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QUADRO 3 – TRABALHOS ANALISADOS CONFORME O TIPO DE DEFICIÊNCIA 2001 –

5 RELATO E ANÁLISE DOS CASOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO TRABALHO

5.2 O caso Ulisses

5.2.4 Possíveis fatores que interagiram para a inclusão e exclusão de Ulisses no mundo do trabalho

Da mesma forma como procedemos na análise do caso de Benjamin, tentaremos finalizar este caso sintetizando os possíveis fatores que interagiram para o processo de inclusão e exclusão de Ulisses no mundo do trabalho. Considerando que são processos complexos e contraditórios, objetivados e subjetivados no contexto de produção e reprodução material e social capitalista (ALVES, 2007), tentaremos compreendê-los a partir dos diferentes espaços em que Ulisses constrói sua história pessoal, educacional e profissional.

Incialmente há que se ressaltar o resultado das relações estabelecidas em seu primeiro espaço de socialização e de constituição subjetiva (e histórica): a família.

Embora possamos perceber, em nossas observações e na fala de sua mãe, Dona Angélica, uma preocupação em não deixar Ulisses sem companhia em casa e garantir sua locomoção quando necessário (já que ele não anda de ônibus sozinho), não notamos, em contrapartida, uma postura superprotetora da família. Ao contrário, a mãe sempre o estimula a falar e comunicar melhor suas emoções, desejos e entendimentos, já que o seu desenvolvimento, caracterizado por ela como “lento”, a incomoda e representa uma frustração para ela, que desejaria que ele pudesse ler e escrever. Esse incentivo pareceu e parece garantir a Ulisses a construção de certa autonomia cotidiana em atividades variadas, como relatamos anteriormente, bem como uma tentativa de superar a culpa pelo “fracasso” de Ulisses.

Esse sentimento de imperfeição e/ou incompletude de seu filho (e de sua culpa parcial por isso) parece ser arrefecido pela inclusão produtiva de Ulisses no trabalho. Ao afirmar que ele tem valor social por ser um profissional, ou seja, por contribuir produtivamente na sociedade, o retira de sua condição de ser inútil e/ou incapaz. Quando proclama que vê nele um cidadão em relação a muitos outros, em virtude de sua condição de trabalhador, demonstra sua preocupação em garantir que ele saia da condição de estigmatizado para a de pessoa “normal”. Pretende com isso “corrigir” o defeito de seu filho, o que seria o mesmo que garantir à própria Dona Angélica a possibilidade de superação da anormalidade, já que, por conviver com alguém desacreditado acaba por

compartilhar o seu descrédito (GOFFMAN, 2008). Assim, da mesma forma que o fracasso de Ulisses se torna o seu próprio fracasso, a sua superação significa uma conquista também para a mãe.

Quando a criança nasce, a mãe se vê no filho, que representa muito para ela e a quem deve amar e cuidar. O amor que é direcionado ao filho é como se fosse o direcionamento do amor para si mesma, já que o filho é sentido como parte da mãe (SILVA, 2009). Este sentimento pode perdurar, no caso da pessoa com deficiência, tanto pela não concretização do filho perfeito, como pela associação da deficiência intelectual à uma infância eterna e que, portanto, necessita de cuidados prolongados por parte da mãe ou de seus substitutos.

O processo de socialização de Ulisses no CEEE Helena Antipoff, ao passo que lhe proporciona a inclusão no mundo do trabalho (ainda que limitada), contribui contraditoriamente para o fortalecimento de sua condição estigmatizante e para a ampliação da insegurança de sua mãe. Os laudos e relatórios de avaliação diagnóstica da instituição focam, em geral, suas dificuldades e “limitações” e atribuem a Ulisses a responsabilidade por se ajustar ao ambiente de trabalho e à sociedade de modo geral.

