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QUADRO 3 – TRABALHOS ANALISADOS CONFORME O TIPO DE DEFICIÊNCIA 2001 –

5 RELATO E ANÁLISE DOS CASOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO TRABALHO

5.3 O caso Lígia

5.3.4 Possíveis fatores que interagiram para a inclusão e exclusão de Lígia no mundo do trabalho

É importante ressaltarmos como as relações familiares e a constituição de Lígia como sujeito, componentes de sua formação histórica e social, afetam seu processo de inclusão e exclusão e, consequentemente, suas relações no trabalho.

A postura superprotetora da mãe parece restringir não só os passos (a mãe define, onde Lígia pode ou não ir, estudar, trabalhar), mas a própria fala de Lígia. De certo modo, a mãe tenta, a todo custo, isolá-la ou “protegê-la” do contato social, justificando suas escolhas na possibilidade de Lígia ser enganada, machucada ou usada por pessoas de má fé.

Assim, a mãe contribui para estruturar subjetivamente em Lígia o sentimento de incapacidade que a sociedade, de modo geral, afirma em suas concepções e práticas. Lígia encontra na família superprotetora “seu lugar de deficiente” e não nos parece que a mãe queira retirá-la dele (MANNONI, 1991). Há indícios de que o estigma de deficiente que a mãe incialmente lhe imputa é posteriormente corroborado pelos(as) colegas de trabalho, situando-a na condição de desacreditada (GOFFMAN, 2008).

As sanções tácitas e restrições explícitas a toda iniciativa sua são claramente observadas em seu local de trabalho. Em inúmeras situações ela tenta (e consegue) resolver problemas inesperados e que exigem iniciativa, mas é sempre reprimida por alguém que a observa a distância, seja um chefe imediato ou algum outro funcionário da frente de loja.

Batista e Mantoan (2007, p.15) explicam que “o medo da diferença e do desconhecido é responsável, em grande parte, pela discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência, mas principalmente por aquelas com deficiência mental53”.

O controle sofrido no trabalho, possivelmente uma extensão do controle exercido por sua mãe em casa, ao mesmo tempo em que confirma a concepção de Pedro (responsável pelo processo de seleção e contratação na empresa) sobre a deficiência, contradiz a sua fala sobre a inclusão.

Fica evidente que, para os funcionários, Lígia “não está na mesma altura” que os funcionários considerados normais, como afirmou Pedro ao conceituar a deficiência. Por isso, é o tempo todo vigiada e podada em suas iniciativas, situando-se à margem do processo de trabalho, como deficiente e, portanto, ineficiente e incapaz.

Ao defender, entretanto, que a inclusão se faz sentir quando você garante igualdade de oportunidades para a pessoa com deficiência e quando coloca “uma pessoa com deficiência e uma pessoa que não tem deficiência no mesmo patamar, num patamar de igualdade”, Pedro revela dois aspectos que merecem consideração. O primeiro deles é que pelo trabalho o homem ganha significado como sujeito transformador da natureza e produtor de linguagem e cultura, embora o restrinja à competição no mercado de trabalho, ou seja, ao direito de concorrer a uma vaga no mercado.

O segundo explicita a premissa de que as pessoas não estão no mesmo patamar e que o trabalho é o componente que as iguala, tanto no campo do direito quanto nas possibilidades de adequação dos espaços em que diferentes pessoas atuam para acolhimento e superação da visão incapacitante da pessoa com deficiência.

As práticas em relação à Lígia contradizem a afirmação de Pedro de que a descrença no potencial da pessoa com deficiência intelectual seja uma exceção no comportamento dos funcionários. Embora Pedro aduza que “não podemos enxergar apenas a deficiência da pessoa”, a conduta geral na empresa limita bastante a atuação de Lígia sobre o meio, impedindo-a de agir livremente no trabalho e de demonstrar suas reais potencialidades. Não observamos nenhum estímulo à superação das dificuldades que Lígia apresenta, seja em casa ou no trabalho. Não há uma tentativa clara e objetiva de incluí-la como sujeito (de desejos, ações, medos, potências, etc.) nestes espaços.

