• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. Um recorte dos direitos autorais na sociedade da informação

2.2. Reações às novas tecnologias

2.2.4. Reações de Mercado

2.2.4.3. Mercado de música independente, financiamento coletivo e o sistema pay

Paralelamente aos dois momentos da distribuição da música digital mencionados até agora, diversas plataformas dedicadas às músicas e músicos à margem da indústria fonográfica tradicional surgiram e se popularizaram. Como mencionado na seção anterior, as ferramentas digitais permitiram, em grande parte, com que artistas independentes, profissionais e amadores, produzissem e compartilhassem suas obras com o público sem a necessidade de um grande player da indústria do entretenimento por trás.

Ainda que quase todas as reações analisadas anteriormente às novas tecnologias tenham existido de forma a tentar coibir ou dificultar sua utilização na produção, reprodução e compartilhamento de obras intelectuais, as plataformas aqui analisadas tomaram o caminho oposto: enxergando o potencial destas tecnologias e da crescente produção amadora e independente, estes modelos de negócio foram estruturados de forma a fomentar e viabilizar esta criação e distribuição, auferindo lucro a partir disto. Ao contrário das anteriores “reações repressivas”, estas se configuram como “reações promocionais”.

No âmbito do mercado musical, podemos classifica-las em duas categorias: (i) plataformas que viabilizam a produção de obras musicais independentes através de financiamento coletivo; e (ii) plataformas que viabilizam a distribuição e compartilhamento destas obras possibilitando com que o artista seja remunerado por sua utilização.

O primeiro grupo de plataformas visa fornecer ao artista um elemento fundamental para a produção de suas obras: dinheiro. Neste sentido, o modelo mais proeminente são as plataformas de financiamento coletivo (ou crowdfunding, no original). Através delas, artistas podem criar e divulgar um projeto (por exemplo, a produção de um álbum), estabelecer um valor mínimo para que este projeto possa ser concretizado e receber doações de qualquer interessado312. Para estimular estas doações, o artista pode oferecer determinados benefícios a

312 Fonte: <http://olhardigital.uol.com.br/video/como-funciona-o-crowdfunding/36466 > Acesso em 20 de junho

quem doe uma quantia mínima estabelecida por ele, que pode variar de produtos autografados até ingressos para shows do artista.

Exemplos famosos destas plataformas são o Kickstarter, o PledgeMusic e o IndieGoGo estadunidenses e o Catarse e a Kickante brasileiros. Até maio de 2016, o Kickstarter, a maior dentre todas estas plataformas, havia arrecadado mais de 2.4 bilhões de dólares para cerca de 105 mil projetos diferentes, a partir de 11 milhões de doações únicas313. O grande diferencial desta plataforma é que o dinheiro pode ser devolvido aos doadores caso a meta estabelecida pelo artista não seja alcançada em determinado tempo (CARRIER, 2014, p. 297).

O método se mostrou tão popular que até artistas conhecidos, como o conjunto de hip hop americano De La Soul314 e a banda brasileira de hardcore Dead Fish315 tiveram seus últimos discos financiados com sucesso através de plataformas de crowfunding, captando muito mais do que o inicialmente previsto para a consecução do projeto. Via de regra, no entanto, os valores estimados e atingidos por cada projeto se referem apenas ao valor necessário para produção da obra, não servindo diretamente como fonte de remuneração para o artista (GINSBURG, 2015, p. 12).

Do valor doado, estas plataformas detêm para si uma porcentagem, variando desde de uma taxa de 5% estabelecida pelo Kickstarter316 até cerca de 13% do valor total arrecadado, adotado tanto pelo Catarse317 quanto pelo PledgeMusic318.

O segundo grupo de plataformas se volta à distribuição de obras musicais independentes já existentes, viabilizando um espaço de disponibilização e compartilhamento destas obras ao público, possibilitando com que o artista seja remunerado por isto. Dois tipos de plataformas foram popularizados nos últimos anos: as lojas de download que adotam o modelo pay what you want (PWYW) e as plataformas de streaming freemium que remuneram o artista a partir de publicidade inserida entre músicas, iguais aos serviços apontados na subseção anterior, mas com ênfase em artistas independentes.

