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Capítulo 2. Um recorte dos direitos autorais na sociedade da informação

2.2. Reações às novas tecnologias

2.2.1. Reações Legislativas

2.2.1.2. Segunda fase: HADOPI, SOPA & PIPA e CPI dos Crimes Cibernéticos

A segunda “leva” de legislações referentes à regulação dos direitos autorais na internet tem início após a disseminação e popularização em escala global das três inovações estudadas na primeira parte deste capítulo. Neste sentido, seu principal objetivo era conter determinados comportamentos infratores ao direito autoral que já ocorriam em massa no ambiente digital, como os compartilhamentos de obras protegidas em redes p2p. Neste sentido, este conjunto de legislações não procurava reestruturar o tradicional modelo de proteção aos direitos autorais às novas tecnologias, mas sim garantir mecanismos eficientes de imposição da lei às novas utilizações.

A primeira lei que merece menção é a francesa HADOPI, de 2009, que instituiu no país uma agência reguladora homônima (HADOPI é o acrônimo de Haute Autorité pour la Diffusion des Œuvres et la Protection des droits d'auteur sur Internet ou “Alta autoridade para a difusão de obras e para proteção dos direitos autorais na internet”), cujo principal objetivo foi instaurar um regime de “resposta progressiva” (graduated response) para punir usuários que infringissem direitos autorais na internet, mais especificamente através de plataformas p2p. Para isso, a agência trabalhava diretamente com detentores de direitos autorais e provedores de conexão à internet (ROSINA, 2014, p 104).

O sistema de resposta progressiva funcionava da seguinte maneira: o detentor dos direitos autorais identifica uma violação de uma de suas obras através de uma rede p2p. Ele informa a HADOPI que notifica o provedor de conexão para identificar o infrator em até oito

179 O artigo 19 da Lei 12.965/14 (também conhecida como Marco Civil da Internet) dispõe:

“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. (…)

§ 2o A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de

previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o

da Constituição Federal.”

O dispositivo consiste em uma norma de eficácia limitada, que necessita de lei específica para sua regulamentação. Enquanto isso, o artigo 31 da mesma lei aponta que, até a entrada em vigor desta lei, aplica-se a lei atual de direitos atuais, que não possui provisão específica para este tipo de responsabilização. Na seção 2.2.2., veremos como os tribunais brasileiros se ajustaram a esta ausência normativa.

dias úteis. Com a identificação em mãos, a agência inicia um procedimento de três etapas: (i) na primeira, ela notifica diretamente o usuário infrator por e-mail; (ii) se o usuário reincidir, ela notifica-o por meio de uma carta formal; (iii) por fim, se ele infringir pela terceira vez, a agência judicializa o caso, geralmente aplicando multa ao usuário, e o provedor de conexão corta a internet do infrator por um tempo determinado (ARNOLD et al, 2014, p. 1).

No início de sua implementação, a agência recebeu mais de 18 milhões de notificações de detentores de direitos autorais, número que representa o peso que este tipo de política deposita nas costas do Estado (ROSINA, 2014, p. 104). Ademais, a lei sofreu inúmeras críticas ao redor do mundo, principalmente com relação às medidas de violação à privacidade para identificação dos usuários180 e à inadequação e desproporcionalidade que a punição por corte da conexão à internet representa em uma sociedade cada vez mais dependente da rede181.

Em 2013, após a enorme reação negativa à legislação e a divulgação de estudos apontando para a ineficiência do sistema de resposta progressiva182, a lei é alterada de forma a excluir a possibilidade de suspensão ao acesso à internet na terceira etapa, reduzindo a punição à multa183.

Os efeitos da lei foram (e ainda são) questionáveis. O corte da conexão à internet representou uma medida desproporcional à violação, uma vez que consistiu em uma afronta a diversos direitos dos usuários no mundo digital que deveriam ser garantidos pela função social do direito autoral, como acesso à cultura e, principalmente, liberdade de expressão184.

Mais ainda: é de se questionar até mesmo a própria eficácia da lei na supressão de comportamentos infratores ao direito autoral na internet, uma vez que ela quase exclusivamente direcionada aos usuários de plataformas p2p (ARNOLD et al, 2014, p.3). Como apontado na primeira parte deste capítulo, as plataformas p2p perdem um pouco de força no final dos anos 2000, e são substituídas em popularidade por serviços de cyberlocker

180 “French Anti-Piracy Law Claims First Victim, Convicted of Failing to Secure His Internet Connection”. EFF.