Essa atuação limitada (e limitante) pelo olhar de vigília do outro parece manter Lígia “aprisionada” no trabalho, impedindo-a de agir livremente. Isso pode gerar o acúmulo de energia psíquica, que, segundo Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) gera desprazer, ou seja, sofrimento no trabalho.

Em sua trajetória educacional, a (de)limitação do processo de conhecimento, e a sua inclusão condicionada ou limitada aos padrões tradicionais e discriminatórios da escola em classes especiais (ou em classes comuns, mas sem incluí-la no contexto geral da turma) contribui para demarcar o seu espaço de significação como sujeito deficiente. Os relatos de sua mãe são representativos da educação excludente em sua experiência escolar integrada ou em classes especiais, conforme já assinalamos.

Batista e Mantoan (2007) refletem sobre a organização da escola atual e o atendimento especializado à pessoa com deficiência intelectual baseado na ideia de que esses(as) alunos(as) só aprendem a partir do concreto.

O grande equívoco de uma prática de ensino que se baseia nessa lógica do concreto é a repetição alienante, que nega o acesso da pessoa com deficiência

mental ao plano abstrato e simbólico da compreensão, ou seja, nega a sua capacidade de estabelecer uma interação simbólica com o meio. O perigo desse equívoco é empobrecer cada vez mais a condição de as pessoas com deficiência mental lidarem com o pensamento, raciocinarem, utilizarem a capacidade de descobrir o que é visível e preverem o invisível, criarem e inovarem, enfim, terem acesso a tudo o que é próprio da ação de conhecer (idem, ibidem, p. 21).

O trabalho do CEEE Helena Antipoff em oficinas pedagógicas, descoladas das exigências do mundo do trabalho, e destinadas mais ao treino de habilidades sociais e competências de vida autônoma, também não parece ter ampliado o repertório de atuação de Lígia sobre o mundo. Há, ao que tudo indica, um ajustamento comportamental e um treinamento específico em competências requeridas pelas funções para as quais os alunos e as alunas são geralmente encaminhados(as), como as de limpeza e de serviços auxiliares em supermercado.

Mannoni (1991) destaca que essa insistência da mãe em definir “o lugar” que seu filho deve ocupar corresponde a uma necessidade materna não resolvida, a um desejo inconsciente de substituição do filho sonhado (perfeito) pela perfeita atenção ao que, na visão da mãe, falta ao filho.

O filho, destinado a preencher a falta de ser da mãe, não tem outra significação senão existir para ela e não para si próprio. [...] Todo o desejo de despertar, por parte do filho, vai ser sistematicamente combatido pela mãe – até que ele acabe por se persuadir de que “não pode”. Em todo o caso, é na medida em que “não pode” que ele ocupa a mãe e é amado por ela (idem, ibidem, p. 42-43).

Lígia, em suas tentativas de participar do mundo em que está inserida, nos diferentes papéis que representa (de filha, de estudante, de trabalhadora), se vê engessada por um modelo que define a deficiência como um estado de incapacidade ou anormalidade, referendada nos documentos oficiais e explicitada nos conceitos de deficiência tanto das educadoras do CEEE Helena Antipoff quanto do analista de recursos humanos da empresa em que Lígia trabalha.

Tais concepções justificam a exigência de adaptação de Lígia ao meio e ao padrão estabelecido como “normal” pela sociedade. Em seu caso extremo, essa adaptação ou ajuste comportamental ocorre quando Lígia obedece às ordens sem contestá-las ou se molda à repressão de suas iniciativas. Essa atitude acaba derivando na sua exclusão do mundo do trabalho (mesmo estando incluída no mercado de trabalho), por limitar seu potencial transformador, “pois é a sociedade que lhe cria problemas, atribuindo-lhe incapacidades e desvantagens, restringindo seus espaços de atuação” (OLIVEIRA; ARAÚJO; ROMAGNOLI, 2006, p. 85).

Deste modo, vemos que sua deficiência vai sendo moldada socialmente, a partir das relações que estabelece e que colaboram para perpetuar sua condição estigmatizada, desacreditada e, na visão do outro, inepta para a aprendizagem autônoma, a descoberta, a escolha e o trabalho.