Além disso, sua formação, desarticulada das demandas do mercado de trabalho e que responde por sua conformação rígida à estrutura do capital, uma vez que há, em sua atividade a separação técnica entre trabalho manual e trabalho intelectual, oferece justificativa para sua inadequação ou limitação no mercado de trabalho competitivo, sugerindo que as funções menos qualificadas são as mais adequadas ao seu “perfil” (desintegra-se assim a inadequação da formação, que se molda, neste ponto, ao sistema metabólico de reprodução capitalista).

Cabe destacar que o ambiente de trabalho de Ulisses representa bem o desenvolvimento desigual e combinado do atual momento de reestruturação produtiva do capital, utilizando-se de formas de racionalização tayloristas e fordistas (ALVES, 2007). A divisão do trabalho no interior da loja deixa isso bem claro: há os que carregam, os que cortam, os que enchem as bandejas, e os que limpam. No entanto, por vezes, em virtude do atual discurso da integração mente e corpo, cada funcionário é requisitado a realizar outras atividades, “participar do processo como um todo”.

Mais uma vez o discurso da unidade se apresenta de forma tácita nas ações da gestão, mas o que se observa é apenas a polivalência da força de trabalho, demonstrada pela capacidade individual de realizar várias tarefas. O que não implica a integração corpo e mente. A separação ainda está bastante evidente. Assim, todos compreendem a função

específica de cada funcionário (ideológica e simbolicamente nomeado de colaborador), mas “ajudam” (colaboram) em qualquer tarefa se necessário for.

Neste sentido, é garantida e até mesmo compreendida a inclusão de Ulisses, já que, como afirmou a funcionária do setor de Recursos Humanos, a formação não é a exigência mais importante para a maioria dos cargos oferecidos pela empresa. Neste sentido, todos se igualam por se situarem na periferia do mercado de trabalho e, em virtude desse nivelamento simbólico, é que o gerente da loja certifica que quando ele está de folga todos sentem sua falta, pois ele ajuda muito (o que significa dizer que ele, assim como os demais, trabalha muito).

O sentimento provocado pelo reconhecimento da “utilidade” de Ulisses em virtude de sua inclusão no trabalho, ainda que condicionada e/ou limitada, redunda no respeito da mãe pelo espaço de atuação de seu filho no mundo do trabalho, atribuindo-lhe o que estamos chamando de “autonomia laborativa”. Ousamos supor ainda que essa postura da família acaba se refletindo nas relações de Ulisses com o gerente e seus colegas de loja, que não visualizam, em primeira instância, suas impossibilidades, mas as contribuições que tem a oferecer à dinâmica de funcionamento da loja.

A fala de Ulisses, quando afirma que prefere trabalhar a ficar em casa ou ficar na rua “fazendo coisa que não deve”, parece ser a reprodução da compreensão da mãe sobre a importância social do trabalho, já que Ulisses não demonstrou compreender o significado das motivações que o levam a trabalhar. Assim, é melhor ser um trabalhador, ter uma função social do que não ter nenhuma, do que ser um peso, ser alguém que não faz nada útil e produtivo, alguém que fica “fazendo o que não deve”.

Por outro lado, embora não consiga explicitar a importância do trabalho em sua vida e os sentidos que lhe atribui em virtude de seu processo de inclusão, há indícios de que as relações no ambiente de trabalho de Ulisses se modificaram com a sua presença e contribuíram para melhorar a comunicação e ampliar suas formas de interação com outro.

Ainda que sua inclusão se efetive de forma limitada, condicionada e/ou excludente, moldada pelo medo do desemprego (KUENZER, 2002), (ALVES, 2007), pela natureza complexa e contraditória das relações sociais, mudanças significativas parecem ter surgido da convivência entre as pessoas sem deficiência da empresa e Ulisses. Isso atesta o “caráter social do trabalho. Este expressa-se essencialmente no fato de que o homem só pode realizá-lo através da relação com outros homens” (IAMAMOTO, 2011, p. 43, grifo do autor). Nessa relação, e pelo trabalho, o homem transforma a natureza, a si próprio e as pessoas ao seu redor. Contraditoriamente, é no interior das relações

capitalistas excludentes e individualistas, que novas relações podem ser gestadas, criando a possibilidade de uma nova sociabilidade.