Disponível em <https://www.eff.org/deeplinks/2012/09/french-anti-piracy-law-claims-first-victim-convicted- failing-secure-his-internet > Acesso em 5 de maio de 2016.

181 “A lei HADOPI: vigiar e punir a Internet”. Le Monde Diplomatique. (05/05/09). Disponível em

<https://pt.mondediplo.com/spip.php?article488> Acesso em 6 de maio de 2016.

182 Ver o estudo Arnold, M. A., Darmon, E., Dejean, S. and Penard, T. (2014). Graduated Response Policy and the Behavior of Digital Pirates: Evidence from the French Three-Strike (Hadopi) Law. Mimeo. Disponível em:

<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2380522> Acesso em 5 de maio de 2016.

183 “Three Strikes and You’re Still In: France Kills Piracy Disconnections”. TorrentFreak. (9/07/2013).

Disponível em <https://torrentfreak.com/three-strikes-and-youre-still-in-france-kills-piracy-disconnections- 130709/>. Acesso em 5 de maio de 2016.

184 “Repealing French Three Strikes Law is the Next Step to Safeguarding Free Expression”. EFF. (8/8/2012).

Disponível em: <https://www.eff.org/pt-br/deeplinks/2012/08/repeal-french-three-strikes-law> Acesso em 5 de maio de 2016.

como o Hotfile e o Mega.co.nz, modalidade que não é afetada pela HADOPI. Esta falta de previsão aponta para a inobservância do legislador no volátil cenário de constante mudança tecnológica que marca a internet.

Outros importantes diplomas normativos que surgiram nesta segunda fase de regulação dos direitos autorais na internet são os projetos de lei estadunidenses SOPA (Stop Online Piracy Act) e PIPA (Preventing Real Online Threats to Economic Creativity and Theft of Intellectual Property Act ou simplesmente PROTECT IP Act). Os projetos de lei tomaram proporção global no dia 18 de janeiro de 2012, quando diversos grandes provedores de aplicação da internet (como Google, Wikipedia e Twitter) realizaram um “black out”, indisponibilizando seus serviços por um dia em forma de protesto contra os projetos185.

Apoiados pela indústria do entretenimento, o grande objetivo de ambos os projetos de lei era maximizar a proteção autoral de forma a coibir a pirataria online em um mundo globalizado pós-DMCA: eles contavam com dispositivos que permitiam com que o Departamento de Justiça estadunidense obtivesse ordens judiciais para que provedores de conexão à internet e provedores de aplicação bloqueassem o acesso a websites, nacionais ou estrangeiros, que compartilhassem conteúdo que violasse, facilitassem ou permitisse a violação a direitos autorais (VALENTE, 2013, p. 186). Neste sentido, seria criada uma “lista negra” da internet que conteria os sites censurados; punições seriam aplicáveis a quem quer que permitisse o acesso ou negociasse com eles, incluindo-se aqui mecanismos de busca e serviços de publicidade online (ROSINA, 2014, p. 103).

Os projetos foram amplamente criticados ao redor do mundo, principalmente por sua linguagem genérica e abrangente, que podia possibilitar com que seus dispositivos pudessem utilizados como ferramenta de censura. Sites que permitem o compartilhamento de user generated content, como redes sociais e o YouTube por exemplo, poderiam ser considerados, nos termos da lei, sites que “facilitam” ou “permitem” a violação aos direitos autorais (CARRIER, 2013, p. 22).

Ora, ainda que o YouTube possua um sistema de identificação de violações aos direitos autorais (o Content ID), ele não é suficiente para coibir todas as violações ocorrentes no site186. No entanto, a própria possibilidade de violação bastaria para que o site inteiro fosse bloqueado nos termos dos projetos de lei (CARRIER, 2013, p. 22).

185 O dia foi batizado de “blackout day”, e culminou com o arquivamento dos projetos de lei no dia 20 de janeiro

de 2012. Mais informações em: < http://www.sopastrike.com/> Acesso em 5 de maio de 2016.

186 Cerca de 27% de todos os vídeos postados no site diariamente são notificados por violações ao direito autoral.

“What Happens on Youtube in a day? “ Fonte: <https://beat.pexe.so/what-youtube-looks-like-in-a-day- infographic-d23f8156e599#.dcsnnmh1c> Acesso em 5 de maio de 2016.

Após mobilização mundial e compreensão dos possíveis efeitos à liberdade de expressão e acesso que eles poderiam gerar, ambos os projetos foram engavetados pelo Congresso estadunidense no final de janeiro de 2012187.

