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Perspectiva geral: a legitimidade para cada ato

4. A RECUPERAÇÃO JUDICIAL COMO PROCESSO COLETIVO

4.5. ALGUNS REFLEXOS DA PERCEPÇÃO DA RECUPERAÇÃO COMO PROCESSO

4.5.2. Participação e representação na recuperação judicial

4.5.2.1. Perspectiva geral: a legitimidade para cada ato

O presente estudo revelou que a crise empresarial é um conflito que atinge situações jurídicas coletivas e individuais. Trata-se, pois, de verdadeiro litígio coletivo de difusão irradiada, uma vez que há alta carga de conflituosidade entre os diferentes membros da coletividade afetada, bem como uma multiplicidade de combinações de soluções possíveis (isto é, complexidade).

O exame das disposições processuais da Lei n. 11.101/2005 revela ainda a existência de diversos momentos processuais em que não há a participação dos potenciais afetados. Embora a assembleia geral de credores seja efetivamente um momento participativo, trata-se de uma oportunidade isolada; embora relevante, o referido momento processual não se presta à resolução de algumas questões que podem surgir ao longo do processo

A conversão da recuperação judicial em falência, por exemplo, é uma decisão estrutural que afeta praticamente todos aqueles que lidam de algum modo com a sociedade empresária, notadamente os credores respectivos320. Contudo tal deliberação pode ocorrer sem que os credores e demais afetados tenham oportunidade de interferir diretamente; isto é, a Lei n. 11.101/2005 permite que qualquer credor, o próprio Ministério Público, Administrador Judicial e o Comitê de Credores requeiram a convolação do processo em falência, inexistindo, pois, disposição que imponha/viabilize a participação ou consulta efetiva de todos os potenciais implicados.

De igual modo, o agravo de instrumento eventualmente manejado para discutir decisão de admissão do litisconsórcio ativo entre sociedades de um mesmo grupo econômico – deliberação judicial que tem o potencial de influir diretamente sobre a formação da maioria na assembleia geral de credores321 – envolve em regra apenas as sociedades em recuperação judicial

320 Reconhecendo o caráter estrutural da decisão que decreta falência: DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes;

OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Notas sobre as decisões estruturantes. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marcos Felix (Org.). Processos Estruturais. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 358.

321 Só para que se tenha noção do relevo de tal decisão, o litisconsórcio ativo na recuperação judicial pode resultar na

apresentação de um plano único e na soma dos créditos de ambas as recuperandas para fins de uma deliberação estrutural voltada a recuperar ambas as atividades (consolidação substancial). É possível, portanto, que tal decisão imponha um “esmagamento” da vontade de credores de uma determinada sociedade pelos credores da outra sociedade, o que têm efeitos drásticos sobre a própria condução do momento participativo da recuperação judicial (a

(litisconsortes) e o credor inconformado. Ou seja, trata-se de incidente recursal que afeta o próprio núcleo decisório e o procedimento da assembleia geral de credores, mas que, ainda assim, não contempla a participação dos potenciais afetados pela decisão judicial322.

Pois bem.

Em capítulo antecedente, demonstrou-se que grande parte dos processos coletivos é representativa. Ou seja, embora o resultado processual tenha o potencial de afetar a coletividade e seus integrantes, a legitimidade é exercida por alguém que não é titular da situação jurídica coletiva (um legitimado extraordinário). Também foi apontado que a participação dos potenciais afetados no processo individual está associada ao conteúdo da cláusula do devido processo legal. Consequentemente, a supressão da participação no processo coletivo deve dar-se apenas na medida necessária para viabilizar a atividade processual, ao passo que deve vir acompanhada de uma preocupação com a representatividade do legitimado, bem como associada a salvaguardas destinadas a viabilizar que a atuação resulte na obtenção de uma tutela efetiva das situações jurídicas em jogo323.

Por fim, afirmou-se que o processo em geral é uma sucessão de situações jurídicas dinâmicas, ao passo que a legitimação corresponde ao poder para prática de determinado ato no processo (não necessariamente correspondente à situação de direito material subjacente). Assim, é possível que a dinamicidade dos interesses – verificável facilmente na recuperação judicial – resulte em diferentes alinhamentos/desalinhamentos de perspectivas ao longo de todo o processo, o que impõe também um olhar dinâmico sobre a questão da legitimação para prática de cada ato.

Com base em todas as premissas acima, é possível concluir que a questão da legitimação para prática de atos é um problema relevantíssimo no âmbito da recuperação judicial. Como as posições processuais podem ser exercidas por sujeitos que em regra não são titulares da situação

assembleia geral de credores). Para entender melhor o complexo tema, conferir: (i) BASTOS, Joel Luís Thomaz. Litisconsórcio ativo e consolidação substancial na recuperação judicial. In: ELIAS, Luis Vasco (Coord.). 10 anos da lei de recuperação de empresas e falências: reflexões sobre a reestruturação empresarial no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 211-218; e, (ii) MITIDIERO, Daniel; FARO, Alexandre; DEORIO, Karina; LEITE, Cristiano. Consolidação substancial e convenções processuais na recuperação judicial. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais. n. 78, p. 219-228. São Paulo: RT, out./dez., 2017.

322 No caso OAS, por exemplo, o tema foi discutido entre o Grupo OAS e os credores que se insurgiram (ao menos

como partes), inexistindo, pois, uma preocupação com a participação/representação dos milhares de afetados pelo tema. Conferir: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI nº 2094999-86.2015.826.00000, DJ 31 ago. 2015, DP: 22 set. 2015. Disponível em: www.tjsp.jus.br, acesso em: 26/11/2017.

323 Nesse sentido, conferir: VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios

jurídica de direito material – afetando, portanto, sujeitos individuais ou coletividades ausentes –, o devido processo legal impõe uma atenção especial no sentido de se assegurar processualmente que a atuação dos legitimados repercuta adequadamente os interesses materiais subjacentes, viabilizando-se, consequentemente, que o resultado alcançado seja próximo àquele que se chegaria caso houvesse participação efetiva dos diferentes titulares das situações jurídicas de direito material em debate.

Além disso, tem-se que a imensa quantidade de interesses presentes na recuperação judicial leva a uma amplíssima dinamicidade de posições, o que impõe uma preocupação dinâmica com a representatividade de cada perspectiva. À medida que o processo se desenvolve, todos devem estar atentos para cada uma das situações jurídicas processuais possíveis, verificando-se, pois, se a atuação (potencial e efetiva) do legitimado específico atende ao devido processo legal na perspectiva representativa (imposta pela necessidade pragmática de processar litígios coletivos). Ou seja, há de haver um exame contínuo da legitimidade ad actum, a fim de se certificar a suficiência da representação exercida por cada sujeito processual em cada ato.

Em tal contexto, e à luz da própria pluralidade da legitimação da Lei n. 11.101/2005 (o processo é movimentado pelos credores, pelo Administrador Judicial, pelo Ministério Público e pelo próprio devedor), há de ser ser avaliada, sempre, a possibilidade/necessidade de pluralização da representação, bem como de criação de momentos participativos para além da própria assembleia de credores324. Essa preocupação, por sua vez, garante uma maior vazão ao devido processo legal no âmbito do processo de recuperação judicial de empresas, sendo, portanto, uma diretriz resultante da conclusão de que se trata de um processo coletivo.