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(Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 1993)

Fernando Henrique Cardoso Ministro das Relações Exteriores

J\ sociedade brasileira tem confrontado

problemas internos de caráter económico, social e político de tal magnitude que não tem podido conceder a necessária atenção às nossas relações internacionais. As mu- tações contemporâneas no sistema produ- tivo e a acelerada transformação da natu- reza mesma das interações entre os Esta- dos, entretanto, não permitem que qual- quer país possa cultivar indiferença, lenti- dão ou imobilismo em face das oportuni- dades e riscos que a conjuntura internacio- nal apresenta.

A consciência dessa necessidade de diagnosticar e avaliar em profundidade, e sobretudo de agir com velocidade, torna- se a cada dia mais intensa e mais visível no Congresso, na imprensa, na Universi- dade, nos meios empresariais e sindicais. Manifesta-se ainda de forma tópica, rea- gindo a temas de impacto direto e imediato na sociedade e na economia brasileiras, tais como a dívida externa, as negociações na Rodada Uruguai, o Mercosul, a questão tecnológica e a questão ambiental. Muitas vezes são grupos específicos que se posi- cionam sobre temas de seu interesse ou que apelam para a sua sensibilidade polí- tica, ética ou cultural.

Um país das dimensões do Brasil - territoriais, demográficas, mas sobretudo económicas e culturais -, com seu peso específico, não pode, contudo, mostrar-se tímido em sua análise do momento histó- rico que atravessa o mundo. É preciso ampliar o debate sobre a política externa brasileira, não só quanto a seus participan- tes -o que o Itamaraty vem buscando fazer através do Instituto de Pesquisa de Rela- ções Internacionais (IPRI) -, mas sobretu- do quanto a seu foco. A discussão, em suma, deve abandonar o plano tático e o caráter reativo, definidos pelo horizonte temporal do curto prazo, e voltar-se para o nível estratégico e prospectivo, que se re- ferem ao longo prazo.

Esta mudança de foco - que não aban- dona o nível do imediato, mas o incorpora em um processo mais abrangente de refle- xão e ação -deve obrigatoriamente incluir em sua pauta a arquitetura do próprio sis- tema internacional, tanto no plano econó- mico como no político-institucional e de segurança. À diplomacia brasileira caberá um papel importante na construção de um sistema internacional mais igualitário e portanto mais pacífico. Nossa diplomacia somente poderá alcançar sua plenitude se

recorrer ao mesmo tempo à legitimidade de um mandato concedido pela sociedade brasileira e à riqueza do acervo de ideias, valores e percepções de nossa cultura e experiência histórica.

O processo de mudanças que se ini- ciou com a Constituição de 1988 e nossa agenda diplomática oferecem estímulos excepcionais para esse exercício coleti- vo. O Brasil acaba de assumir um assento como membro não-permanente do Con- selho de Segurança das Nações Unidas, por um período de dois anos. Voltamos ao Conselho pela sétima vez - a última foi de 1988 a 1989 - conscientes da época singular em que vivemos. Pela primeira vez, com o fim da Guerra Fria, a Carta das Nações Unidas e todos os órgãos por ela instituídos podem traba- lhar como previsto por seus redatores.

O Conselho, a quem cabe a responsa- bilidade principal na manutenção da paz e da segurança internacionais, vem desem- penhando papel central na solução dos mais variados conflitos regionais. A pre- sença brasileira demandará um acompa- nhamento competente e tempestivo das diversas questões na agenda internacional e um constante esforço de reflexão e de identificação do interesse nacional. Esta- mos preparados para esse desafio e segu- ros de que representará uma ocasião única para diálogo aberto sobre nossa política externa, envolvendo os mais diversos se- tores da sociedade brasileira.

