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PARTE III – O caso levado ao Judiciário

5. Os argumentos do Tribunal

5.2 O país precisa da Usina Hidrelétrica de Barra

Outro argumento utilizado pelo Presidente do Tribunal para fundamentar suas decisões se refere à necessidade que o país teria de aumentar sua produção de energia elétrica para se desenvolver. A primeira vista, parece um argumento irrefutável, afinal, o país precisa de investimentos; precisa atrair a indústria e criar empregos. No entanto, a partir da constitucionalização do Direito Ambiental, o Brasil fez uma opção, ao menos formalmente, de verificar o custo ambiental de seus programas de desenvolvimento. Projetos de infra-estrutura, a instalação de indústrias, políticas de expansão da atividade agrícola, e todas as demais atividades que possuem um significativo impacto ambiental estão sujeitas a regras que visam, como fim, o desenvolvimento sustentável. Por isso, a devastação do vale do rio Pelotas não poderia ter sido

permitida em razão de um juízo político tão estreito – e totalmente inadequado aos novos valores do Direito ecológico – segundo o qual tudo é possível em nome do desenvolvimento.

Ademais, o consórcio BAESA, que detém a concessão da UHE de Barra Grande, é formado por um conjunto de empresas (Alcoa Alumínio, Barra Grande Energia, Companhia Brasileira de Alumínio, Camargo Corrêa Cimentos e DME Energética) que se dedica a atividades industriais consideradas eletrointensivas ou energo-intensivas371. São produtoras de cimento e alumínio. As atividades eletrointensivas se destacam, além de seu alto consumo de energia elétrica, pela sua capacidade extremamente reduzida de geração de empregos. Segundo Célio Bermann:

Tratam-se de processos produtivos que consomem energia de forma significativa, colaborando para a pressão sobre os recursos naturais, ao mesmo tempo que o número de postos de trabalho criados por unidade de energia consumida se contrapõem à retórica da “geração de empregos”, comumente utilizada por essas empresas372.

Com a privatização das empresas de distribuição e geração de energia no país, criou-se a figura do produtor independente de energia elétrica373. Para assegurar o suprimento de energia, as industrias eletrointensivas têm investido na autoprodução. As empresas participam de projetos de implantação de usinas hidrelétricas para uso exclusivo da eletricidade em suas plantas industriais. Desse modo, o potencial hidráulico de um rio, que é um bem público, passa a ser utilizado de forma privada.

É esse o caso da UHE de Barra Grande, que destinará 5,3% de sua energia para autoprodutores e 94,7% para a produção independente374. O regime de produtor independente

permite que a energia elétrica seja tratada como uma mercadoria e vendida para as distribuidoras. Já o regime de autoprodução considera a energia como insumo para a atividade do produtor. Vale ressaltar que, na constituição de consórcios para a construção de usinas e na indicação da energia elétrica gerada, muitas empresas aparecem como produtores independentes, muito embora a destinação da energia gerada seja o consumo próprio375.

Segundo o princípio que fundamenta o regime da autoprodução, o autoprodutor

371 BERMANN, Célio. Exportando a nossa natureza. Produtos intensivos em energia: implicações sociais e

ambientais. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2004. p. 11.

372 BERMANN, 2004, p. 43.

373 Ver: BRASIL. Lei n.º 9.074, de 07 de julho de 1995. Estabelece normas para outorga e prorrogações das

concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14 fev. 2006.

374 BERMANN, 2004, p.55-59. 375 BERMANN, 2004, p. 63.

deixaria de consumir a energia do sistema público e esse se livraria do fantasma do “apagão”. Nesse sentido, a oferta de energia elétrica seria ampliada sem o investimento de recursos públicos no setor376. Entretanto, segundo conclui Célio Bermann, em um estudo que procurou avaliar a

estratégia desenvolvida nos últimos anos pelos setores industriais eletrointensivos para assegurar seu suprimento de energia:

Há que se questionar a legitimidade da expropriação [dos potenciais hidrelétricos] para fins de atividades consideradas privadas, seja na condição de produtor independente ou para fins de consumo exclusivo. A argumentação utilizada para justificar tal providência se refere ao entendimento de que a implantação de unidades geradoras de energia elétrica, qualquer que seja o regime de exploração, redunda na ampliação da capacidade de atendimento à demanda nacional, atendendo, portanto, o interesse público envolvido. No caso específico da autoprodução, as novas unidades geradoras representariam a disponibilização de quantidades de energia que seriam necessariamente destinadas ao atendimento das necessidades desses segmentos industriais interessados. O interesse público seria também observado pelo incremento das receitas públicas, geração de empregos e melhoria das condições de vida da população. Entretanto, os dados apresentados no presente estudo revelam que tratam-se de empreendimentos que apenas asseguram a ampliação da capacidade de produção de cada uma das empresas eletrointensivas envolvidas. Dessa forma, não existe a decantada folga para o sistema público. Pelo contrário, as usinas hidrelétricas licitadas para o regime de autoprodução, na verdade subtraem do sistema público a desejável ampliação da oferta377.

Verifica-se, assim, que o interesse público na conclusão da obra é questionável. O único dinheiro público investido no projeto foi sob a forma de empréstimo tomado no BNDES, e parte da energia produzida não se destina ao consumo da sociedade, mas sim às plantas industriais das empresas que compõem o consórcio BAESA. O modelo energético brasileiro, baseado na expansão do parque de grandes hidrelétricas privadas, é muito contestado principalmente por entidades que se preocupam em pensar um modelo de desenvolvimento sustentável para o país, como a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e o Grupo de Trabalho sobre Energia, Meio Ambiente e Desenvolvimento do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS)378.

Ademais, no caso em estudo, a CF é clara ao identificar o interesse público com a preservação do meio ambiente. Nesse sentido, Alice Gonzalez Borges observa que, quando uma ação administrativa é exercida a fim de atingir um interesse relevante, mas representa um dano ecológico, surge um conflito na definição do que seja interesse público. Casos assim,

376 BERMANN, 2004, p. 61. 377 BERMANN, 2004, p. 63. 378 Ver: BERMANN, 2004.

levados à apreciação do Judiciário, não apresentam maior dificuldade na definição do interesse público, pois “o art. 225 da Constituição da República já impõe, ao Poder Público e à coletividade, o dever de defender o meio ambiente e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações”379.