• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1. Panorama do Debate Contemporâneo sobre Direitos Autorais

1.4. O Debate sobre a Relação entre Estrutura e as Funções do Direito Autoral

1.4.1. Repensando a Estrutura a partir da Função Promocional

O debate sobre a relação entre a estrutura e a função promocional do direito autoral é construído a partir dos dois posicionamentos acima descritos: De um lado, os maximalistas veem as novas formas de produção, reprodução e compartilhamento de obras intelectuais como uma ameaça aos direitos autorais, mais especificamente aos direitos patrimoniais do autor, de explorar economicamente seu trabalho.

O raciocínio é evidente: (i) as novas tecnologias permitem a cópia e o compartilhamento de conteúdo protegido a custo zero; (ii) esse conteúdo pode ser compartilhado mediante redes virtuais difíceis de serem monitoradas ou controladas; (iii) e isso permite com que um grande número de pessoas tenha acesso a estas obras sem autorização ou devida remuneração ao titular dos direitos autorais (BITTAR, 2015, p. 185; VALENTI, 2002). Para além disso, os softwares de edição e produção permitem com que usuários modifiquem e criem a partir de obras digitalizadas preexistentes, violando diretamente o direito patrimonial do autor de autorizar ou não a edição da obra original99 e de produção de obras derivadas e, ainda, o direito moral do autor de se opor a qualquer modificação da obra100.

Estes comportamentos prejudicariam diretamente a lógica da função promocional do direito autoral, principalmente no que tange às vantagens econômicas garantidas ao autor pela exploração de suas obras. Ora, questionam os maximalistas, como estimular a criação intelectual frente a este cenário de violação sistêmica aos direitos autorais e de difícil regulação, onde a obra é livremente compartilhada sem que o autor receba seu quinhão?

Nas enfáticas palavras de Hildebrando Pontes (2007), ex-presidente do Conselho Nacional de Direito Autoral:

99Lei 9.610: “Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:(...)

II - a edição;”

100 “Art. 24. São direitos morais do autor: (...)

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;”

É preciso dizer para o autor nacional, em especial àquele que vive do ato de criar, que será praticamente impossível ser remunerado pelas obras que disponibiliza na Rede. Se o autor abre mão de auferir resultados com a negociação de sua criação no mundo analógico, vai viver do quê no espaço virtual? Vai comer bits ou será que para prosseguir criando terá que se aboletar num emprego junto ao Ministério da Cultura ou Fundação Getúlio Vargas?

De certa forma, esta posição é muito semelhante à já mencionada concepção sobre a relação entre a estrutura dos direitos autorais e sua função promocional dentro da chave “proteger para estimular”, defendida por Arpad Bogsch. A preocupação central dos adeptos desta corrente está centralizada no aspecto econômico dos direitos autorais, mais especificamente na remuneração devida ao criador pela exploração econômica de suas obras, entendendo esta ser a principal forma de estímulo à criação.

Por isso, para evitar impacto financeiro negativo ao autor, pede-se uma proteção mais rigorosa aos direitos de autor, seja por meio do aumento da proteção ao autor e aos detentores de direitos autorais pela reforma da lei101, seja por meio da aplicação intransigente da lei (enforcement), ou por outras formas de regulação que não as jurídicas102 (BRANT, 2009, p. 3; VALENTI, 2002). O argumento é claro, mas bastante extremo e simplista por desconsiderar basicamente toda a construção da função social do direito autoral anteriormente elaborada.

Por outro lado, adeptos da posição anti-maximalista baseiam sua discordância com base em dois grandes apontamentos:

O primeiro grande motivo estaria diretamente relacionado com a possibilidade de transferência dos direitos patrimoniais a terceiros: na grande maioria das vezes, o real detentor desses direitos são as grandes empresas fonográficas, editoriais e cinematográficas, que adquirem através de contratos de cessão ou licença a obra do autor original. O argumento dos adeptos da teoria monista, que a pessoa do autor, especificamente, estaria sendo diretamente prejudicada pelos comportamentos advindos do desenvolvimento de novas tecnologias, portanto, cairia por terra.

