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Reverberações caleidoscópicas em “Bohemian Rhapsody”, do

CAPÍTULO 2 – A GÊNESE DA CULTURA DO VIDEOCLIPE

2.2 Clipe como itinerário da cultura midiática

2.2.1 Reverberações caleidoscópicas em “Bohemian Rhapsody”, do

Este princípio pode ser evidenciado no videoclipe “Bohemian Rhapsody”, do grupo Queen19, lançado em 1975. Reconhecer a relevância deste clipe para o Queen

significa perceber algumas nuances de posicionamento do próprio grupo no mercado musical. Poderíamos dizer que, não é à toa, “Bohemian Rhapsody” aparece como uma das primeiras e mais celebradas experiências do videoclipe. Nosso ponto de partida sinaliza que é preciso reconhecer que o videoclipe como midiatização de uma performance musical precisa de um “terreno” fértil e propício para poder ser concebido como estratégia de posicionamento no mercado musical. Não à toa, o videoclipe encontrou, junto ao grupo inglês Queen, um ambiente para ser “eleito” como ferramenta de discurso no mercado na música. É preciso destacar o grupo Queen como uma das bandas que mais valorizava a questão da performance nos seus shows. Centrada na figura do vocalista Freddie Mercure, o Queen marcou o cenário do rock mundial ao inserir um tipo de performance que agregava, ao peso do rock, com guitarras, baixo e bateria, instrumentos como piano e harpa – mais comuns na chamada música erudita. Não só isso: a vocalização particular de Freddie Mercure, o gestual que mesclava traços marcadamente masculinos com uma certa “leveza” e atitudes femininas - assim como no glam rock e em figuras emblemáticas como David Bowie - colocou o Queen como um grupo com notada vocação performática. Esta vocação performática era reforçada pela música “Bohemian Rhapsody”, single do álbum “A Night at The Opera”, ou seja, a primeira canção a ser trabalhada no lançamento do disco, que trazia uma estrutura musical incomum (a faixa não possui um clássico refrão), unindo um certo clima de “ópera” ou de música erudita na sua introdução ao peso do rock ao longo da faixa. Desta aparente estranheza entre o “erudito” e o rock, gerando uma matriz que a classificaria como uma canção de rock progressivo, surgiria a possibilidade de uma tradução da música em imagem de maneira peculiar. Em “Bohemian Rhapsody”, somos apresentados

19 Ao creditarmos o videoclipe como sendo do artista que o protagoniza, sabemos que estamos criando uma

elipse: uma vez que o videoclipe é dirigido por alguém. No entanto, as implicações da própria indústria fonográfica, das premiações e das instâncias de consagração de videoclipes dirige-se, preferencialmente, para os artistas protagonistas dos clipes como sendo os “autores” destes audiovisuais. Medida semelhante (a de creditar os clipes aos artistas e não aos diretores) foi adotada pelo Andrew Goodwin ao longo de seu livro Dancing in The Distraction Factory (1992).

62 ao grupo Queen diante de imagens que sugerem a idéia de eco, reverberação. Por se tratar de uma canção que se inicia simulando uma forma erudita de cantar, como numa ópera, a solução visual encontrada para adequar este princípio musical foi estender a imagem do vocalista Freddie Mercury como uma espécie de “jogo de espelhos” (Fig.1).

Fig.1

Esta extensão da imagem evoca um princípio visual que é atrelado ao longo do videoclipe, com os “momentos eruditos” da canção sendo sintetizados a partir da lógica da repetição de uma imagem. Se vemos, num primeiro momento, a imagem do vocalista repetida infinitamente gerando uma noção de profundidade (Fig.1), temos a consciência, a partir da própria disposição imagética, de que estes rostos repetidos estão localizados num ambiente televisivo – há um brilho e uma forma de apresentação da imagem que caracterizam a chamada imagem eletrônica da televisão, formada a partir de pontos eletrônicos e pela aparente ausência de definição e profundidade de campo. Como viemos observando, o princípio de repetição da imagem – como evocação a um alongamento vocal do forma de cantar erudita – se repete no vídeo “Bohemian Rhapsody”, só que através de uma formatação imagética caleidoscópica (Fig.2).

