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Ministro Fernando Henrique Cardoso fala sobre a política externa

na Câmara dos Deputados

Apresentação do Ministro das Relações Exte- riores, Fernando Henrique Cardoso, perante a Comissão de Relações Exteriores da Câma- ra dos Deputados, em Brasília, em 31 de mar- ço de 1993

U ma Política Externa Brasileira para os anos 90

São características centrais da diplo- macia brasileira: tradição, memória, esta- bilidade, respeito a compromissos assumi- dos, proteção dos interesses nacionais, vi- são de futuro.

A diplomacia brasileira integra-se em um todo coerente, pautado por doutrinas e princípios permanentes, ditados pelos interesses nacionais. As diretrizes de ação poderão ser variáveis, em função das mutações do cenário internacional. Sua execução deve, contudo, gozar sem- pre de alta credibilidade. Para tanto, é fundamental o apoio interno, baseado no consenso, na ampla base de sustentação político-partidária e na interação com as forças sociais do País.

A diplomacia brasileira deve agir com espírito crítico, capacidade de adaptação e anti-imobilismo. Deve veri- ficar as necessidades internas, projetá- las no plano externo e buscar oportuni- dades de atendimento.

O Brasil tem peso específico no cená- rio internacional e portanto nível razoável de poder, mas este é limitado pelo poder dos demais países. Essa circunstância acarreta ameaças e oportunidades e a ne- cessidade de harmonizar interesses. A tra- dicional flexibilidade de nossas posições, a permanente busca de soluções pacíficas e as boas relações que mantemos com todos os vizinhos são um património va- lioso no atual momento internacional.

Por que uma nova política externa? Em primeiro lugar, porque o Brasil mudou. No plano político, passamos de uma fase au- toritária para uma fase de pleno exercício democrático. No plano económico, após um período de desenvolvimento acelera- do, entramos em uma crise que poderá conduzir à estagnação do crescimento. No plano ideológico, ultrapassamos a etapa do nacionalismo autoritário e do desenvol- vimento autóctone para buscar uma inser- ção competitiva no mundo.

Em segundo lugar, porque o mundo mudou. No plano político, o final da

Guerra Fria redesenhou o esquema de po- der. No plano económico, a tendência do- minante parece apontar no sentido da glo- balização. No plano ideológico, a demo- cracia e a economia de mercado são a regra geral.

Uma nova agenda se impõe, tanto para o Brasil como para o mundo. As relações moldadas por financiamento externo abundante e forte presença dos Estados deixaram de existir. As políticas de subs- tituição de importações e de proteção con- tra a competição externa, que foram posi- tivas no passado, não poderão mais render os mesmos frutos. A estratégia de inserção internacional deve portanto ser redefinida. Cabe ao conjunto das nações, por outro lado, construir um novo ordenamento so- bretudo em função do fim da bipolaridade. A conjuntura mundial enfrenta hoje um período de transição, caracterizado por indefinições e incertezas. Fatores novos e antigos convivem, forças centrífugas atuam. O cenário é complexo e aberto, o que recomenda políticas cautelosas, sem guinadas abruptas.

A conjuntura brasileira também é de transição. Ainda não superamos a insta- bilidade económica e ainda buscamos um modelo político adequado, o que se evi- dencia pelo plebiscito e pela revisão constitucional.

A nova agenda diplomática brasileira deve pautar-se por elementos de continui- dade e de mudança. As características cen- trais da atuação externa permanecem as mesmas e também permanecem os mes-

mos os objetivos primordiais: paz, desen- volvimento, estabilidade internacionais.

No mundo de hoje, contudo, a palavra- chave é mudança, o que exigirá grande capacidade de adaptação de parte do Bra- sil. Os cenários possíveis estão em aberto. Poderá cristalizar-se a tendência mais pro- vável à globalização, mas não seriam de excluir cenários caracterizados pela regio- nalização e até mesmo fragmentação. O Brasil deverá abrir, e não fechar opções, jogar nos diferentes tabuleiros, buscar par- cerias estratégicas e parcerias localizadas, o que exige planejamento estratégico, vi- são de futuro e adaptação criativa.

Esse esforço deverá ser inspirado pelo realismo: será preciso seguir as regras do jogo, não poderemos mudar essas regras a curto prazo e não queremos ficar fora da cena. Ao mesmo tempo, deveremos perse- guir os objetivos de uma ordem internacio- nal mais justa, mais democrática e mais transparente a longo prazo.

