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CAPÍTULO I – O RISCO AMBIENTAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

3. Algumas críticas à teoria da sociedade de risco

3.3 O risco na visão sistêmica

Outro crítico contundente da teoria da Sociedade de Risco é Raffaele de Giorgi. Segundo ele, a teoria de Beck produz expectativas que não poderão ser asseguradas, pois o risco é um elemento estruturante da sociedade que não pode ser afastado. No seu entendimento, o risco é uma modalidade de relação com o futuro. Trata-se de uma condição inerente ao funcionamento dos diversos sistemas que compõem uma sociedade complexa96.

Nesse sentido, segundo Varella, Raffaele de Giorgi prega a impossibilidade ou, por vezes, a desnecessidade de se tomar medidas precaucionárias, eis que a geração de novos riscos faz parte da própria evolução social. Além disso, “as tecnologias a serem geradas na época

96 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco. Vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor,

da existência concreta dos futuros riscos permitirão alternativas de soluções ainda inexistentes no tempo presente”97.

Em razão da peculiaridade da linguagem utilizada por Giorgi, para compreender sua afirmação é preciso adentrar na teoria luhmanniana. Como não pode ser objetivo desse trabalho expor também a análise exaustiva de tal teoria, só se apresenta o que é imprescindível para o entendimento da visão sistêmica do risco.

Luhmann descreve os mecanismos que organizam o funcionamento da sociedade capitalista e as funções que os tornam estáveis. Para ele, a modernidade envolve múltiplas possibilidades de ações, escolha e eventos. A fim de possibilitar seu funcionamento, são necessárias seleções que reduzam a totalidade dos comportamentos possíveis. Os sistemas, por desenvolverem papéis diversos, são produtos dessas seleções. O sistema jurídico, por exemplo, é sensível apenas ao que o autor denomina de expectativas normativas generalizadas de forma congruente. O termo “generalização” significa que a compreensão do sistema jurídico não pode ser individual ou subjetiva, ou seja, um ordenamento jurídico é geral quando existe independentemente de mudanças no ambiente e de acontecimentos individuais. Em outras palavras, o direito garante as expectativas estruturadas normativamente – positivadas – e é independente em relação às expectativas do ambiente. “Congruente” significa que a segurança do sistema é buscada em três dimensões: temporal, social e material. A dimensão temporal deriva da positivação do Direito, capaz de assegurar certas expectativas e, assim, trazer segurança contra desilusões. A dimensão social combate a insegurança provocada pelo dissenso por meio da institucionalização de procedimentos que garantem certa normalidade na formação da vontade comum. Já a dimensão material busca a segurança contra as incoerências e contradições do sistema e assim o faz por meio da fixação de programas, valores, papéis e instituições que procuram delimitar o sentido da generalização. “Expectativas normativas” são resistentes aos fatos, ou seja, são expectativas que não se adaptam aos fatos a fim de satisfazer expectativas individuais. Apenas as expectativas generalizadas de modo congruente, vale dizer, dentro de certos limites estruturais, é que podem ser chamadas de jurídicas98.

Essa seleção implica a redução da complexidade e é implementada de duas formas: por meio do deslocamento dos problemas, ou seja, o direito seleciona e absorve do

97 VARELLA, 2005, p. 137.

98 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002,

ambiente apenas aqueles problemas que podem ser identificados pelos seus signos típicos – legalidade e ilegalidade; e por meio de uma dupla seletividade: a realização de escolhas – a definição de leis - e a conexão entre elas. Nesse sentido, o direito é um mecanismo de seleção e estabilização de expectativas99.

A cada escolha realizada, o sistema deixa de fora uma gama de expectativas. Para Luhmann, a sociedade sempre foi uma rede de comunicações, que variou historicamente. Sua evolução se deu com a variação, seleção e estabilização das estruturas que a constituem. Na modernidade, o que diferencia tais estruturas são critérios funcionais. A modernidade se caracteriza pela estabilização de diversos sistemas especializados em realizar determinadas funções, como, por exemplo, o direito, a política e a economia.

Um sistema é aberto ao ambiente, mas o que o caracteriza são justamente os elementos que o diferenciam do ambiente e a auto-reprodução desses elementos. Um sistema possui seu próprio código de comunicação e operações específicas de reprodução e abertura.

Todos os sistemas especializados da sociedade moderna funcionam simultaneamente. Cada um deles responde às demandas do ambiente com suas próprias estruturas, de forma que é possível que um sistema reaja ao que se passa em outros sistemas, mas essa reação é sempre transmitida através de uma linguagem própria. Nesse sentido, Luhmann descreve um sistema como operativamente fechado e cognitivamente aberto, o que equivale dizer que ele auto-reproduz seus elementos e é capaz de diferenciar aquilo que caracteriza suas necessidades internas daquilo que constitui os problemas do ambiente (nesse sentido, apenas o Direito é capaz de dizer o Direito; esse sistema só é sensível aos problemas do ambiente que podem ser compreendidos de acordo com um código próprio de legalidade/ilegalidade)100.