Esta reflexão deve partir da constata- ção de que o fim da bipolaridade, tanto militar como ideológica, liberou os países de alinhamentos e fidelidades excluden-

tes. A confrontação exigia alianças milita- res e ortodoxia ideológica. A nova conjun- tura internacional, em que o tema do doux

commerce volta a emergir, estimula o plu-

ralismo de parceiros e de modelos econó- micos. As políticas externas da maioria dos países deixam de ter um caráter tota- lizante, seja de origem endógena, ou exó- gena, que ocorria sob a forma de um contrato de adesão a visões de mundo hegemónicos. Passam a buscar ser a ex- pressão fiel da multiplicidade dos interes- ses nacionais nas diversas áreas do con- vívio internacional.

Essa nova maneira de fazer diplomacia é contemporânea da nova visão do Estado trazida pela progressiva expansão da de- mocracia e da economia de mercado. A participação plena dos cidadãos na condu- ção dos negócios públicos impede a diplo- macia secreta e autocrática, as visões ex- cludentes e as decisões táticas que care- cem de legitimidade moral. A economia de mercado, por sua vez, pulveriza os cen- tros decisórios e deixa aos empresários a decisão última sobre o que comprar e ven- der, a não ser nos setores estratégicos ou sensíveis. Novos padrões de competitivi- dade exigem dos países uma constante atualização de suas técnicas gerenciais, de sua ciência e tecnologia, de seu marketing e de seu desenho industrial.

A sociedade internacional passa a fun- cionar antes a partir dos mecanismos de negociação do que daqueles de coerção. É da natureza da discussão económica a transação, a concessão, a ideia de que o ganho pode ser mútuo, ainda que desigual. As negociações sobre questões de guerra

e paz, território e soberania, que caracteri- zam a diplomacia no passado, não permi- tem grande flexibilidade política, além de se prestarem a um tratamento emocional e, às vezes, demagógico. Um dos trunfos de nossa diplomacia reside, como se sabe, no fato de o patrono do Itamaraty, o barão do Rio Branco, nos ter legado uma pauta diplomática sem contenciosos nessa área sensível. Todos nossos recursos diplomá- ticos podem ser direcionados para a busca de uma melhor inserção do Brasil na eco- nomia e na sociedade internacionais, sem as hipotecas que gravam a atividade de outras Chancelarias.

Essa realidade não cauciona, sabe su- blinhar, a visão simplista de que o econó- mico superou o político na vida internacio- nal. A sociedade internacional, como qual- quer sociedade, resolve suas questões atra- vés do exercício da política. Não é a ma- téria que se negocia, sua origem e motiva- ção primeiras, ou sua finalidade última, o que define a natureza da atividade, mas o processo que lhe dá forma e legitimidade. Qualquer negociação bilateral ou multila- teral - nas Nações Unidas, no GATT ou no FMI -, é o exercício da política por Estados nacionais que buscam resolver pa- cificamente conflitos de interesses.

O que ocorreu não foi a obsolescência do político, mas a relativa e talvez ainda prematura ou precária obsolescência do fator militar, no plano global e estratégico, que sempre foi restrito às superpotências. Esta expectativa de um mundo liberado do equilíbrio do terror, e portanto em paz, teve que ser rapidamente matizada pela constatação da persistência e mesmo do

surgimento de diversos focos de tensão e de conflito no âmbito regional, que embo- ra não ameacem a sobrevivência da huma- nidade, trazia dor e sofrimento para popu- lações inteiras.

O mundo não se resume, portanto, a uma paisagem onde persistem diferenças apenas na área econômico-comercial. Re- sistem ou despontam focos de tensão in- ternacional, de origem étnica, cultural ou religiosa, enquanto a fome e a pobreza representam outra fonte de ameaça à esta- bilidade do sistema internacional.

Essa medida de tendências positivas e outras carregadas de ameaça compõe a agenda internacional que a sociedade bra- sileira deve discutir.

