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Litígios coletivos de difusão irradiada

3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS À COMPREENSÃO DA TUTELA COLETIVA

3.3. DOS DIFERENTES TIPOS DE LITÍGIO COLETIVO: UM BREVE EXAME DA

3.3.2. Da definição das situações jurídicas coletivas a partir dos tipos de litígio coletivo

3.3.2.4. Litígios coletivos de difusão irradiada

O litígio coletivo de difusão irradiada envolve lesões que afetam diversos indivíduos e grupos de diferentes formas e com intensidades variáveis, inexistindo, contudo, um vínculo interno entre os afetados. Os integrantes da coletividade não compartilham de uma mesma

192 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

p.81.

193 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

p.81.

194 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

perspectiva em relação à lesão e também não integram uma comunidade coesa, o que resulta em diferentes visões sobre possíveis soluções. Há, portanto, verdadeira multiplicidade de polos de interesse, existindo oposição entre o grupo titular e o réu, mas também entre os diferentes integrantes do grupo (conflituosidade elevada)195. São exemplos que bem caracterizam a situação: os litígios socioambientais resultantes de grandes obras de infraestrutura, tais como como ferrovias, portos e usinas hidroelétricas196 ou termonucleares; isto porque tais empreendimentos repercutem de maneira contundente na vida de diversas pessoas desvinculadas entre si, sendo que tais efeitos possuem as mais diversas formas e intensidades.

No caso da construção de portos, há uma multiplicidade de interações que afetam de maneira radical e diferente a vida das pessoas. A população que vive da prestação de serviços em geral provavelmente experimentará sensível incremento em sua atividade e renda (portos costumam gerar aumento na atividade turística e do próprio fluxo de pessoas); a indústria e agricultara, de igual modo, experimentarão sensível incremento à luz da possibilidade de escoamento rápido e barato da produção; por outro lado, os indivíduos que vivem da pesca local poderão ter sua atividade influenciada negativamente por mudanças na fauna marítima e desvio de correntes, sendo que as obras também poderão resultar na interdição/fechamento de áreas, mudanças de tráfego, bem como eventual incremento da criminalidade, o que despertará opiniões contrárias no grupo dos habitantes originários da localidade. Em síntese, há uma multiplicidade de interesse orbitando ao redor de uma mesma lesão, podendo existir conflitos entre as próprias pessoas afetadas pelo litígio.

Além de diversidade de perspectivas quanto ao litígio, há também a seguinte particularidade: nos casos em questão, os problemas e interesses em torno da matéria tendem a

195 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

p.85-86.

196 “Exemplifique-se com os conflitos decorrentes da instalação de uma usina hidrelétrica. Se, no início do processo

de licenciamento, são discutidos os impactos prospectivos da instalação do empreendimento, em seu aspecto social e ambiental, a fase de obras já muda o cenário da localidade, com a vinda de grandes contingentes de trabalhadores, que alteram a dinâmica social. Os problemas passam a ser outros, muitas vezes, imprevistos, e os grupos atingidos já não são os mesmos que eram no primeiro momento, em que se decidiam os contornos do projeto. Na seara ambiental, altera-se o curso ou o fluxo das águas do rio, bloqueando-se estradas e separando comunidades antes vizinhas. Pessoas são deslocadas. No meio ambiente natural, a fauna e a flora sofrem impactos expressivos. Com o fim das obras, toda a dinâmica se altera novamente. Muitos trabalhadores que vieram se vão. Outros permanecem. As pessoas deslocadas formam novos bairros e povoações, que exigem a implementação de novos serviços públicos. Apenas em razão da realização de uma obra, o meio ambiente natural e a dinâmica social se alteram de tal maneira que a sociedade que existia naquele local adquire feições totalmente distintas das que existiam originalmente.” (VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016, p.85-86.)

mudar ao longo do tempo; a conformação dos efeitos da lesão não é estática, de modo que grupos de pessoas originalmente indiferentes à lesão podem acabar sendo afetados ao longo do processamento do litígio irradiado. Há, portanto, uma verdadeira fluidez na delimitação dos diferentes interessados/afetados e perspectivas do litígio.

Com relação ao tratamento jurídico a ser dispensado à lesão, há a seguinte particularidade: a despeito da multiplicidade de impactos sociais negativos, não há ilicitude abstrata na construção de um porto ou mesmo de uma usina, afinal, a existência desse tipo de empreendimento não é objetivamente afastada pelo ordenamento. É inegável, contudo, que a consecução de tais empreendimentos trará problemas para diferentes grupos. Logo, e como adverte Vitorelli, não se pode encarar a solução do litígio daí advindo com base no simples binômio licitude/ilicitude: o caminho está na forma de concretização do empreendimento, devendo a tutela coletiva buscar um ponto ótimo na realização dos diferentes interesses em jogo197. É ínsita, portanto, a multiplicidade de modos abstratamente possíveis de tutela dos interesses (complexidade).

Portanto, os litígios coletivos de difusão irradiada são marcados pela complexidade e conflituosidade. Existem diversos resultados possíveis (formas de tutela lícita), bem como uma coletividade marcada pela existência de interesses internos claramente variados e dinâmicos198. Nessa perspectiva, a referida modalidade de litígio difere consideravelmente dos de difusão global e local, eis que: (i) é possível identificar pessoas que sofreram danos em diferentes intensidades/formas (isto é, há aqueles que estão mais próximos dos efeitos e outras pessoas que estão em zonas mais afastadas de impacto); (ii) inexiste entre os afetados uma mesma identidade de perspectiva199.

É nos litígios de difusão irradiada que se percebe mais facilmente a inadequação da ideia de indivisibilidade do direito coletivo e de indeterminação dos membros do grupo (presente no conceito legal de direitos coletivos). Como na aludida modalidade de conflito os impactos específicos são diversos, o tratamento impessoal resultante da indeterminação/indivisibilidade torna a vontade do legitimado coletivo mais relevante do que a dos integrantes da coletividade titular do direito, o que é inadequado. Elimina-se, assim, a complexidade social do conflito de

197 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

p.88.

198 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

p.88.

199 VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: RT, 2016,

modo a simplificar o processamento do problema, operação essa que, embora a princípio pareça útil, acaba por obscurecer o caminho para obtenção de uma solução que seja efetivamente adequada aos anseios dos afetados200.

Para superar tal problema, Vitorelli propõe que se examine o problema da titularidade do direito tendo por marco a sociedade dinâmica e elástica201, que não dependa necessariamente de

“relações jurídicas, dimensões geográficas ou fronteiras nacionais, mas apenas da circunstância fática de terem todas sofrido a mesma lesão, ainda que em diferentes intensidades”202. Os

integrantes de tal sociedade não seriam titulares do bem jurídico numa mesma escala, respeitando-se, no ponto, a intensidade da lesão que cada um experimentou em função do ilícito: aqueles menos afetados estariam na periferia, ao passo que os grupos de indivíduos mais atingidos pela lesão estariam no centro da situação jurídica coletiva. Rompe-se, portanto, com a ideia de indivisibilidade para estabelecer que o direito transindividual pertença em maior medida àqueles que foram mais afetados pela violação e em menor medida aos que foram menos afetados203.