Em síntese, os sistemas, tais como descritos por Luhmann, buscam estabilidade e segurança por meio da redução da complexidade social. Nesse contexto, a normalidade é constituída por acontecimentos que ocorrem com certa regularidade e que permitem calcular as ações. Entretanto, a redução da complexidade é realizada por meio de seleções arbitrárias, sendo que a possibilidade de erro é intrínseca a cada escolha. Por isso, o risco, na teoria dos sistemas, é identificado com a contingência relativa à seleção e à redução da complexidade.

99 CAMPILONGO, 2002. p. 20-21. Sobre a visão sistêmica do Direito, ver: QUEIROZ, Marisse Costa de.

Contingência e direito positivo: o paradoxo do direito na modernidade. Revista Seqüência. Florianópolis, ano XXV, n.º 49, dez. de 2004.

Giorgi, partindo da teoria dos sistemas, afirma que o risco não é uma categoria que caracteriza a sociedade moderna, no sentido pretendido por Ulrich Beck, e tampouco o resultado de um processo de diminuição de controle institucional sobre as decisões. Ao contrário, o risco “é uma modalidade da relação com o futuro: é uma forma de determinação das indeterminações segundo a diferença de probabilidade/improbabilidade”101.

Com isso, Giorgi assevera que as teorias que pretendem pensar o risco e, principalmente, pensar formas de controlá-los, são teorias que criam expectativas que não serão contempladas na medida em que o risco é uma condição de operação dos sistemas. O risco advém da evolução da sociedade, que se torna cada vez mais complexa. Assim, qualquer descrição teórica do risco é apenas uma descrição possível. Pode, contudo, haver outras. Desse modo, quando Beck se propõe a pensar condições para a tomada de decisões relativa aos riscos, ou explicar a realidade a partir dessa categoria, ele falha, porque é enganosa a idéia “de que os problemas sociais podem ter soluções específicas”; ou ainda, “de que a racionalidade pode controlar as conseqüências das decisões”102.

Nessa perspectiva, as expectativas de controle em relação ao risco não podem ser asseguradas. A sociedade pode lançar mão de estratégias de retardamento dos riscos, mas não de estratégias que o evitam. Assim, Raffaele de Giorgi afirma que “o risco é uma aquisição evolutiva do tratamento das contingências que, se exclui toda segurança, exclui também todo destino”103. Ele se diferencia do Direito, que fixa pressupostos para a orientação das expectativas com o futuro, e da Economia, que determina as modalidades de acesso aos bens. O risco evidencia os limites dos sistemas jurídico e econômico enquanto sistemas que buscam satisfazer expectativas futuras, pois toda tentativa envolve a probabilidade ou improbabilidade do resultado esperado. Ou seja, toda tentativa tem como referência a incerteza, o não-saber e a fatalidade104.

A visão sistêmica do risco, tal como proposta por Giorgi, que faz dele um elemento essencial para a operacionalidade do Direito, entre outros sistemas, é, ao que parece, determinista. Vale dizer, o risco, por ser condição, é um elemento essencial das relações sociais que não pode ser controlado totalmente, o que o torna uma característica inerente às sociedades modernas. Por isso, toda expectativa carrega riscos que não podem ser estabilizados totalmente.

101 GIORGI, 1998, p. 197. 102 GIORGI, 1998, p. 197. 103 GIORGI, 1998, p. 198. 104 GIORGI, 1998, p. 198.

Qualquer teoria que busca descrevê-los e pensar condições para superá-los é falsa na medida em que tais condições não existem, afinal, “a sociedade é assim como é”105.

Giorgi nega o pensamento de Beck, que busca condições para o aperfeiçoamento das decisões que podem acarretar danos futuros, pela simples razão que os riscos são justamente o que nos liga com o futuro e, nesse sentido, eles não deixarão de existir nunca.

Ora, qual é a finalidade da descrição da sociedade contemporânea senão a de identificar seus múltiplos e complexos problemas para, em seguida, pensar meios para superá- los? A descrição sociológica não é um fim em si mesmo, mas um meio para a identificação de problemas e o ponto de partida para pensarmos condições de aprimoramento das relações humanas. Nesse sentido, em que pesem as críticas consideradas, a teoria de Beck fornece elementos para a compreensão do modo pelo qual a sociedade lida com os riscos ecológicos e para o aperfeiçoamento das decisões que podem acarretar danos futuros. Apesar do autor ser vago quanto à análise da estreita relação existente entre a crise ambiental e o modo de produção capitalista, as críticas desferidas por ele à racionalidade técnico-científica, bem como sua análise da “irresponsabilidade organizada”, que permitiu a constituição da sociedade contemporânea como uma sociedade de risco, e sua descrição do modo pelo qual as instituições políticas, econômicas e jurídicas administram os riscos, auxiliam, sem dúvida, na compreensão da realidade, no que concerne à gestão de riscos.

CAPÍTULO II – O LICENCIAMENTO AMBIENTAL COMO