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UNIDADES TEMÁTICAS

4 Plano da Caracterização e Análise do contexto de inclusão e exclusão no trabalho

3.1 Planos teóricos da análise

3.1.1 Plano da Significação

Grande parte dos trabalhos analisados está situada no plano das significações25 e suas respectivas unidades temáticas, em que são discutidos os sentidos atribuídos à deficiência, ao trabalho e à profissionalização. São abordadas concepções, crenças e conceitos formulados histórica e socialmente pelos sujeitos envolvidos nos processos de inclusão e exclusão do mundo do trabalho.

Carvalho-Freitas (2007 e 2009) e Carvalho-Freitas; Marques (2007 e 2010) discutem a inserção e gestão de pessoas com deficiência em empresas brasileiras, investigando como as formas de ver as pessoas com deficiência pela empresa se relacionam com as adequações feitas nas condições de trabalho e com a sua qualidade de vida no trabalho. Os autores lançam mão de abordagens quantitativas e qualitativas e apontam para a coexistência de variadas concepções de deficiência, sedimentadas historicamente. Estas pesquisas identificam matrizes de interpretação da deficiência, que ditam padrões de comportamento em diferentes momentos históricos, a partir das visões predominantes compartilhadas em cada época, mas que se reeditam em outros períodos da história. São elas: a perspectiva da subsistência/sobrevivência; a matriz da sociedade ideal e a função instrumental da pessoa; a interpretação da deficiência como fenômeno espiritual; a matriz da normalidade; a matriz da inclusão social e a técnica como matriz de interpretação dominante (CARVALHO-FREITAS, 2007).

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Em 30% (trinta por cento) das produções científicas examinadas, o objeto de estudo da pesquisa foi a atribuição de sentidos à deficiência, ao trabalho e ao processo de profissionalização, seja pela própria pessoa com deficiência e seus familiares, seja pela sociedade de modo geral ou pelos empregadores e/ou responsáveis pelas empresas contratantes de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Embora, em pontos percentuais, o plano teórico da caracterização e análise do contexto de inclusão no trabalho figure em primeiro lugar, com 33,33% das pesquisas consideradas, muitas abordagens, situadas (didaticamente) em outros planos teóricos, dedicam parte de seus estudos à compreensão dos significados da deficiência, construídos historicamente pela sociedade, de modo a fundamentar a análise das relações travadas socialmente entre pessoas com deficiência e sem deficiência, entre dominantes e dominados, entre incluídos e excluídos.

Estas matrizes/formas de ver influenciam decisivamente o comportamento e as ações direcionadas às pessoas com deficiência, dentro e fora das empresas em que atuam, afetando sobremaneira as ações de adequação das condições e práticas de trabalho e a qualidade de vida no trabalho. Assim, as pesquisas indicam que é importante entender a forma como essas pessoas são vistas para assegurar uma melhor gestão da diversidade.

Neste sentido, destacam que

as pessoas, diante da busca de explicação, desenvolvem modelos de pensamento que, na maioria das vezes, podem ser tipificados em matrizes de interpretação e que se refletem em dimensões de avaliação e qualificação diferenciadas sobre a deficiência (CARVALHO-FREITAS; MARQUES, 2010, p. 122).

Carvalho-Freitas e Marques (2010) concluem que as matrizes que predominam e explicam as concepções de deficiência são as que se fundam nos pressupostos de normalidade e na percepção técnica do desempenho das pessoas com deficiência, o que está condicionado pela funcionalidade desse trabalhador para a empresa que o contrata. Tais matrizes germinaram com o racionalismo da idade moderna e o desenvolvimento da ciência, que passou a ver o corpo humano como uma máquina. O normal ou desviante do padrão é estabelecido pelo conhecimento científico, orientando as ações para o “ajuste da máquina”, ou seja, para a reabilitação da pessoa com deficiência de modo que ela se adeque às necessidades da sociedade e, portanto, das empresas.

Assim, com o crescente desenvolvimento da medicina na idade moderna e as mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas se processando cada vez mais intensamente, o modelo de explicação da deficiência na modernidade se respalda em novas formas de ver o homem e o mundo, explicados agora pela ciência, em contraposição à visão mística medieval que a antecedeu.

Vários médicos, como o inglês Thomas Willis (1621-1675); o italiano Francesco Torti (1658-1741); os franceses Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), reconhecido por seu trabalho com surdos e pela experiência educativa com o famoso menino selvagem de Aveyron e Jacob Rodrigues Péreire (1715-1780), criador de uma “revolucionária metodologia para ensinar linguagem a surdos-mudos” (PESSOTTI, 1984, p. 31); bem como o filósofo francês Condillac (1715-1780), contribuíram sobremaneira para a substituição do olhar metafísico, e suas consequentes explicações espirituais para a deficiência, pelo olhar médico e naturalista da modernidade, assinalando o padrão explicativo cientificista, que se estenderá até a contemporaneidade.

