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CAPÍTULO I – O RISCO AMBIENTAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

2. Ciência, risco e Direito: a irresponsabilidade organizada

2.2 O debate entre realistas e construtivistas

A discussão acerca da construção social dos riscos e a posição de Beck em relação a ela podem ser compreendidas em razão do debate entre construtivistas e realistas. Durante os anos 60, diversas disciplinas, especialmente a toxicologia, a epidemiologia, a psicologia behaviorista e cognitiva e as engenharias, desenvolveram estudos técnicos e quantitativos acerca do risco, com a finalidade de chegar a um conceito de “risco aceitável”. Essas disciplinas utilizavam sobretudo métodos estatísticos, que procuravam apontar a probabilidade de concretização de um dano, e comparavam os riscos com os benefícios de determinadas atividades. Tais estudos foram adotados como procedimentos regulatórios de agências norte-americanas responsáveis pela segurança alimentar e pelo controle de medicamentos. Eles consistiam na formulação de critérios que serviam como parâmetros para as políticas de segurança alimentar e de saúde de outros países56.

Segundo Julia Guivant, a abordagem técnica do risco engloba: (a) sua estimação, ou seja, a medição de sua intensidade, freqüência e duração, bem como a identificação de suas fontes; (b) sua comunicação, visando diminuir a distância entre o conhecimento que os peritos detém sobre os riscos e o conhecimento dos leigos; (c) sua administração, ou seja, o fornecimento de elementos para a elaboração de políticas públicas de controle de riscos. Esses

55 MACHADO, 2005, p. 78. 56 GUIVANT, 1998, p. 03-04.

elementos permitiriam a distinção entre riscos realmente importantes e aqueles triviais, o que proporcionaria uma melhor utilização dos recursos públicos destinados ao seu controle57.

Essa análise técnica dos riscos, denominada de “realista”, sofreu críticas, principalmente nos anos 70 e 80, a partir do desenvolvimento da chamada “teoria cultural dos riscos”, que questionava a legitimidade dos técnicos na definição das ameaças que poderiam ser aceitas pela sociedade. Os adeptos dessa teoria, que passaram a se identificar como “construtivistas”, afirmam o caráter cultural das definições de risco, pois acreditam que os indivíduos, por serem “organizadores ativos de suas percepções”58, impõem seus próprios

significados aos fenômenos. Em outras palavras, o risco é aquilo que a sociedade entende como tal. Nesse sentido, as análises científicas de riscos nem sempre teriam papel preponderante na seleção das ameaças importantes, pois a escolha dependeria de fatores sociais e culturais, e não meramente de fatores técnicos59.

Para os construtivistas, como os peritos não podem conhecer tudo sobre os riscos, e em razão da existência de divergências entre os técnicos acerca dos métodos mais apropriados para estimá-los, bem como sobre as margens desejáveis de segurança que devem ser alcançadas, a escolha sobre quais riscos determinada comunidade aceita correr é feita a partir da percepção social e cultural que se tem deles. Assim,

a atenção que as pessoas dão a determinados riscos em lugar de outros seria parte de um processo sociocultural, que dificilmente tem uma relação direta com o caráter objetivo dos riscos. Desta maneira, ao se considerar que os riscos são percebidos e administrados de acordo com princípios inerentes que reforçam formas particulares de organização social, deixa de ser possível tratar os riscos de forma neutra, com ferramentas metodológicas quantitativas60.

Com isso, as perspectivas técnicas de avaliação de riscos são proclamadas insuficientes. Os construtivistas clamam pelo deslocamento do foco de decisão das instâncias técnicas para instâncias que admitem a participação da sociedade nas discussões sobre o que significa um risco razoável, ou ainda, sobre o que é um nível aceitável de risco. Para eles, essas questões só podem ser respondidas se confrontadas com conceitos que variam de sociedade para

57 GUIVANT, 1998, p. 04-05. 58 GUIVANT, 1998, p. 05.

59 Sobre o assunto cf. o trabalho realizado pela antropóloga Mary Douglas, publicado em 1985, que levantou

questões morais relativas à aceitabilidade dos riscos, afirmando que pressões políticas e econômicas eram determinantes na formação da opinião pública referente aos riscos que poderiam ou não ser tolerados: DOUGLAS, Mary. La aceptabilidad del riesgo según las ciencias sociales. Barcelona: Paidós, 1996.

sociedade, como o conceito de qualidade de vida, por exemplo.