Subordinado aos grandes conglomerados empresariais, o autor não possuiria a autonomia criativa e de comunicação com o público que a lei pressupõe (ASCENSÃO, 1992, p. 16), precisando subordinar suas criações a empresas já consolidadas no mercado, e, consequentemente, abrindo mão de seus direitos sobre elas. Nesse sentido, o grande beneficiário direto de um enrijecimento na regulação dos direitos autorais não seria, de fato, o autor da obra, mas sim aquele que detém os direitos patrimoniais relativos a ela.

101 Como foi o caso, no Brasil, da promulgação da Lei 10.695/03, a “Lei Anti-Pirataria”.

102 Algumas formas de controle não-jurídicas, como as tecnologias Digital Rights Management serão analisadas

Como consequência, o aumento da proteção dos direitos de exploração das obras intelectuais, via de regra, não apenas não estimularia a criação intelectual, como serviria como uma ferramenta legitimadora do monopólio das grandes empresas sobre a indústria dos bens culturais, prejudicando os reais autores dessas obras (LESSIG, 2006, p. 188; VADHIANATHAN, 2001, p.4). Não se estaria, nesse sentido, protegendo de fato os interesses do autor, mas sim apenas o investimento realizado pelo detentor dos direitos autorais na aquisição da obra (ASCENSÃO, 1999, p. 28; TRIDENTE, 2009, p. 105).

Este argumento é especialmente curioso quando proferido por anti-maximalistas adeptos da teoria dualista do direito de autor. De fato, a maior parte dos detentores de direitos patrimoniais do autor são os grandes conglomerados empresariais, que adquirem estes direitos dos criadores. Mas não seria a própria razão de ser deste feixe de direitos a possibilidade de o autor ser remunerado, de permitir com que ele possa explorar economicamente a obra? Esta lógica da proteção específica do autor não faz mais sentido tratando-se dos direitos morais? Se o problema for, de fato, o poder de barganha destes conglomerados e desigualdade entre autor e licenciado (ou cessionário), não faria mais sentido garantir mais proteção ao autor?

O segundo grande motivo está diretamente relacionado com as três tecnologias descritas na seção anterior e seus possíveis impactos positivos no âmbito da própria criação intelectual. Nesse sentido, entende-se que a internet surge como um espaço que facilita a apropriação de obras preexistentes e fornece ferramentas acessíveis para a modificação dessas obras, resultando, em alguns casos, em novas formas de manifestação artística desenvolvidas a partir de obras preexistentes103.

Nesse sentido, a proteção rígida aos direitos referentes à obra original funcionaria como um entrave jurídico à elaboração da obra que utiliza obras preexistentes como recurso criativo, o que acarretaria em um grande desestímulo a potenciais criadores, indo na contramão da função promocional do direito de autor. Uma vez que as ferramentas e os meios estão à mão, restariam os entraves jurídicos para possibilitar as criações.

Os anti-maximalistas entendem que é preciso repensar a maneira tradicional com que o sistema normativo dos direitos autorais com relação a sua função promocional, principalmente com relação às limitações aos direitos autorais. Desta maneira, seria possível

103 Exemplos de produções culturais que se utilizam de obras anteriores para sua confecção são as FanFictions,

produções literárias realizadas por fãs de obras originais aos quais estes se apropriam de personagens, cenários e estilo das obras originais para criar novos conteúdos, na maior parte dos casos sem autorização do autor. Outro exemplo são as obras musicais que utilizam sampling em sua estrutura. O uso de pequenos fragmentos de músicas (samples) para a elaboração de músicas de hip hop ou plunderphonics, por exemplo, por gerar uma obra bastante diferente da original e compor uma forma específica de manifestação artística. Este tipo de criação será mais profundamente estudada em 2.1.3 infra.

permitir determinados usos de obras preexistentes na elaboração de obra nova. Nesta perspectiva, o conjunto de limitações ao direito autoral, para além de seu papel com relação à função social do autor, exerceria uma parte relevante no próprio estímulo à criação intelectual.

Entende-se que há a necessidade de receber estas novas tecnologias e as novas formas de produção cultural trazidas por elas e reestruturar o sistema normativo de forma a equilibrar o estímulo à criação concedido a ambos os tipos de criadores (LESSIG, 2004, p. 9; SOUZA, 2009, p. 134; TRIDENTE, 2009, p. 79).

A discussão sobre a melhor maneira de se atingir a função social do direito autoral, por sua vez, desenvolveu-se de forma um pouco distinta.