ditames do gênero musical, é preciso compreendermos as inúmeras estratégias de endereçamento que os produtos protagonizados por cantoras abarcam. Por isso, não à toa, é comum reconhecermos que, no universo das cantoras, há uma extrema valorização da questão da interpretação, da forma de cantar e de se colocar diante de uma letra, que, muitas vezes, não é composta por ela. Um dos argumentos mais destacados pela crítica musical, em “Nothing Compares 2 U”, é o fato de se tratar de uma faixa, já anteriormente gravada pelo compositor Prince, mas que “ganhou” em densidade e em emoção, ao ser interpretada por Sinéad O’Connor. Noções valorativas que classificam uma boa ou má interpretação de uma canção obedecem a critérios consensuais que, muitas vezes, são construídos midiaticamente. Dessa forma, a maneira com a qual a crítica musical elege, premia, destaca artistas funciona como um importante termômetro para que se reconheça o que é que está em jogo nas formas de distinção sugeridas pela crítica. Destacamos que a crítica musical também passa a criar padrões, formas de sugerir novas balizas de valores para os artistas. Uma artista como Senéad O’Connor, com um

27 Sinéad teve sua carreira marcada por fatos polêmicos envolvendo sua relação com a religião. Foi alvo de

críticas e protestos em todo o planeta, em 1992, ao rasgar uma foto do Papa João Paulo II, no programa “Saturday Night Live”, um dos mais assistidos dos EUA.

82 histórico de álbuns com uma vocação melancólica, músicas que tanto falam de amor quanto do cotidiano da Irlanda, além de faixas que trazem sonoridades oriundas de premissas da música tradicional (folk) irlandesa costumam ser envoltas de uma forte carga de autenticidade junto às instâncias críticas da música. Com “Nothing Compares 2 U” não teria sido diferente: trata-se de uma canção de dor de amor que, aos olhos da crítica, teria “ganho” em dramaticidade a partir da interpretação de O’Connor.

É possível observar, tomando o universo das cantoras como uma forma de endereçamento por gênero musical, que há, também, um horizonte de expectativas sobre a questão da performance destas artistas no palco. Shows e turnês de cantoras costumam trazer à tona não somente aparatos de ordem musical. Mas, sobretudo, disposições cênicas. É particular do universo das cantoras a expectativa por uma encenação musical, tomando aqui a idéia de cênico como o teatral, a forma de organização e concepção do show como “universo particular”, conceito, reverberação da própria condição artística. Estamos nos referindo, portanto, à idéia de performance musical que nasce, no âmbito das cantoras, praticamente “colada” com a noção de interpretação e teatralização. A performance de uma cantora pressupõe, num horizonte de expectativas, reconhecer que ela “se transforma” no palco, lida com toda sua emoção – mesmo que se saiba que se trata de um ato cênico e de interpretação. Com Senéad O’Connor, as performances com altas doses de dramaticidade parecem fazer parte da construção da personalidade desta artista. É neste sentido, que o videoclipe “Nothing Compares 2 U”, parece funcionar como extensão desta expectativa em torno das performances musicais de O’Connor: quando o diretor John Maybury, que trabalhou como parceiro artístico da cantora em vários clipes, opta por colocá-la num plano 3X4, sobre um fundo preto, parece estar premente o princípio de que toda a atenção da performance vai estar concentarada no rosto da cantora. E mais: qualquer movimento ou expressão facial de Sinéad O’Connor se agiganta em função da proximidade do plano. A estratégia de aproximação do rosto da cantora, nos faz percorrer sua face em busca de elementos que tensionem aquele rosto- paisagem. Muitas vezes, uma leve olhada para o fora-de-campo ou um esgarçamento irônico dos lábios da cantora funcionam como indicativos de que estamos muito, mas muito próximos desta mulher – conseguindo vê-la em todos os seus detalhes, todas as suas mínimas expressões. É então que, ao nos aproximarmos do final do videoclipe, a

83 tensão da canção vai se acentuando, a expressividade de Sinéad O’Connor também vai se agigantando, até que vemos que uma gota de lágrima escorre do seu olho (Fig. 24). E o que nos parece evocar, além de uma clara indagação se a cantora realmente chorou ao gravar aquela performance, é o que significa a lágrima no ambiente televisivo. Sabemos que a lágrima funciona como um estatuto comprobatório da dramaticidade. Chorar em cena, já alertaram inúmeros atores, é tarefa das mais difíceis. Chorar no ambiente musical é comprovação não só de envolvimento, mas também de extensividade com o conteúdo do que se canta. Neste caso, notamos que Sinéad O’Connor chora cantando uma letra que não é sua. Constrói-se, dessa forma, através de um videoclipe, uma eficiente estratégia de legitimação no campo das intérpretes. “Nothing Compares 2 U” funciona como um objeto audiovisual que situa Sinéad O’Connor como uma cantora afeita a tematizações e cenários melancólicos, intérprete que se envolve com a letra que canta e que reverbera preocupações existenciais nos conteúdos de suas canções.

Fig. 24