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Fig. 2

Estamos observando dois princípios de tradução visual no videoclipe de elementos plásticos presentes na canção “Bohemian Rhapsody”. Estes dois princípios são apresentados aqui porque, ao que nos parece, foram basilares na maneira com que este audiovisual foi encarado na ocasião de seu lançamento, em 1975. Ao contrário de experiências anteriores de “traduções visuais” de canções, como “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever”, dos Beatles, que geraram vídeos musicais mais “psicodélicos” e menos “musicais”, com “Bohemian Rhapsody” tinha-se, aparentemente, o materialização visual de uma canção, em suas imagens repetidas e caleidoscópicas como analogia ao “som erudito” e à presença física do grupo se apresentado como nas suas já notadas performances musicais. “Bohemian Rhapsody” vai gerar a matriz imagética mais disseminada no terreno do videoclipe: um audiovisual que une momentos em que assistimos à presença física da banda tocando e cantando, a momentos encenados fora daquela cena audiovisual, ou seja, o ambiente limitado pelo plano e pela edição do produto audiovisual. Vale a pena destacarmos que “Bohemian Rhapsody” também coloca em relevo a versatilidade do vocalista Freddie Mercury, que aparece no clipe cantando (Fig.3) e tocando piano (Fig.4), passando a ocupar um lugar privilegiado e de destaque no terreno do rock – que vem de uma história, sobretudo junto ao punk, de uma despreocupação com o cantar, o tocar, enaltecendo certas características de rebeldia não só na vida particular de seus artistas, mas, sobretudo, no palco.

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Fig.3 Fig.4

Neste sentido, parece premente afirmarmos que a baliza do gênero musical está angariada na forte presença cênica do vocalista Freddie Mercury e toda evidência da sua performance captada no videoclipe. O gestual, a caracterizada forma de se posicionar no palco e de se relacionar com a câmera e com o microfone, são apontamentos de uma certa pedagogia da performance através do qual o astro de rock teve que passar para se construir enquanto um objeto midiático. Inegável assinalarmos que o videoclipe e as performances ao vivo dos artistas são princípios para a construção de valores no mercado musical. Saber se posicionar no palco, saber “atuar” e, conseqüentemente, conquistar o público nunca foi algo naturalizado, mas sim, parte de um construto que tem como importante fator os produtos visuais atrelados ao mercado de música.

Há, ainda, na investigação de “Bohemian Rhapsody”, contribuições que podem ser evidenciadas a partir do seu contexto de produção. A entrada da Warner (uma gravadora) na produção de vídeos musicais desencadeou, na Inglaterra nos anos 70, uma problemática em torno das estratégias de lançamento de produtos da indústria fonográfica. Porque, até então, as primeiras experiências com vídeos musicais, feitas, por exemplo, pelos Beatles, tinham sido realizadas a partir dos interesses pessoais dos artistas em criar obras visuais a partir de suas canções. A entrada de uma gravadora na produção de vídeos sinaliza a relevância deste artefato de forma institucional no mercado de música. A indústria fonográfica inglesa encontrava-se polarizada entre a Warner Brothers Records e a EMI e, cada uma, criava suas estratégias de circulação de produtos que pudessem “surpreender” a concorrente – e, logicamente, fazer vender mais discos e catapultar a execução das principais músicas dos álbuns nas paradas radiofônicas. Como

65 relata Bruce Gowers, diretor do videoclipe “Bohemian Rhapsody” no filme documentário “The Story of Bohemian Rhapsody” (2004), ele, que produzia números musicais para a TV inglesa, foi chamado por Freddie Mercury, vocalista do grupo Queen, para o que seria “o mais arrojado lançamento musical de toda a Inglaterra” (JOHNSTON, 2004)20.

Ao invés de se apresentar ao vivo no programa de TV “Top of The Pops” – os produtores do atrativo televisivo estavam interessados em criar suas estratégias de lançamento de artistas que fossem primeiro em seu palco que no concorrente, “The Kenny Everett Video Show” – o Queen enviou, através de sua gravadora EMI, um vídeo para ser exibido no programa.

Ao anunciarem a presença do grupo Queen no “Top of The Pops” da TV londrina, na verdade, os jovens ingleses assistiram a um vídeo contendo o registro de um ato performático ao vivo da banda acompanhado de imagens caleidoscópicas com os rostos de integrantes do grupo. A gravadora EMI inscrevia um mesmo objeto (a canção “Bohemian Rhapsody”) em dois suportes distintos: o álbum fonográfico e o vídeo exibido na televisão. “Bohemian Rhapsody”, dessa forma, se configura como um clipe que evidencia apontamentos visuais para uma canção notadamente “estranha” no mercado musical naquele momento, acentua as caracterizações performáticas do cantor- protagonista colocando em relevo características que o faziam “mais” que um simples cantor de rock (além de cantar, Freddie Mercury toca piano no videoclipe) também tornando evidente uma certa idiossincrasia do vocalista, assim como posiciona o Queen como a banda inglesa capaz de subverter certas convenções de lançamentos de produtos da indústria fonográfica na ocasião. “Bohemian Rhapsody” é, portanto, um produto basilar para se compreender como a investigação do videoclipe serve como alicerce das formas de posicionamento de artistas no mercado musical.

20 Depoimento ao filme documentário “The Story of Bohemian Rhapsody” (2004), dirigido por Carl

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2.2.2. O vídeo (quase) matou o rock em “Vídeo Killed the Radio Star”, do The