Seu conteúdo, no entanto, não parece estar perto de morrer: em 4 de maio de 2016 foi aprovado no Brasil o relatório final da chamada CPI dos Crimes Cibernéticos, documento que traça diretrizes e apresenta projetos de lei que visam coibir a prática de crimes virtuais. De forma muito semelhante ao SOPA e ao PIPA, um dos projetos de lei incluídos no relatório, o PL nº 5.204/2016, busca alterar o Marco Civil da Internet de forma a permitir o bloqueio a websites sediados no exterior (e sem representação no Brasil) que “sejam dedicados à prática de crimes puníveis com pena mínima igual ou superior a dois anos de reclusão188”.

Ainda que não haja menção expressa a violações de direitos autorais no projeto, o sub- relator da CPI dos Crimes Cibernéticos divulgou uma nota esclarecendo os crimes referidos no projeto de lei supramencionado, colocando as violações ao direito autoral no mesmo patamar de crimes como pedofilia e tráfico internacional de armas:

Projeto de Lei oferecido por esta Sub-Relatoria para o bloqueio de sítios de internet que veiculem conteúdos criminosos em nenhum momento objetivou coibir a prática de crimes contra a honra. Por esse motivo, DECIDIMOS DEIXAR CLARO ESSE OBJETIVO, OFERECENDO NOVA REDAÇÃO AO “PROJETO DE LEI DO BLOQUEIO” (ITEM 1.6), LISTANDO DE MANEIRA EXTENSIVA, QUAIS SÃO AS CONDUTAS CRIMINOSAS QUE PODERÃO ENSEJAR O BLOQUEIO DE SÍTIOS. A saber, apenas aquelas relacionadas a:

i) terrorismo;

ii) crimes hediondos (incluindo a venda de medicamentos que menciona); iii) tráfico de drogas;

iv) pedofilia;

v) tráfico internacional de armas;

187 “Internet Wins: SOPA and PIPA both shelved”. Ars Technica. (20/1/12). Disponível em

<http://arstechnica.com/tech-policy/2012/01/internet-wins-sopa-and-pipa-both-shelved/> Acesso em 5 de maio de 2016.

188 O texto original, na íntegra, dispõe:

“Seção V

Do Bloqueio a Aplicações de Internet em Atendimento a Ordem Judicial

Art. 23-A O Juiz somente poderá determinar que o provedor de conexão bloqueie o acesso a aplicação de internet hospedada no exterior ou que não possua representação no Brasil e que seja precipuamente dedicada à prática de crimes puníveis com pena mínima igual ou superior a dois anos de reclusão, excetuando-se os crimes contra a honra.

§ 1o Para o bloqueio de que trata este artigo deverão ser considerados o interesse público, a proporcionalidade, o alcance da medida e a celeridade necessária para promover a efetiva cessação da conduta criminosa.

§ 2o Considera-se representada no Brasil a aplicação de internet que possua responsável legalmente constituído no País ou que pelo menos um integrante do mesmo grupo econômico possua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento no País.

§ 3o As aplicações de mensagens instantâneas, de uso público geral, ficam excluídas do bloqueio de que dispõe este artigo.” (NR).” Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1447125 > Acesso em 5 de maio de 2016.

vi) violação de propriedade intelectual;

vii) crimes contra a propriedade industrial; e

viii) violação de direito de autor de programa de computador.189 (grifos nossos)

A nota, no entanto, não esclarece o que se deve entender por sites “dedicados à prática de crimes”, tornando aberta a possibilidade do enquadramento de provedores de aplicação cujo modelo de negócio se baseia em conteúdo gerado por usuário – principalmente obras derivadas - (como é o caso, por exemplo, do SoundCloud) que pode infringir direito autoral.

Isto é ainda mais alarmante no Brasil por causa da pouco abrangente lista de limitações aos direitos autorais prevista na LDA, que torna ilegal diversas práticas de user generated content, especificamente com relação à cultura do remix, como descrito na primeira parte deste capítulo. Vale mencionar, ainda, o potencial fornecido pelo projeto em transformar o direito autoral em um instrumento de censura, elemento abertamente temido nas discussões do SOPA e PIPA190.

Por óbvio, de nada vale estas reações legislativas sem sua devida aplicação prática. A seguir, analisaremos como as ações judiciais foram utilizadas para coibir comportamentos infratores proporcionados pela internet.