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QUADRO 3 – TRABALHOS ANALISADOS CONFORME O TIPO DE DEFICIÊNCIA 2001 –

5 RELATO E ANÁLISE DOS CASOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO TRABALHO

5.3 O caso Lígia

5.3.3 Lígia em situação real de trabalho

Lígia trabalha há um ano e meio em um das lojas da principal rede privada de supermercados de São Luís, na função de embaladora. Assim como os demais sujeitos do estudo, sua contratação foi intermediada pelo CEEE Helena Antipoff, que sugeriu seu nome à empresa e acompanhou todo o processo de seleção e contratação.

O desejo de trabalhar aparece tanto nos relatos de Lígia, quanto nos de sua mãe, Dona Januária, mesmo antes de trabalhar efetivamente no mercado competitivo, revelando a importância do trabalho como constituinte da subjetividade humana. Sua mãe confessa que acreditava que ela nunca iria trabalhar, “mas ela sempre queria trabalhar, trabalhar, trabalhar”. E ainda complementa: “por ela, ela já estava trabalhando há muito tempo. A gente é que segurava, mas quando veio agora essa parceria desse colégio, vamos ver o que dá” (JANUÁRIA).

A fala de Lígia corrobora a fala da mãe, atribuindo ao seu desejo a facilidade de sua contratação. Quando questionada se acredita ter sido difícil encontrar um emprego, diz que não porque já estava ansiosa para trabalhar. “Estava mesmo querendo trabalhar”. Vemos assim, como nos lembra Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994, p. 40) que “a questão do Desejo e de sua satisfação fazem parte integrante do trabalho”.

É importante perceber, no entanto, que o destaque para o seu desejo não subtrai outros fatores do processo. A despeito de sua dificuldade em compreender os aspectos sociais, educacionais e econômicos de sua inserção no mundo do trabalho, reproduz o discurso, legítimo em nossa visão, da abertura de vagas por via legal. Como dito por Lígia, “se você não colocar alguém deficiente, vai pagar uma multa”.

A jovem é responsável por colocar nas sacolas as compras feitas pelos clientes que são registradas pelo caixa. Nesse trabalho, redefinido pela empresa como auxiliar do caixa, os embaladores podem ser requisitados a realizarem outras atividades, conforme demanda e necessidade, como, por exemplo, repor as mercadorias deixadas pelos clientes ou trocar o dinheiro para o caixa quando solicitado.

Pedro afirma que a ideia de o embalador ser unicamente responsável por embalar mercadorias é uma concepção restrita, que já está sendo revista pela empresa. Essa função já começou a ser denominada de “auxiliar de caixa”, uma vez que, na verdade, “o embalador tem diversas outras funções, diversas outras atividades a serem feitas”.

se ele entra para a frente de loja, onde ele está no cargo de embalador, nessa posição ele já tem diversas possibilidades de entender o supermercado como um

todo, toda essa dinâmica do supermercado, porque ele vai ter que entender de onde vêm as mercadorias, para onde que elas vão. Ele vai ter que entender que essa mercadoria fica em tal sessão, porque faz parte da descrição do cargo de embalador: ‘fazer devolução de mercadorias’. [...] ele vai ter que pegar esse produto e fazer a devolução desse produto. Então ele vai ter que conhecer esse produto e saber de qual sessão é, ele vai ter que ir lá e colocar. Então ele já está conhecendo um pouquinho do que é o trabalho do repositor. [...] E automaticamente ele vai conhecer a operação do caixa (PEDRO).

Vemos, mais uma vez, a apropriação ideológica do discurso da empresa, como estratégia para diluir tensões por meio da linguagem, em favor do capital. Pela linguagem atribuímos significado e damos sentido às práticas de trabalho, o que significa dizer que legitimamos (e assumimos) o ethos da sociedade capitalista.

A jovem tem uma carga horária de trabalho de sete horas e vinte minutos diariamente, à exceção dos domingos em que trabalha seis horas corridas, com uma folga semanal. O horário de entrada e saída varia mensalmente conforme escala feita pela gerência. Ela é sempre pontual na entrada, mas parece se entediar durante o turno e fica mais agitada quando se aproxima o fim do seu expediente.

Nos dias das nossas observações, embora chegasse no horário, demorava cerca de 10 a 15 minutos para iniciar as atividades em seu posto, sempre justificando que estava no banheiro. Essa demora também ocorria quando sai para o intervalo de 15 minutos a que os funcionários têm direito. Segundo sua chefe imediata, isso acontece porque ela gosta de circular pelo supermercado e conversar com as pessoas, mas também porque fantasia muito sobre suas atribuições e estas fantasias parecem se revelar quando passeia vigiando os setores e os demais funcionários.