Temos que debater como vai ser a re- lação Brasil-Estados Unidos, levando em conta que essa Nação tem presença signi- ficativa em todos os aspectos da vida in- ternacional -político, económico, militar, cultural - e que para nós, latino-america- nos, apresenta a característica adicional de integrar nosso espaço continental. Nesse contexto, é preciso debater sem preconcei- tos a proposta norte-americana de uma integração vertical. Frente a essa e outras alternativas, cabe reagir com maturidade, identificando o interesse nacional no con- texto das opções que se apresentam.

Temos que aprofundar nosso relacio- namento com nossos vizinhos imediatos de forma igualitária e reciprocamente sa- tisfatória, conservando e sublinhando a identidade da América do Sul como uma região com características especiais na área de paz e segurança, de cuja evidência

crescente e por contraste com outras re- giões do mundo podemos auferir vanta- gens em termos de investimentos e tecno- logia. A vocação reiterada da América do Sul e, hoje, da América Latina como um todo para a paz, a boa vizinhança e o desenvolvimento são trunfos que não po- dem ser desperdiçados em uma conjuntura internacional marcada pela escassez de ca- pitais e pela persistente instabilidade polí- tico-militar de várias regiões.

Cabe aprofundar os processos de inte- gração e coordenação tanto na direção do sul como na direção do norte. É preciso sublinhar de modo enfático que o Brasil é um só, apesar de cada região ter natural- mente suas próprias prioridades e seus re- lacionamentos económicos preferenciais. O Mercosul não é um projeto que apenas interesse aos Estados do Sul do Brasil, assim como o Tratado de Cooperação Amazônica não interesse apenas aos Esta- dos do Norte. O Brasil todo tem muito a ganhar com o aprofundamento desses e de outros projetos semelhantes.

Outra região que requer uma reflexão aprofundada é a África. Temos aí interes- ses importantes e laços afetivos e culturais de grande relevância, sobretudo com os países de fala portuguesa.

Ao Brasil se impõe praticar o que o Presidente De Gaulle chamava de estraté- gia touts azimuts - em todas as direções -, sem exclusões ou omissões. Uma dessas direções mais relevantes é a do pacífico, onde encontramos mais próximo de nós o Chile e mais adiante o Japão e a China.

Essas alusões não têm caráter exausti- vo e hierarquizante. São meras indicações da multiplicidade de oportunidades que se nos apresentam.

Uma estratégia multidirecional, apon- tada para todos os pontos cardeais, se re- veste, no caso brasileiro, de um caráter natural e necessário, se observarmos as características de nossa sociedade, de nos- sa economia, de nossa geografia e, como já vimos antes, a própria forma de que a sociedade internacional se vai revestindo. A pluralidade étnica, cultural, política e ideológica da sociedade brasileira invia- biliza parcerias excludentes.

A diversidade e a escala da economia brasileira inibe qualquer tendência à con- centração em determinados mercados, por maiores e mais dinâmicos que sejam.

Nossa geografia, ao contrário do que ocorre com tantos países, também não nos condena a relacionamentos prioritários.

Finalmente, a complexidade, diver- sidade e fluidez do quadro internacional tornam obsoletas políticas externas tota- lizantes, baseadas em fórmulas fáceis e na aplicação automática de seus pressu- postos à realidade.

Em resumo, a política externa brasilei- ra terá cada vez mais que atender à com- plexidade da sociedade brasileira em todas as suas legítimas demandas através de uma adequada compreensão e utilização das oportunidades oferecidas por uma conjun- tura internacional igualmente complexa.

A hora não pede frases feitas ou inicia- tivas mirabolantes. A diplomacia brasilei-

ra terá que ser ao mesmo tempo consisten- disposição para ouvir a sociedade brasilei- te e criativa, confiável e inovadora. Não ra e buscar atender a suas necessidades será difícil consegui-lo. Temos o patrimô- crescentes em um quadro externo de gran- nio de nossos princípios e um acervo sig- de fluidez. Estamos, em suma, abertos ao nificativo de realizações comuns com nos- diálogo e à necessidade de rumos, quando sos principais parceiros. Temos também necessário.