Ao entender a idiotia e outras deficiências como produto de estruturas ou eventos neurais Willis começa a sepultar, pelo menos nos estratos mais cultos da sociedade, a visão demonológica ou fanática daqueles distúrbios, agora não graças a razões éticas ou humanitárias, mas em virtude de argumentos “científicos” (PESSOTTI, 1984, p. 18).

Portanto, “a necessidade de se trabalhar o desvio não se justifica, todavia, pela simples constatação do anormal. Justifica-se, sim, pela necessidade de se tornar hegemônico o modelo ideologicamente estabelecido como normal” (MARQUES, 2001, p.1).

Nesta perspectiva, a visão se sustenta na “utilidade” da pessoa com deficiência para o processo de produção. As justificativas para a adequação ou não do trabalhador com deficiência para o mercado de trabalho servem para escamotear os reais motivos do processo de exclusão do capital, ao atribuir à própria pessoa as razões de sua não empregabilidade. Esta análise tem sido confirmada por várias pesquisas que analisam a inserção produtiva da pessoa com deficiência na sociedade capitalista (LANCILLOTTI, 2003, NERES; CORRÊA, 2008, COSTA et al, 2011, AROUCHA, 2012, FIGUEIREDO; JOHANN, 2013).

Meletti (2001), ao observar o significado da profissionalização para a pessoa com deficiência intelectual, com e sem experiência no mercado, também discute essa inserção produtiva, confirmando o pressuposto de que a educação da pessoa com deficiência tem servido para seu ajustamento ao sistema produtivo e às demandas do mercado. A autora entrevista seis pessoas com deficiência intelectual sobre o trabalho que realizam em uma oficina protegida26 e no mercado de trabalho tradicional e destaca que o processo de profissionalização da pessoa com deficiência intelectual,

ao invés de formar o trabalhador, forma a mão-de-obra alienada e barata. Não se preocupa com o desenvolvimento, com a potencialidade, com a independência, mas sim com o quanto o deficiente mental pode deixar de sê-lo, com o quanto é ou não normal (MELETTI, 2001, p. 87).

Tanaka e Manzini (2005) também percorrem o plano da significação, identificando em seu trabalho o que os empregadores pensam sobre a pessoa com deficiência. Para tanto, realizam entrevista semiestruturada com seis pessoas responsáveis pelo setor de recursos humanos de seis empresas localizadas no norte do Paraná, nos ramos

26 O Art. 35, § 4o do Decreto n0. 3.298/99 Considera como oficina protegida de produção “a unidade que funciona em relação de dependência com entidade pública ou beneficente de assistência social, que tem por objetivo desenvolver programa de habilitação profissional para adolescente e adulto portador de deficiência, provendo-o com trabalho remunerado, com vista à emancipação econômica e pessoal relativa” (BRASIL, 1999, p.9).

da indústria, do comércio e da prestação de serviços, investigando concepções sobre a pessoa com deficiência e seu trabalho; motivos que levaram à sua contratação e dificuldades atribuídas às pessoas com deficiência no exercício de suas funções dentro da empresa.

Nesta pesquisa, fica claro que a inserção no trabalho se dá por força da Lei e que as opções de inserção são sempre em funções com pouca exigência de qualificação e/ou de formação inicial, o que é reflexo da compreensão de que uma das dificuldades para incluir a pessoa com deficiência no mercado de trabalho é a falta de escolaridade dessa população, além da própria deficiência apresentada. Os empregadores relatavam que embora acreditassem na potencialidade das pessoas com deficiência, algumas dificuldades representavam barreiras à sua inserção efetiva no mercado de trabalho, como: formação27 e preparação para o trabalho; inadequação das condições de trabalho; falta de informação sobre a deficiência; inadequação dos programas de formação às demandas de mercado; falta de políticas de incentivo às empresas, dentre outras. Esta pesquisa confirmou que se atribui à própria pessoa com deficiência as razões de suas dificuldades de inserção.

Este discurso, sem o devido cuidado com o aprofundamento da questão no contexto em que ela se insere, corre o risco de se moldar aos interesses do capital, uma vez que desloca do social para o particular as causas da exclusão, culpabilizando a pessoa com deficiência e sua educação inadequada pela não inserção no trabalho, sem considerar que a lógica da exclusão é que alimenta o sistema capitalista de produção e consumo. Assim,

A exclusão é parte do motor da sociedade capitalista, que atua, como força centrífuga que expropria o homem de seu trabalho e empurra para a marginalização social um grande contingente humano que não serve aos seus interesses ou que desempenha um papel acessório (LANCILLOTTI, 2003, p. 86).

