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CAPÍTULO II – O LICENCIAMENTO AMBIENTAL COMO INSTRUMENTO DE

3. O licenciamento ambiental

3.1 Linhas gerais do licenciamento ambiental

3.1.2 Licença ou autorização ambiental?

Existe na doutrina uma divergência quanto à natureza jurídica da licença ambiental. O administrador, quando decide sobre a concessão ou não de uma licença, leva em conta os impactos positivos e negativos da atividade ou obra e a distribuição de ônus e benefícios sociais, o que afasta o ato administrativo do modelo tradicional de licença, aproximando-o da autorização. Enquanto alguns doutrinadores do Direito Ambiental consideram que o termo “licença” foi utilizado de maneira incorreta, sendo que se trata, na realidade, de “autorização ambiental”, por ser um ato administrativo discricionário e precário, outros entendem que se trata mesmo de licença, pois sua concessão se constitui em direito desde que atendidas as restrições legais151. As implicações práticas da discussão sobre a natureza jurídica da “licença” ambiental

são as seguintes:

a) Se considerado um ato administrativo vinculado e definitivo, a licença ambiental seria um direito do empreendedor que cumprisse todas as exigências do Poder Público. Dessa forma, a Administração não poderia impedir a implementação de um projeto que tivesse, por exemplo, seu EIA-RIMA aprovado e atendesse a todas as medidas de prevenção, mitigação e

149 KRELL, 2004, p. 116. Sobre o assunto, ver também: KRELL, 2005.

150 KRELL, 2004, p. 109. No mesmo sentido: MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro.

São Paulo: Malheiros, 2004, p. 259.

de compensação de danos ambientais;

b) Se considerado um ato administrativo discricionário e precário, o termo “licença” deveria ser substituído por “autorização”. Nesse caso, o Poder Público poderia, baseado em critérios de conveniência e oportunidade, deixar de emitir a autorização ambiental para empreendimento que, embora indicasse medidas de prevenção de danos ambientais para sua implementação, fosse repudiado pela opinião pública ou, então, comportasse riscos de tal magnitude que, segundo o juízo do administrador, não valesse a pena correr.

A discussão sobre a natureza jurídica da licença ambiental decorre da rígida distinção que alguns administrativistas continuam a afirmar entre atos administrativos vinculados e atos discricionários. Tradicionalmente, essa distinção serviu para identificar os atos da Administração Pública que estariam sujeitos a revisão judicial e aqueles que estariam fora dela. Assim, os atos considerados discricionários não poderiam ser revistos no mérito pelo Poder Judiciário, sob pena de desrespeito à divisão de poderes que constitui o Estado. Segundo esse entendimento, o Judiciário poderia apreciar a competência do ato discricionário, sua forma e sua finalidade. Já seu motivo e objeto – que constituem o mérito - estariam sujeitos à liberdade de escolha administrativa152. A subdivisão do ato administrativo em seus elementos, no entanto, pouco contribuiu para a análise do controle da discricionariedade administrativa, “sendo ela talvez até responsável pela generalizada e indevida simplificação (ato vinculado X ato discricionário) do fenômeno de liberdade de decisão do Poder Executivo”153.

Esse entendimento – atos discricionários não podem ser revistos no mérito – decorre do sentido dado à discricionariedade pelo positivismo jurídico. Segundo Dworkin154, o positivismo deu ao termo dois sentidos. No primeiro deles, a discricionariedade é a simples capacidade para julgar conforme convicções próprias, quando não existe uma regra clara disponível para guiar a atuação do julgador (discricionariedade em sentido fraco).

Em um segundo sentido, que decorre do primeiro, a discricionariedade daria ao juiz liberdade para não acatar padrões de nenhuma outra autoridade em seu julgamento (discricionariedade em sentido forte). Nesta acepção, a atuação do julgador não seria passível de questionamento, ou de revisão (controle), eis que pautada por valores que ultrapassam o campo de atuação da ciência do Direito. Desse modo, as decisões discricionárias, por comportarem

152 KRELL, 2004, p. 24. 153 KRELL, 2004, p. 26.

interpretações que envolvem valores morais ou escolhas subjetivas, não poderiam ser discutidas. O que as tornaria legítimas é a competência atribuída ao juiz para tomá-las. Assim, os aspectos externos à decisão, como forma e competência, poderiam ser questionados, mas o conteúdo da mesma, não.

Para Dworkin, a discricionariedade em sentido forte não pode ser aceita, pois o ordenamento jurídico não é formado apenas por regras. Os Estados contemporâneos incorporaram princípios jurídicos nos quais o juiz deve se pautar sempre que estiver diante de uma situação de lacunas ou ambigüidade das leis. Destarte, se existe a discricionariedade, ela só pode ser aceita no sentido fraco do termo, segundo o qual, vale repetir, cada um possui competência para julgar conforme suas próprias convicções155.