313 Fonte: <https://www.kickstarter.com/about> Acesso em 15 de maio de 2016

314 Originalmente, a meta estabelecida pelo grupo era de 110 mil dólares. Ao final do prazo de doações, eles

havia arrecadado cerca de 6 vezes este valor. Vale ressaltar que o valor a mais é retido pelos artistas, não sendo devolvido aos doadores. Fonte: <https://www.kickstarter.com/projects/1519102394/de-la-souls-new-album> Acesso em 15 de maio de 2016.

315 A banda paulistana Dead Fish, em 2014, bateu recorde de arrecadações no cenário brasileiro de crowdfunding

ao conseguir captar mais de 250 mil reais para um projeto inicialmente estimado em apenas 60 mil reais. Fonte: <https://www.catarse.me/pt/deadfishoficial> Acesso em 15 de maio de 2016.

316 Fonte: < https://www.kickstarter.com/help/fees> Acesso em 15 de maio de 2016.

317 Fonte: < http://suporte.catarse.me/hc/pt-br/articles/203073877-Quanto-custa-para-usar-o-Catarse-> Acesso

em 15 de maio de 2016.

O sistema PWYW funciona de maneira muito simples: o artista disponibiliza sua obra à venda no formato download e permite com que qualquer interessado estabeleça o valor que será pago para adquiri-la, não importando se isto representa 1 ou 1000 reais (CARRIER, 2014, p 294). Apesar da flexibilidade no valor, o artista é remunerado sempre que um usuário adquire uma faixa ou álbum, enquanto uma porcentagem da venda é retida pela plataforma. O maior exemplo deste modelo de negócio é o estadunidense Bandcamp.

Fundado em 2007 Bandcamp, assim como as já estudadas plataformas de streaming, funciona como um híbrido de serviço de compra e venda de músicas digitais e rede social. É possível criar e compartilhar playlists, acrescentar usuários em sua lista de amigos e, mais importante, se comunicar diretamente com os artistas que disponibilizam à venda suas músicas e outros produtos no site319. É praxe que os artistas estabeleçam um valor mínimo que deve ser pago por suas músicas, geralmente em torno de 5 dólares por álbum. O Bandcamp retém 15% dos valores obtidos com todas as vendas digitais e 10% sobre qualquer outro tipo de produto que é disponibilizado pelo artista, como discos de vinil e camisetas320.

Este sistema de remuneração direta entre artista e fã, sem a presença de intermediários, se provou bastante popular entre artistas independentes, com o Bandcamp sozinho tendo remunerado seus artistas em mais de 100 milhões de dólares entre 2007 e 2014321.

A plataforma também conta com um sistema de reinvindicação de direitos autorais (copyright claim), nos moldes estabelecidos pela DMCA, onde o detentor de direitos autorais pode notificar o Bandcamp a retirar o conteúdo ilegal, e este retira e notifica o suposto infrator, que pode contranotificar o suposto detentor a partir da própria plataforma322. Vale mencionar que, ao contrário da tecnologia do Content ID mencionada na subseção anterior, o Bandcamp só retira conteúdo ilegal quando devidamente notificado pela parte (conforme estabelecido nos requisitos de safe harbor do DMCA), não existindo nenhum tipo de mecanismo automatizado para identificação de possíveis infratores. A vantagem da ausência de mecanismo automatizado é permitir maior sensibilidade em casos onde há utilização de obras preexistentes, mas esta utilização se enquadra dentro dos limites ao direito autoral,

319 Fonte: <http://bandcamp.com/artists?page=712 Acesso em 15 de maio de 2016

320 Se o valor pago pelo artista superar 5000 dólares, o Bandcamp fica com 10% do total. Fonte:

<https://bandcamp.com/pricing> Acesso em 15 de maio de 2016.