Em sua Dissertação, Silva (2007) confronta as teorias sobre o significado do trabalho mediante abordagem psicossocial de análise das entrevistas, realizadas com dez trabalhadores com deficiência visual, empregados em empresas públicas e privadas de segmentos industriais e de prestação de serviços, que exerciam atividades operacionais ou de supervisão, da região metropolitana de Belo Horizonte.

Já Pereira, Del Prete e Del Prete (2008), que também partem do ponto de vista construído pelas próprias pessoas com deficiência, entrevistam individualmente 27 trabalhadores com deficiência física e 27 trabalhadores sem deficiência física, de cinco

27 O termo formação é usado nesta pesquisa como sinônimo do processo de escolarização na educação básica e a formação para o trabalho, em nível fundamental e/ou médio.

empresas de uma cidade do interior do estado de São Paulo, buscando identificar aspectos positivos e negativos associados ao trabalho na visão desses trabalhadores. Fazem uso ainda do Critério de Classificação Econômica Brasil e do questionário sobre Aspectos do Trabalho, em que procedem a análise de conteúdo dos temas surgidos nas respostas.

Na análise de conteúdo e da frequência dos temas surgidos nas respostas, nos dois grupos de trabalhadores (com e sem deficiência física), os autores observam que enquanto para os trabalhadores com deficiência física – TDF – o aspecto positivo mais referido é o da valorização pessoal, para os trabalhadores sem deficiência – TND – a valorização profissional é o principal aspecto positivo do trabalho. Para ambos os grupos, todavia, relações sociais aparece como o segundo aspecto positivo mais referenciado e a classe finanças aparece com mais frequência que cidadania. Em relação aos aspectos negativos relatados, as diferenças são mais significativas. Enquanto que a jornada de trabalho extensa e o desgaste físico e emocional aparecem como os aspectos negativos mais referidos pelos trabalhadores sem deficiência, para aqueles com deficiência física as dificuldades interpessoais e a desvalorização profissional são indicados com maior frequência como aspectos negativos.

Segundo os autores, estes aspetos podem revelar que os trabalhadores sem deficiência sofrem mais abusos que os trabalhadores com deficiência física (PEREIRA; DEL PRETE; DEL PRETE, 2008), em virtude de alguns possíveis fatores:

O grupo TDF pode: (a) não se achar com direito de fazer exigências por se considerar inferiorizado em relação aos demais; (b) considerar a oportunidade de trabalho mais como uma concessão do que propriamente um contrato legal de compra e venda da força do trabalho regido pela legislação; (c) sobrevalorizar os ganhos indiretos do trabalho, como a oportunidade de fazer novos amigos e se relacionar com as pessoas (PEREIRA; DEL PRETE; DEL PRETE, 2008, p. 111).

Ambas as pesquisas verificam que tanto o processo de profissionalização quanto o trabalho propriamente dito significam instrumentos de afirmação e reconhecimento social e pessoal da pessoa com deficiência inserida no trabalho, assim como trazem, em seu bojo, referências negativas para os trabalhadores, face às próprias contradições do sistema capitalista em que estão inseridos estes trabalhadores. A constatação de que as oportunidades em atividades mais qualificadas é ainda rara para as pessoas com deficiência e de que é necessário repensar a preparação do trabalhador para sua inserção efetiva no mundo do trabalho também fica patente nas pesquisas analisadas.

Podemos constatar que as concepções sobre a deficiência e comportamentos em relação à pessoa com deficiência são construídos com base nas concepções de homem e

de mundo, compartilhadas em cada época. A mudança de olhar é direcionada pela mudança do saber de homens e mulheres em suas relações com o outro, consigo mesmo e com o contexto cultural de dado momento histórico.

Kuhn, discorrendo sobre as “Revoluções como Mudanças de Concepção de Mundo”, esclarece que a transformação de visão decorre de novos olhares sobre as mesmas coisas. Conforme afirmado por ele, “um cientista com um novo paradigma vê de maneira diferente do que via anteriormente” (1998, p. 150). Assim,

Lavoisier viu oxigênio onde Priestley vira ar desflogistizado e outros não viram absolutamente nada. Contudo, ao aprender a ver o oxigênio, Lavoisier teve também que modificar sua concepção a respeito de muitas outras substâncias familiares (idem, ibidem, p. 153).

O plano teórico da significação, em que figuram as pesquisas acima delineadas, em consonância com o(s) modo(s) de ver o mundo e o homem no capitalismo contemporâneo, estabelece a estreita relação entre a produção da existência humana e os sentimentos de pertencimento social e reconhecimento da capacidade produtiva das pessoas com deficiência, avaliada conforme sua participação ou não – ou mesmo conforme o juízo sobre as possibilidades ou não de participação dessas pessoas – no mundo do trabalho. Na mesma medida, estabelece como elemento valorativo da capacidade produtiva atribuída às pessoas com deficiência, sua maior ou menor inserção nos processos formais de educação e qualificação e requalificação profissionais.