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Capítulo 1. Panorama do Debate Contemporâneo sobre Direitos Autorais

1.4. O Debate sobre a Relação entre Estrutura e as Funções do Direito Autoral

1.4.2. Repensando a Estrutura a partir da Função Social

O debate contemporâneo sobre a relação entre a estrutura e a função social do direito autoral parte, curiosamente, de um consenso e de uma questão única: o acesso à cultura é um direito que está diretamente relacionado ao direito autoral e deve ser promovido e garantido. Levando em consideração o atual cenário de desenvolvimento tecnológico, como deveria o sistema de direitos autorais equilibrar o direito de acesso à cultura e o direito do autor? Em outras palavras, como o sistema deveria ser estruturado de forma a garantir o acesso à cultura e proteger os interesses dos autores e detentores de direitos autorais?

Não é um debate novo e tampouco exclusivo dos direitos autorais. Ele deriva de uma tensão inerente ao sistema de propriedade intelectual como um todo, qual seja: o conflito entre o interesse público (no caso, relativo ao acesso ao arcabouço cultural) e o interesse privado (no caso, dos autores e detentores de direitos autorais em serem remunerados pela exploração de suas obras, de forma a estimular a produção intelectual) (ROSINA, 2011, p. 61).

De um lado, a preocupação de alguns maximalistas não está na abrangência ou na restritividade das limitações impostas ao direito autoral para o cumprimento de sua função social, mas sim na necessidade de remuneração ao autor pelo acesso à cultura (CHINELATTO, 2008, p. 179). Neste sentido, alguns estudiosos afirmam que o direito à cultura deve ser garantido sim, mas os autores e detentores de direitos autorais devem ser necessariamente remunerados na proporção que suas obras são utilizadas para atingir este fim.

Na esteira do “proteger para estimular”, a professora Silmara Chinelatto104 aponta para a necessidade de se remunerar o autor pelas utilizações livres ao indagar “quem pagará pelo acesso à cultura?”.

Na mesma linha, Fernando Brant (2009, p. 4) afirma:

Quero ressaltar, ainda, uma outra idéia que percorre os corredores do ministério e da universidade. Trata-se do mandamento constitucional que determina que o Estado deve democratizar o acesso à cultura. Concordo e aplaudo. Mas a obrigação, é bom que fique claro, é do Estado e não dos autores.

Por outro lado, para os anti-maximalistas, que entendem que o acesso à cultura é consequência direta da função social inerente ao próprio instituto do direito autoral, a preocupação é outra: a tecnologia abre portas para novas formas de acesso e utilização da obra intelectual, impensadas (talvez até impensáveis) quando da elaboração do rol de limitações aos direitos autorais, muitas delas potencialmente benéficas na consecução de diversos direitos e garantias constitucionais que derivam do acesso à cultura: como direito à informação e educação (ASCENSÃO, 2014, p. 50; BARBOSA, 2013, p. 66; CARBONI, 2008, p. 97).

Entretanto, como mencionado anteriormente, o sistema normativo dos direitos autorais é bem peculiar no trato que confere à positivação da função social do direito de autor: o rol de limitações aos direitos autorais é taxativo, entendendo não ser livre nenhum tipo de utilização que fuja das situações elencadas na lei. Esta “rigidez” imposta às limitações ao direito autoral seria altamente prejudicial a estas novas formas de uso e acesso à obra proporcionadas pelo desenvolvimento de novas tecnologias, impedindo com que o sistema cumpra adequadamente sua função social neste novo cenário.

Nesse sentido, partidários desta perspectiva entendem que existe a necessidade de se reformar (ou modernizar) o sistema normativo dos direitos autorais, seja por meio da adequação e ampliação do conjunto de limitações ao direito autoral às novas tecnologias, ou seja através da reestruturação deste rol a partir de uma perspectiva mais abrangente, menos estrita e mais flexível (MIZUKAMI et al, 2010, p. 70), de forma a incorporar o papel das novas tecnologias na harmonização entre os interesses do autor e as demandas sociais de acesso à cultura (SOUZA, 2009, p. 179).

