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Risco global e risco local: as peculiaridades da modernização reflexiva no

CAPÍTULO II – O LICENCIAMENTO AMBIENTAL COMO INSTRUMENTO DE

1.1 Risco global e risco local: as peculiaridades da modernização reflexiva no

A teoria de Beck sobre a sociedade de risco tem como pressuposto a passagem da primeira para a segunda modernidade. Vale dizer, o fenômeno da modernização reflexiva pressupõe uma sociedade industrial desenvolvida nos moldes dos Estados da Europa ocidental e da América do norte. O próprio autor assume que parte da realidade européia para formular sua teoria da modernização reflexiva106. De acordo com ela, as instituições que a segunda modernidade dissolve ou transforma são: o Estado-nação de bem-estar social, com alto desenvolvimento tecnológico e pleno emprego.

Isso não significa, no entanto, que a modernização reflexiva levada a efeito nos países desenvolvidos não tenha conseqüências em países periféricos como o Brasil. Ao contrário, os riscos gerados na segunda modernidade, por serem globais, desafiam as instituições de todos os países, especialmente daqueles que ainda estão num processo de modernização, pois o modelo de desenvolvimento por eles seguido é o mesmo que levou os países centrais a se constituírem como sociedades de risco.

É claro que as manifestações da reflexividade somadas à reflexão não se dão aqui com tanta intensidade como nos países centrais, principalmente no que concerne à implementação das leis ambientais107. Não obstante, a teoria chama a atenção para: (a) o caminho desastroso que os países periféricos têm seguido na busca por um desenvolvimento que já se mostrou insustentável do ponto de vista ambiental; (b) as diversas conseqüências da

106 BECK, 1997, p. 07.

107 No mesmo sentido, ver: GUIVANT, Julia. Reflexividade na sociedade de risco: conflitos entre leigos e peritos

sobre os agrotóxicos. In: HERCULANO, Selene C.; PORTO, Marcelo Firpo de Souza; FREITAS, Carlos Machado de (organizadores). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói: EdUFF, 2000, p. 295.

modernização reflexiva levada a cabo nos países desenvolvidos. Entre tais conseqüências, especialmente com referência ao Brasil e outros países, estão: a transferência de indústrias poluentes e rejeitos perigosos para os países periféricos, como resultado da mobilização social que levou os países centrais a intensificarem suas leis ambientais; o crescente número de tratados internacionais para a proteção da natureza, que impulsionam o desenvolvimento da legislação nacional (sem, contudo, surtirem os efeitos desejados); o aumento do número de organizações não-governamentais internacionais que atuam no país, fortalecendo o movimento ambientalista etc.

No Brasil, a realidade do risco é ainda mais complexa que aquela dos países desenvolvidos, eis que: (a) os problemas da “sociedade de escassez, em que a distribuição da riqueza é altamente desigual entre as classes sociais – algo que já não caracteriza, da mesma maneira, as sociedades altamente desenvolvidas”108, se soma aos (b) problemas da sociedade de risco, sem a “reflexão” que tem caracterizado alguns setores dos países desenvolvidos.

Nesse sentido, o Brasil sofre, além de algumas ameaças que se coadunam com o conceito de risco elaborado por Beck, outros riscos peculiares, relativos ao subdesenvolvimento. O conceito de risco global, que caracteriza a modernização reflexiva, pode ser identificado no país pela legalização do plantio e da comercialização de OGMs; pelas ameaças nucleares relativas, primeiramente, à segurança das usinas de Angra I e II e, ainda, com a possível construção de uma terceira usina nuclear – Angra III; e pela previsão do aumento da emissão de gases de efeito estufa relacionada com as estimativas de crescimento da economia, por exemplo. A esses riscos, que se encaixam perfeitamente na descrição de Beck sobre as grandes ameaças da atualidade, somam-se outros relativos ao modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo país, que mais se assemelham aos riscos residuais, característicos da primeira fase da sociedade de risco.

Trata-se de riscos gerados como produtos indesejados da modernização e que, por estarem ligados a algum tipo de resultado reputado benéfico, não são reconhecidos publicamente como problemas importantes do ponto de vista sócio-ambiental (a não ser, é claro, por ambientalistas). Desse modo, não ganham a dimensão política que mereceriam porque grande parcela da opinião pública não os reconhece como ameaças ao meio ambiente e à saúde humana em razão da atividade de risco estar ligada a algum tipo de benefício econômico, político ou

social, como a geração de empregos e a produção de “riquezas”.

É o caso, por exemplo, dos riscos ambientais ligados aos projetos governamentais de infra-estrutura, de expansão das fronteiras agrícolas e de ampliação do parque de grandes usinas hidrelétricas. As questões ambientais relacionadas com tais atividades geralmente são tidas como empecilhos ao desenvolvimento do país e, por isso, não são reconhecidas como questões prioritárias em relação às obras ou atividades empreendidas. É nesse aspecto que a “reflexão”, no sentido de repensar os caminhos do desenvolvimento, não está tão presente no Brasil – ao menos não de maneira definitiva, capaz de produzir mudanças efetivas – como supostamente ocorre nos países desenvolvidos.

Com efeito, pode-se dizer que as conseqüências da modernização reflexiva intensificam os desafios da sociedade brasileira e demonstram as incongruências existentes entre o modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo país e sua pretensão de se constituir em um Estado que respeita o meio ambiente.

De certa forma, alguns desafios gerados pela sociedade de risco já engendraram o debate sobre o papel do Direito na regulação de riscos e na prevenção de ações danosas ao meio ambiente e à qualidade de vida. É o que se verifica nas discussões sobre as vantagens e desvantagens da criminalização de condutas capazes de prejudicar a natureza109, e nos avanços relativos ao direito processual, que se deram a partir da promulgação da Lei n.º 7.347/1985, que instituiu a Ação Civil Pública (ACP) no ordenamento nacional, buscando dar efetividade à proteção dos bens difusos e coletivos110, além da adoção, mencionada no capítulo anterior, da responsabilidade civil objetiva no que concerne aos danos ambientais.

No que se refere especificamente ao Direito Ambiental, sua principal reação às demandas da sociedade de risco diz respeito à adoção, por parte da Administração Pública, de procedimentos específicos para que obras e atividades potencialmente danosas possam ser controladas. Atualmente, uma ampla gama de normas regulamenta tanto o licenciamento ambiental como a elaboração do Estudo Prévio de Impacto ambiental (EIA-RIMA), ambos

109 Ver: BRASIL. Lei n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas

derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14 fev. 2006.

110 BRASIL. Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos

causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (vetado) e dá outras providências. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14 fev. 2006.

exigidos para a implantação de tais obras e atividades. Contudo, a efetividade desses instrumentos apenas pode ser analisada por meio da confrontação das normas com os efeitos práticos de sua aplicação ou não-aplicação.