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O posicionamento de um artista em “China Girl”, de David Bowie

CAPÍTULO 2 – A GÊNESE DA CULTURA DO VIDEOCLIPE

2.2 Clipe como itinerário da cultura midiática

2.2.3 O posicionamento de um artista em “China Girl”, de David Bowie

Enquanto “Video Killed the Radio Star” reforça premissas e tensões da relação entre o som e a imagem no mercado musical, um outro videoclipe, “China Girl”, protagonizado pelo cantor e compositor David Bowie, em 1983, nos ajuda a compreender como foi se construindo um senso de personalidade para um artista no mercado musical. Destacamos que David Bowie é um dos mais performáticos artistas do mercado de música, tendo constituído sua carreira, sobretudo, entre os anos 60 e 80, a partir de uma matriz imagética que reforçava um caráter de androginia nas suas performances. Em 1970, na capa do álbum "The Man Who Sold the World", o artista aparece usando um vestido, numa prévia do que viria a ser seu inconfundível estilo andrógino, imortalizado

70 na criação de um personagem-alter-ego Ziggy Stardust. Foi no disco conceitual “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, contando a história de um alienígina “rock star” que aterrissa em um mundo predestinado a acabar em cinco anos, que Bowie se legitimou como um performer, fazendo sua primeira turnê mundial em 1972, repleta de números musicais com roupas exuberantes, maquiagem e luzes no palco. Trata-se de um momento em que a indústria fonográfica se volta para o ambíguo, para um artista que “joga” com os gêneros masculino e feminino em suas performances. Para dar conta daquele tipo de postura artística, começa-se a empregar o termo “glam rock”22, como uma referência ao rock marcado pelos trajes e performances com muitos cílios postiços, purpurinas, saltos altos, batons, lantejoulas e paetês dos cantores. Para reconhecer como o videoclipe é o lugar de construção de um senso de personalidade para um artista se posicionar no mercado, escolhemos como clipe para síntese das estratégias discursivas envolvendo David Bowie, “China Girl”, dirigido por David Mallet, em 1983.

“China Girl” é um dos singles do álbum “Let’s Dance”, em que David Bowie deixa para trás não só a alcunha de Ziggy Stardust, mas também uma fase em que flerta com a soul music, entre os anos de 1974 e 1976. “Let’s Dance” é um disco considerado pela crítica como “mais pop”, acessível, com melodias fáceis e a presença de um produtor musical marcante por trás das faixas: Nile Rodgers, que já havia produzido álbuns importantes da disco music de artistas como Chic e Sister Sledge, além do disco “Diana”, de Diana Ross. É preciso reconhecer o lugar que o álbum “Let’s Dance” e a faixa “China Girl” ocupam na dinâmica performática de David Bowie. Há, aparentemente, uma premente necessidade de “mudar de personagem”, trocar de roupa, sair da encarnação do andrógino Ziggy Stardust e aparecer de “cara lavada” - como David Bowie mesmo. Não à toa, Bowie lançou um álbum intitulado “Let’s Dance” e não à toa optou por trazer Nile Rodgers à frente da produção de seu trabalho: vindo de uma “escola” da soul music e do rythm & blues, chamado popularmente nos Estados Unidos de R&B, ou seja, a música negra, extremamente melódica, de canções com estruturas simples e muitos refrões, Rodgers produziu um David Bowie “para as massas”: um artista que deixa de lado as

22 O “glam rock” também chamado de “glitter rock” contemplou um conjunto de artistas de rock, no final

dos anos 60 e início dos anos 70, que se vestiam de forma andrógina, com maquiagem vistosas, trajes extravagantes. Exemplos seriam David Bowie durante a fase de Ziggy Stardust e Aladdin Sane, além de New York Dolls, Secos e Molhados, entre outros. (SHUKER, 1999: p. 49)

71 roupas extravagantes, o personagem de um alienígena roqueiro, para virar um homem loiro, bonito, másculo, que fala de amor em suas letras e conquista o coração de uma garota oriental, como sintetiza a letra da faixa “China Girl”. O videoclipe, logicamente, vai funcionar como principal artefato de legitimação desta nova imagem de Bowie. A certa altura do vídeo, somos apresentados a um David Bowie que canta de paletó cinza, rosto “lavado”, sem as maquiagens exorbitantes de Ziggy Stardust e acaricia o rosto da modelo Geeling Ying (Fig.12), protagonista do clipe junto ao cantor. Mais adiante, frente-a-frente, Bowie e Geeling Ying (Fig.13) vão cada vez mais se aproximando, fazendo com que o videoclipe seja uma espécie de percurso entre o flerte e a materialização do encontro entre um cantor e uma oriental, ao som de uma letra que evoca um certo fetiche em torno de uma “garota chinesa”.

Fig. 12 Fig. 13

A canção “China Girl” possui uma série de referências que a situam como uma faixa longe dos padrões musicais adotados por David Bowie desde a sua aparição com a balada “Space Oddity” e, principalmente, distante das guitarras e do peso do rock do disco “Hunky Dory” e “Young Americans”. Aqui, tem-se a produção de Nile Rodgers atuando no sentido de “diminuir” o impacto do som de Bowie, apelando para uma gravação com pouca instrumentação e aumento do volume da voz do cantor – numa clara evidência de sua aparição enquanto performer masculino. A verve de sex symbol musical seria reforçada pelo momento em que o videoclipe de “China Girl” se aproxima do final: vemos o mar, as ondas batendo na areia e, numa clara referência à clássica cena de amor entre Burt Lancaster e Deborah Kerr, em “A Um Passo da Eternidade”, David Bowie e a modelo Geeling Ying aparecem abraçados, aos beijos, numa praia deserta, numa idílica

72 cena em contra-luz (Fig.14). Aos beijos, somos apresentados, então, a uma cena que reforça ainda mais a postura sexual do clipe: os dois estão, aparentemente, nus, fazendo amor à beira-mar (Fig.15) – uma espécie de final feliz para a “crônica musical” da faixa “China Girl”.

Fig.14 Fig. 15