Exemplos claros desta incompatibilidade não são escassos. Voltemos ao exemplo de

104 Depoimento dado em uma reportagem concedida ao Ministério da Cultura. MinC - Notícias: “Artistas se

unem em manifestação contra a proposta de mudança da lei de direitos autorais”. Disponível em <http://www.cultura.gov.br/noticias-dri/-/asset_publisher/QRV5ftQkjXuV/content/artistas-se-unem-em-

manifestacao-contra-a-proposta-de-mudanca-da-lei-de-direitos-autorais-341923/18021 > Acesso em 2 de abril de 2016.

Fisher, mencionado no início do capítulo, que ilustra de forma simbólica o conflito entre uma nova utilização de uma obra protegida, através de vídeo disponibilizado online, para fins didáticos e a rigidez imposta às limitações ao direito autoral que impedem esta utilização. Neste embate, saiu perdendo tanto o acesso à cultura quanto o direito à educação.

Como se verá no próximo capítulo, problemas semelhantes surgem da utilização de obras preexistentes em obras derivadas, como vídeos-crítica que, ao analisarem determinada obra (filme, disco, série de TV, etc.) utilizam trechos destas obras para desenvolver a crítica.

Outro problema relevante surge com a popularização de travas tecnológicas que impedem ou restringem o acesso a obras no formato digital. Estas travas são previstas e protegidas pela LDA105, mas potencialmente podem prejudicar a função social do direito autoral106.

O debate contemporâneo sobre os direitos autorais é tão antigo quanto a atual lei brasileira e podemos verificar, em ambos os lados da discussão, insatisfações relativas às incompatibilidades entre o texto normativo e o cumprimento de suas funções no cenário contemporâneo de constante inovação tecnologia com impacto direto nas relações autorais.

Frente a todo este cenário, a partir de 2008, o Ministério da Cultura (MinC) na gestão de Juca Ferreira, e dando continuidade ao trabalho iniciado na gestão de Gilberto Gil, começa a organizar diversas diretrizes para a proposição de um anteprojeto de reforma na Lei de Direitos Autorais (CASTRO; MIZUKAMI, 2011, p. 74). Em 2010, um anteprojeto de lei é elaborado pelo MinC e levado a consulta pública em junho do mesmo ano. Em 2011, Juca Ferreira é substituído por Ana de Hollanda que, em maio do mesmo ano, realiza nova consulta pública com base no texto consolidado em 2010. Em dezembro, a redação é concluída com base nos comentários dos internautas e o projeto é encaminhado à Casa Civil107, sem sucesso.

Antes de entrarmos especificamente na análise deste anteprojeto, de forma a melhor avaliar o sucesso ou insucesso das alterações propostas por ele, faz-se necessário nos afastarmos deste debate quase exclusivamente teórico para, de fato, compreender em detalhe

105 Art. 107. Independentemente da perda dos equipamentos utilizados, responderá por perdas e danos, nunca

inferiores ao valor que resultaria da aplicação do disposto no art. 103 e seu parágrafo único, quem:

I - alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares das obras e produções protegidas para evitar ou restringir sua cópia;

II - alterar, suprimir ou inutilizar, de qualquer maneira, os sinais codificados destinados a restringir a comunicação ao público de obras, produções ou emissões protegidas ou a evitar a sua cópia;

III - suprimir ou alterar, sem autorização, qualquer informação sobre a gestão de direitos; (…)”.

106 A análise destas tecnologias e seus efeitos na função social do direito autoral será realizada na seção 2.2.3 infra.

107 Disponível em <http://www.a2kbrasil.org.br/wordpress/2013/01/serie-especial-reforma-da-lei-de-direitos-

o impacto que as novas tecnologias geraram e geram na produção cultural e como os autores e detentores de direitos autorais lidaram e lidam com estes novos cenários.

É só a partir desta perspectiva que será possível compreender quais são os limites do sistema normativo dos direitos autorais no ambiente digital, e como ele deve ser estruturado de forma a cumprir da melhor forma possível as duas funções apontadas neste capítulo.

O próximo capítulo buscará descrever e analisar formas de produção, reprodução e compartilhamento de obras culturais no âmbito da internet e explorará os problemas gerados por estas tecnologias e as respostas regulatórias dadas a elas. Devido à multiplicidade de regimes específicos referente a cada um dos tipos de obras culturais (obra audiovisual, literária, musical e plástica), optou-se por enfatizar grande parte análise desta parte da pesquisa às obras musicais na internet, mas será inevitável sua extrapolação em determinadas partes, como se verá a seguir.

Capítulo 2. Um recorte dos direitos autorais na sociedade da informação