Isso não significa que as decisões podem ser tomadas sem critério algum. Ao contrário, o juiz deve se pautar sempre em princípios para fundamentar seu posicionamento. Assim, quando exerce seu poder de discricionariedade, não se trata de um amplo poder de decisão entre muitas alternativas possíveis, que extrapola a objetividade do Direito e não pode ser questionada. Existem diversos princípios, num Estado Democrático de Direito, que delimitam as interpretações possíveis para cada caso.

Do mesmo modo, a rígida distinção entre atos administrativos vinculados e discricionários não cabe mais em um Estado que se propõe a ter um desenvolvimento sustentável, como é o caso do Brasil. Os atos do Poder Público relativos à matéria ambiental, se comportam a discricionariedade, a comportam no sentido fraco do termo. O poder discricionário não é mais absoluto após a adoção, pelo país, dos princípios de Direito Ambiental156.

Além disso, após a promulgação da Lei da ACP, corroborada pela CF, não há mais dúvidas quanto à possibilidade de controle integral, pelo Judiciário, dos atos administrativos relacionados com interesses difusos. Isso não significa, necessariamente, um aumento da proteção ambiental. Andreas Krell ressalta que a atuação dos tribunais brasileiros no controle dos atos administrativos relacionados às questões ambientais tende a relegar os aspectos de proteção da natureza para um segundo plano, e privilegiar questões econômicas157.

Entretanto, se a sensibilização ecológica dos magistrados brasileiros continua

155 Sobre as críticas de Dworkin ao positivismo, ver: IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e discricionariedade. Lua

Nova. São Paulo. n.º 61. 2004, p. 97-113.

156 Sobre os princípios do Direito Ambiental, ver o capítulo III da obra: AYALA e LEITE, 2002. 157 KRELL, 2004, p. 58.

incipiente, não há como olvidar a influência do poder econômico e político nos órgãos ambientais, capaz de guiar a atuação dos mesmos. Assim, o fato da decisão administrativa poder ser revista pelo Judiciário permite a rediscussão do caso, constituindo um outro canal para a manifestação das diversas partes envolvidas. Ademais, com a adoção, pelo Brasil, da responsabilidade civil objetiva por danos ambientais, o questionamento do ato administrativo na justiça não está restrito à sua legalidade ou ilegalidade. Existindo a possibilidade do ato causar um dano ao meio ambiente, ele deve ser afastado pelos tribunais.

No que se refere à vinculação, a decisão administrativa no caso do licenciamento ambiental não está atrelada aos pareceres técnicos. Se, de outro modo, prevalecesse o entendimento de que a Administração vincula-se à decisão técnica que aprova ou não o EIA-RIMA, por exemplo, os argumentos técnicos continuariam a ter primazia em relação às considerações da comunidade, de modo a contrariar as condições imputadas como necessárias para o aprimoramento das decisões que envolvem impactos ou riscos ambientais. No mesmo sentido, Jacqueline Morand – Deviller afirma:

É fato estabelecido que o decisor deve resguardar um amplo espaço de autonomia em relação aos resultados da perícia, que tem valor apenas de parecer que não pode afetar a autoridade pública em sua liberdade para arbitrar e para proceder às escolhas que entenda necessárias nas decisões que venha a tomar. Isso representa uma passagem da esfera puramente científica para o âmbito da política, sendo que as razões de Estado prevalecem sobre as razões científicas, seja porque a situação requer uma difícil arbitragem entre várias possibilidades científicas, seja porque estas ainda se encontrem revestidas de incerteza158.

Isso não quer dizer que os estudos científicos não devam ser levados em conta. Ao contrário, quando elaborados com seriedade, representam o conhecimento técnico sobre determinado caso e permitem que a comunidade melhor compreenda as implicações ambientais do projeto.

Pelas razões expostas, verifica-se que a distinção entre atos discricionários e vinculados não possui sentido em relação às decisões da Administração concernentes às questões ambientais. Segundo Krell, “parece ser mais adequado indagar, em cada caso, sobre a correta margem de liberdade de decisão que as respectivas leis concedem aos órgãos ambientais, evitando-se, assim, generalizações descabidas”159.

Em suma, o licenciamento é o procedimento utilizado pela Administração

158 MORAND – DEVILLER, 2005, p. 97. 159 KRELL, 2004, p. 59.

Pública para a aplicação dos princípios constitucionais que regem tanto a livre iniciativa econômica como a proteção da natureza. A CF condiciona a livre iniciativa à defesa do meio ambiente, prevendo a exigência do EIA-RIMA para a instalação de obras e atividades efetiva ou potencialmente causadoras de significativo impacto ambiental. Consubstancia-se, desse modo, na tentativa de aplicação prática de tais princípios. O processo é permeado por conceitos como “significativo impacto ambiental” e “interesse público”, que exigem da administração a escolha da solução a adotar a partir da ponderação entre a utilização de critérios decorrentes do conhecimento especializado (inseridos nos estudos de impactos ambientais), os argumentos leigos discutidos durante o processo de tomada de decisão, no caso da LP, e os princípios do Direito Ambiental. Trata-se, portanto, de um processo complexo, com várias etapas, sendo impossível e descabido definir a priori se a licença ambiental é um ato apenas vinculado ou discricionário.