Para Beck, o debate entre realistas e construtivistas não impede que as duas correntes estejam de acordo em seus diagnósticos, qual seja, a afirmação de que se vive hoje em uma sociedade de risco global. No entanto, nenhuma dessas correntes tem êxito em suas explicações acerca dos riscos. A idéia construtivista tende a ignorar a enorme diferença existente entre os riscos objetivos da atualidade e aqueles característicos da primeira modernidade. Para essa teoria, a diferença baseia-se apenas na forma como os riscos eram percebidos antes do alarme ecológico e após ele. Trata-se, portanto, de um “construtivismo ingênuo”61, incapaz de

perceber que a materialidade dos riscos globais, com efeitos destrutivos, existe independentemente de sua identificação pelas ciências sociais.

A perspectiva realista, por outro lado, afirma a existência de riscos globais utilizando-se das ciências naturais, vale dizer, de estudos quantitativos que comprovam a dimensão dos riscos. Trata-se de um realismo “irreflexivo”62, que considera possível a

construção de um conhecimento “neutro” acerca dos riscos.

Um interessante estudo sobre a pretensa neutralidade técnico-científica foi desenvolvido durante a década de 70, em quatro países: EUA, Inglaterra, Holanda e Alemanha Ocidental. Tal estudo investigou as diferentes análises de riscos e processos decisórios para a instalação de terminais de gás liquefeito, proposto como alternativa de energia durante a crise do petróleo, e revelou que o método adotado de análise de risco refletiu as prioridades em jogo. Os técnicos favoráveis ao empreendimento enfatizaram a baixa probabilidade de ocorrência de acidentes e as compararam com riscos existentes no cotidiano das pessoas, como ser atingido por um raio em uma tempestade. Já os opositores enfatizaram as conseqüências de um possível acidente. Esse trabalho demonstra que, diante de incertezas e limitações do conhecimento técnico e científico na análise de riscos, são escolhas políticas que determinam a aceitabilidade ou não deles – apesar dos resultados das análises serem postulados como argumentos racionais (científicos) centrais para a tomada de decisão63.

Retornando ao debate entre realistas e construtivistas, Beck tenta superá-lo afirmando que, por um lado, o risco existe independentemente da percepção humana e, por outro,

61 BECK, 2002, p. 40-41. 62 BECK, 2002, p. 37.

63 PORTO, Marcelo Firpo de Souza. Considerações sobre a dinâmica de regulação dos riscos industriais e a

vulnerabilidade da sociedade brasileira. In: HERCULANO, Selene C.; PORTO, Marcelo Firpo de Souza; FREITAS, Carlos Machado de (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói: EdUFF, 2000, p. 162.

quando identificado, sua dimensão varia de sociedade para sociedade. Essa variação pode se dar em relação aos receptores da informação, que dão a ela maior ou menor importância, o que interfere no modo como o risco será gerido; ou, ainda, em relação aos próprios técnicos responsáveis pela produção da informação, que sofrem influências ideológicas nas suas pesquisas. Desse modo, todas as informações existentes acerca dos riscos são construções sociais. Porém, a ausência de informação ou percepção não significa que os riscos não existem.

Segundo Guivant, a partir da posição realista, Beck defende que o conhecimento científico é importante para identificar e demonstrar a dimensão que os riscos tomam na atualidade. Entretanto, é a perspectiva construtivista a chave para perguntas sobre quais atores, instituições, estratégias e recursos são decisivos para a fabricação e gestão desses riscos. Por isso, os riscos existem independentemente da percepção social, mas é a partir dessa percepção que eles podem ser transformados (ocultados, naturalizados, manipulados, ou, ainda, discutidos e mitigados)64.

Como resultado da confluência entre as mencionadas perspectivas – os riscos globais existem independentemente da percepção social, mas é a partir de seu reconhecimento que se definem os padrões de riscos aceitáveis – os limites do conhecimento científico para estabelecer padrões de segurança e, assim, identificar riscos, poderiam ser aceitos com menos resistência pelos peritos. Em outras palavras, os peritos abririam mão do discurso da neutralidade científica e reconheceriam as incertezas inerentes à produção do conhecimento. Reconhecer as incertezas técnicas que envolvem a determinação de padrões aceitáveis de riscos, bem como o fator relativo à percepção social como constitutivo desses mesmos padrões, seria essencial para a abertura do processo decisório concernente aos riscos que determinada sociedade aceitaria correr.