Mesmo a coordenadora da frente de loja afirmando que Lígia “é até melhor do que quem é normal e cumpre seu horário certinho” (BÁRBARA), passa boa parte do tempo fiscalizando seu trabalho e não a deixa realizar nenhuma outra atividade que ela se disponha a fazer, assim como a maior parte dos demais funcionários, que a questionam quando ela resolve embalar um presente ou auxiliar um cliente quando a situação assim a requisita, por exemplo.

Em nossas observações de sua rotina de trabalho, presenciamos suas respostas nas várias dessas situações imprevistas. Em uma delas, quando da chegada de um cliente, usuário de cadeira de rodas, ao supermercado, Lígia rapidamente saiu de seu posto e foi em direção ao cliente e sua acompanhante, ajudando-o a passar de sua cadeira para o carro motorizado que o supermercado oferece aos clientes com dificuldade de locomoção. Em seguida, explicou o funcionamento do carro e o acompanhou, por alguns metros, andando devagar ao seu lado, como que para se certificar de que ele havia dominado seu uso e

controle. Em alguns momentos, segurava o volante para ajustar a direção e dizia, com calma: “devagar”. Um funcionário, responsável pela segurança, que a observava, sugeriu que ela o acompanhasse “mais um pouquinho”. Neste momento, a chefe de frente de loja, que parecia “controlar” a cena à distância, interveio e impediu que Lígia continuasse ajudando o cliente, determinando ao funcionário que designasse outra pessoa para fazer isso, “menos a Lígia”. O funcionário que havia sugerido o acompanhamento considerou: “é falta de confiança não é?” (buscando minha aprovação). “Se ela ensinou a usar o carro, podia muito bem acompanhá-lo!”.

Por vezes, Lígia é retirada da função de embaladora e fica no balcão de lacre, responsável por selar as sacolas e bolsas que os clientes trazem consigo antes de adentrarem o supermercado. Nesta tarefa passa a maior parte do tempo em pé e quase nunca é solicitada a fazer algo diferente, ainda que seja responsável com os horários e demonstre ter iniciativa em situações imprevistas, conforme relatamos anteriormente. Verificamos, portanto, que Lígia, é obrigada a atender à vontade do outro (em detrimento da sua), que se manifesta na organização do seu ambiente de trabalho e nas relações que ali se estruturam. E, quando assim o faz, é “obrigada” a abrir mão de seu corpo físico e nervoso (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 1994).

Ainda assim, mesmo tendo o ambiente de trabalho bastante controlado, demonstra compreender o funcionamento de todo o supermercado e as diferentes funções dos demais funcionários; tem iniciativa; interage com os colegas de trabalho e com os clientes, solicitando ajuda ou prestando informações quando requisitada. Em seu relato expressa fazer o seu trabalho bem, mas que o julga cansativo por ter que ficar todo o tempo em pé.

Conforme asseverou Pedro, não observamos nenhum indício de mudança ou adaptação do ambiente de trabalho que tenha sido feita com o objetivo de facilitar a atuação de Lígia, como, por exemplo, adaptações ergonômicas51 para proporcionar mais conforto (um banco de altura adequada, por exemplo); consideração de pausas no decorrer do dia; diversificação das atividades ao longo da jornada de trabalho, de modo a contribuir para o seu envolvimento/desafio nas tarefas, etc. Tampouco observamos uma tentativa de confiar à Lígia outras atividades e auxiliá-la em suas possíveis dificuldades. Fica evidente que há na maior parte do tempo uma atitude persecutória e de desconfiança em relação à

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As condições ergonômicas de trabalho, no Brasil, são regulamentadas pela Norma Regulamentadora nº 17, do Ministério do Trabalho e Emprego, que prevê a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores em geral.

sua capacidade de realizar tarefas. Ou, ao contrário, há uma atitude condescendente quanto a liberações antes do horário, que a sua chefia imediata justifica pelo fato de ela ficar agitada ou por acreditar que ela se alimenta “mal” em casa e por isso sempre se sente fraca e reclama de tonturas.

Os relatos de Lígia destacam a participação do outro como fator que pode dificultar ou facilitar sua atuação sobre o meio, como trabalhadora. Como quando o fiscal a tira de uma atividade, em que ela acredita estar ajudando, e a coloca em outra função, mais mecânica e simples. Quando questionada sobre o que dificulta seu trabalho, ela não hesita em dizer que o que mais a atrapalha “são os fiscais”.