Deveremos manter nossas coalizões tradicionais e procurar novas. Temos vo- cação universal e portanto maior facilida- de de variar nossas parcerias. Temos con- dições de conduzir uma diplomacia diver- sificada e de caráter universalista.

Nossa inserção na economia global de- penderá da estabilidade interna e da reto- mada do crescimento. Será necessário pro- mover ajustes estruturais e modernização competitiva e eliminar ineficiências. Será necessário manter uma política de abertura para o exterior, para obter integração eco- nómica mais profunda, e harmonizar nos- sas políticas às prevalentes no mercado

internacional. Tal exercício não se fará sem custos, tanto em termos de adaptação da estrutura produtiva, quanto no que se refere a um menor grau de liberdade de escolha e opções. Existirá um núcleo de políticas em torno da questão da integra- ção com a economia mundial (redução de barreiras ao comércio, política industrial, modernização tecnológica, maior partici- pação do investimento estrangeiro, prote- ção adequada à tecnologia, salvaguardas na área nuclear) que deverá contar com estabilidade e refletir um amplo consenso nacional, uma vez que são essenciais para a inserção internacional do Brasil.

As medidas de liberalização não deve- rão, contudo, ser gratuitas. As concessões devem ter contrapartidas e ser obtidas me- diante nossa tradicional habilidade de ne- gociação. Ao lado da adaptação negociada às regras do jogo e da integração crescente no mundo, deveremos ter presente o obje- tivo conformista. Assim, não poderemos perder de vista a dualidade brasileira, con- duzindo uma atuação diplomática que busque o moderno mas também as neces- sidades do mundo em desenvolvimento, do qual fazemos parte. Essas duas verten- tes da diplomacia brasileira se unem na busca da democratização das relações in- ternacionais, na defesa do multilateralis- mo económico com regras estáveis e trans- parentes e na construção de um novo or- denamento multilateral mais equitativo.

Paralelamente a uma ação global, im- põe-se ao Brasil procurar opções regio- nais. Nesse sentido, será preciso valorizar uma base sólida na nossa própria região, inclusive para aumentar nosso poder de

barganha. A formação de uma plataforma sul-americana é favorecida pela contigui- dade geográfica e poderá ter extensões no Atlântico Sul, na América Central e no Caribe. O processo de integração econó- mica regional não poderá privilegiar vín- culos exclusivos, como tem feito o México com relação aos EUA. Seria uma opção empobrecedora. Essa postura não signifi- ca, contudo, abandonar a priorização de nossas relações com os EUA, nosso par- ceiro individual mais importante e com o qual o Brasil tem procurado desenvolver uma agenda positiva. As alternativas da Europa e do Pacífico devem ser enfatiza- das. A Comunidade Europeia, em con- junto, é nosso primeiro parceiro comer- cial, e o Pacífico é a área que cresce mais rapidamente no mundo atual. A regiona- lização aberta valoriza a contiguidade e favorece a globalização. Alimenta laços crescentes dentro de cada região, sem excluir o desenvolvimento de relações inter-regionais no seio de um sistema multilateral operante.

O Brasil pertence, ao mesmo tempo, ao mundo industrializado e ao mundo em desenvolvimento. Isso não reflete slogans ou fórmulas já ultrapassadas de posiciona- mento, mas sim uma realidade política, económica e social onde coexistem a mo- dernidade e o atraso. Nossa inserção não é unidimensional. Somos um país com va- lores essencialmente ocidentais e demo- cráticos. Somos latino-americanos e pana- mericanos e compartilhamos com a África nossas raízes étnicas, culturais e históricas e um destino comum de transformação do Atlântico Sul em um espaço económico

vivo de integração. Somos desenvolvidos e em desenvolvimento. Somos um país atlântico mas temos vínculos crescentes com o Pacífico. Somos um país continen- tal, mas não buscamos o fechamento, e sim a integração. Somos o maior país da Amé- rica Latina, mas não nos anima a hegemo- nia, e sim a cooperação. Essas caracterís- ticas nos permitem desenvolver alianças, coalizões e parcerias em nível global, pro- curando nichos de oportunidades em di- versos quadrantes do planeta.