321 “Direct to Fan platform Bandcamp has now paid artists 100 Million dollars”. Forbes. (10/3/15)

http://www.forbes.com/sites/hughmcintyre/2015/03/10/direct-to-fan-platform-bandcamp-has-now-paid-artists- 100-million/#61765fef53b2

como é o caso de diversas obras pertencentes à cultura do remix, abrindo menos espaço para erros mecânicos.

No entanto, ao contrário do YouTube, principal utilizador do Content ID que recebe dezenas de milhões de novas obras todos os dias, o Bandcamp é bem menos frequentado, o que viabiliza a adoção do sistema de notice and takedown sem que seja necessária a sua automatização.

O sistema PWYW se mostrou popular mesmo para artistas já consagrados, como foi o caso do Radiohead em 2007. A banda resolveu disponibilizar seu sétimo álbum, In Rainbows, na forma digital a partir do modelo PWYW em seu site oficial. Neste caso, fãs poderiam também fazer o download gratuitamente, uma vez que não havia preço mínimo estabelecido. “Apenas” 60% dos usuários baixaram o disco gratuitamente e a banda lucrou mais com a venda online deste disco do que com a venda online de todos seus discos anteriores (AREWA, 2010, p. 450). Mais ainda: o disco vendeu cerca de 1,75 milhões de cópias físicas (em CD e vinil), alcançando o primeiro lugar nas paradas estadunidense e inglesa323.

Por fim, ainda há plataformas gratuitas de streaming324 que possibilitam com que qualquer um compartilhe suas obras, e possibilitam com que o artista seja remunerado através da inserção de anúncios publicitários enquanto o usuário escuta as músicas, exatamente da mesma forma que as modalidades freemium, já analisadas neste trabalho. No mesmo sentido, as duas principais plataformas que permitem compartilhamento de músicas por qualquer usuário via streaming, o YouTube e o SoundCloud, utilizam tecnologias de identificação automatizada de violações ao direito autoral.

As respostas de mercado, ainda que lenta e tardiamente, demonstraram que existem ferramentas e modelos de negócio que permitem com que a indústria e os artistas possam competir com os downloads ilegais sem a necessidade de se debruçar exclusivamente no direito autoral como forma de supressão de determinados comportamentos.

Não se pode dizer que os grandes players indústria fonográfica saíram vitoriosos exatamente da maneira como gostariam: as vendas digitais ainda não representam nem a metade do que consistiam as vendas físicas de discos em meados da década de 90; as plataformas digitais permitiram com que artistas sejam seus próprios intermediários, não só na produção, como também na comercialização de suas obras, o que de certa forma reduz a

323 “Radiohead’s In Rainbows Successes Revealed”. Pitchfork. (15/10/08) http://pitchfork.com/news/33749-

radioheads-in-rainbows-successes-revealed/> Acesso em 15 de maio de 2016.

324 Não nos estenderemos, na presente seção, na descrição destas plataformas, uma vez que as plataformas de streaming já foram trabalhadas em 2.2.4.2. supra e os problemas envolvendo direitos autorais e a tecnologia de

importância do papel das grandes gravadoras; ademais, os downloads ilegais ainda são uma realidade ao redor do mundo.

No entanto, após mais de 20 anos se debruçando sobre o direito autoral para tentar evitar a proliferação de determinados comportamentos a partir das novas tecnologias, a indústria só obteve sucesso quando incorporou estas tecnologias e estes comportamentos dentro do seu modelo de negócio, se afastando da obsessão pela aplicação da lei e buscando compreender o perfil do consumidor de música, adequando o mercado a ele. O sistema dos direitos autorais, no entanto, não se modificou junto com o mercado, e permanece, em muitos aspectos, desequilibrado em favor dos detentores de direitos autorais.

Terminada a análise das quatro categorias de respostas às novas tecnologias e suas consequências no sistema de direitos autorais, buscaremos, de forma breve, sintetizar os principais pontos que devem ser tratados em uma reforma à LDA para, no capítulo seguinte, analisar como o APL lidou com estes pontos.