Constatamos assim que os fatores que dificultam e que facilitam a atuação de Lígia têm estreita relação com a carga psíquica de seu trabalho, uma vez que esta carga “resulta da confrontação do desejo do trabalhador à injunção do empregador, contida na organização do trabalho” (idem, ibidem, p. 28).

Em nossas observações, percebemos que Lígia fica visivelmente incomodada com a desconfiança em sua capacidade e os “olhares de vigília” sobre ela, que reforçam o seu estigma. Goffman (2008, p. 25) destaca que quando o “defeito” é visível (ou conhecido), “quando, em resumo, é uma pessoa desacreditada, é provável que ela sinta que estar presente entre normais a expõe cruamente a invasões de privacidade”.

Por outro lado, a interação com o outro (que a ajuda, a acolhe) também é percebida por Lígia como facilitador de sua atividade. Ela assevera: “Quem me ajudava mais era a Teresinha, a Teresinha é tesoureira”. E quando questionamos como ela a ajudava, ela responde: “Lígia, come na hora certa, na hora certinha, tudo. Mas os outros não tão nem aí”.

Embora Lígia tenha passado por várias oficinas durante seu percurso educacional no CEEE Helena Antipoff não relaciona o aprendizado na instituição com sua atuação no trabalho. Faz essa relação com outros aprendizados, em cursos que realizou em outros espaços e até em sua atividade na equoterapia. Questionada como essa atividade a ajuda em seu trabalho, ela justifica que tem a ver com a “coordenação, o controle, tudo” (LÍGIA).

É interessante perceber como a atividade de equoterapia parece ser a única em que Lígia exerce algum controle e que, ao contrário do estigma de deficiente que carrega em casa e que é reforçado pela mãe no ambiente de trabalho, desempenha com eficiência. O comportamento da jovem neste esporte demonstra quão poderosos são os desafios e as provisões do meio sociocultural no desenvolvimento dos sujeitos.

As observações em campo e os relatos de Lígia apontam para a importância de sua inclusão no estabelecimento de vínculos sociais (mais ampliados, mais diversificados e, portanto, mais significativos). Lígia declara que se sente bem em seu trabalho e que o considera importante. Quando arguida sobre o porquê, responde “para mim mesma, para receber meu dinheiro”. E complementa: “é que eu acho que já acostumei muito lá. Tenho muitos amigos, muita amizade, essas coisas” (LÍGIA). Embora se constitua em fonte de sofrimento, entravando sua descarga pulsional52 (por ser cansativo; por expor o estigmatizado; pelas tensões e pressões características do campo de trabalho capitalista; etc.), observamos, mais uma vez, que o trabalho também significa realização e afirmação pessoal e espaço de construção de relações, que pelo simbolismo que encerram, vinculam afetos e sentidos e estruturam a linguagem.

Silva (2007) conclui, em sua dissertação de mestrado, que a inclusão no trabalho, mesmo consideradas as contradições do capital, pode significar a reparação de marcas deixadas pela história excludente, vivenciada pelas pessoas com deficiência (de extermínio, de segregação, de integração e até de inclusão precária).

Através do trabalho, a pessoa com deficiência pode tornar-se cidadão com direitos e deveres e obter o reconhecimento social através de sua capacidade de produzir, tornando-se digno do olhar do outro, seja uma instituição ou um indivíduo. O trabalho possibilita a inserção do sujeito em uma rede de pertencimentos e identificações. O homem vê-se e reconhece-se no objeto que constrói, seu trabalho é uma forma de se relacionar com o outro e de simbolizar seu mundo (idem, ibidem, p.72).

Nesta perspectiva, percebemos a importância da afirmação de vínculos sociais e da construção da linguagem para a estruturação do sujeito (já que eu me significo na relação com o outro), quando Lígia revela que seu sonho, no futuro, é fazer um curso de LIBRAS na UFMA, porque seu colega de trabalho, responsável pela seção de limpeza, é surdo e por terem, em sua opinião, muitos surdos trabalhando na empresa.

52 Segundo Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994, p.27), a “inatividade, desde que é imposta como organização do trabalho, entreva a descarga pulsional e pode ocasionar verdadeira inflação da carga psíquica”. A carga psíquica desregulada e/ou sobrecarregada pode significar comprometimento do bem-estar geral do trabalhador, por se opor à sua livre atividade (o que gera o sofrimento).

5.3.4 Possíveis fatores que interagiram para a inclusão e exclusão de Lígia no mundo