A problemática semelhante e os inte- resses coincidentes com outros países de dimensões continentais, como a Rússia, a China e a índia, poderão ensejar esforços de coordenação muito promissores para o Brasil. Parcerias estratégicas e opera- cionais podem ser desenvolvidas. As pri- meiras refletiriam maiores coincidências de pontos de vista e maior potencial de coordenação política. As segundas, mais pontuais e temáticas, se desenvolveriam a partir de interesses mais específicos de cooperação.

No trato dos chamados temas globais, as diplomacias bilaterais e multilateral se confundem cada vez mais, tornando sem- pre mais necessária a constituição de coali- zações de geometria variável para seu equa- cionamento. O Brasil, por seus interesses e sua dimensões, será sempre participe de muitas dessas coalizões. Temas como nar- cotráfico, terrorismo, direitos humanos, meio ambiente, desenvolvimento sustentá- vel e não-proliferação são objeto de discus- são multilateral intensa e permanente e de- mandam atitudes abertas e não recrimina- tórias e alicerçadas na cooperação interna-

cional com base em regras multilateral- mente acordadas. Especificamente na área de não-proliferação, são dignas de nota uma série de iniciativas nos planos interno e externo: envio ao Congresso de projeto de lei de controle de exportações e impor- tações de equipamento bélico, de duplo uso e nuclear; entendimentos com a Ar- gentina e com a AIEA em matéria nuclear; alterações no Tratado de Tlatelolco, para permitir sua plena entrada em vigor para o Brasil; diálogo frutífero com regimes plu- rilaterais de controles de transferências de materiais e tecnologias sensíveis. O êxito dessas iniciativas, que são componentes essenciais de uma melhor inserção inter- nacional brasileira, depende sempre do apoio do Congresso Nacional, seja em ter- mos de respaldo político, seja em termos de aprovação legislativa.

Na tentativa de estabelecimento de um novo ordenamento internacionais, o Con- selho de Segurança assume protagonismo crescente, o que torna imperioso o debate sobre sua ampliação e a distribuição dos assentos permanentes.

O novo ordenamento internacional não estará imune a questionamentos, em cuja apresentação o Brasil poderá ter papel protagônico. Nesse esforço, deveremos agir em prol da crescente democratização das relações internacionais; da retomada da agenda para o desenvolvimento no âm- bito das Nações Unidas, onde a categoria do desenvolvimento sustentável devei á constituir o fulcro de nossas atenções; da concessão de marcada ênfase devida às questões sociais; e da conexão entre de- senvolvimento e segurança. A Agenda

para a Paz do Secretário-Geral da ONU, ora em debate, não seria de molde a resol- ver muitos conflitos regionais, que têm origens profundas e para cuja solução o desenvolvimento sustentável harmónico poderia contribuir de forma decisiva. Ela deve ser completada por uma Agenda para o Desenvolvimento.

A tendência à globalização, por sua vez, também se depara com limites e ameaças: focos internos de resistência, com interesses contrários àquela tendên- cia; disparidades regionais; forças centrí- fugas; e riscos de que as complexidades e desigualdades da conjuntura acarretem es- tímulos à regionalização, com a formação de blocos fechados e antagónicos, ou mes- mo à fragmentação, tendências que estão presentes no mundo atual.

Conquanto deva estar preparada para agir em um mundo globalizado, a diplo- macia brasileira não poderá excluir a pos- sibilidade de que as tendências à regiona- lização e à fragmentação se tornem mais

fortes. A formação de blocos económicos mais fechados é uma hipótese possível, diante da qual a opção por relações privi- legiadas com um dos grandes blocos, pre- ferencialmente o hemisfério, poderia tor- nar-se necessária. O prolongamento do pe- ríodo de transição e o agravamento da desordem internacional também são uma forte possibilidade a ser considerada, caso predominem as forças centrífugas no sen- tido da fragmentação. Em um mundo frag- mentado, se tornam mais complexas as perspectivas para nossa integração; tam- bém é verdade que os riscos poderão ser menos graves para o Brasil e América Latina, dadas as suas tradições pacíficas e de relativa homogeneidade.

Em qualquer hipótese, é fundamen- tal que a diplomacia brasileira procure cada vez mais alicerçar-se em institui- ções internas democráticas e estáveis e, nessa ordem de pensamento, a interação permanente com o Congresso Nacional é fundamental para a elaboração das li- nhas de ação futura do Itamaraty. •

Visita oficial ao Brasil da Ministra