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Celso Amorim

Discurso de posse do Embaixador Celso Amo- rim, no cargo de Secretário-Geral das Relações Exteriores, proferido em 30 de junho de 1993

Oenhor Ministro de Estado, interino, das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Fe- lipe Lampreia, (Parlamentares e autoridades) Senhores Subsecretários-Gerais, Senhores Embaixadores, Caros colegas, Senhoras e Senhores,

Minhas primeiras palavras são natural- mente de agradecimento ao Ministro José Aparecido de Oliveira por me ter indicado para ser seu principal assessor na execução da política externa do Governo Itamar Franco. A ele e ao Presidente da República minha gratidão pela confiança com que me distinguiram e a qual procurarei corres- ponder com o melhor dos meus esforços.

Quero também agradecer as palavras do Embaixador Luiz Felipe Lampreia e dizer que me sinto honrado em receber dele o cargo de Secretário-Geral do Itama- raty, da mesma forma que fora ele quem, há cerca de um mês, me anunciara a inten- ção do Ministro José Aparecido de desig- nar-me para esta função. Unem-me ao Embaixador Lampreia laços pessoais e

profissionais sólidos e ricos. Sempre ad- mirei a sua inteligência, o seu profissiona- lismo, o seu dom de convivência humana e o seu caráter íntegro, qualidades que fazem com que a Casa de Rio Branco possa orgulhar-se de seu atual Ministro.

Sem entrar em confidências, não posso esquecer que em um momento crítico da minha carreira, quando buscava reinserir- me no seu leito normal, após algumas aventuras cinematográficas e científicas, foi o Embaixador Lampreia um dos que, com a boa intriga, mais contribuíram para minha aterrissagem suave na volta à Casa. Tenho, ainda, em comum com o Embaixa- dor Lampreia a boa lembrança de ter ser- vido sob as ordens do Ministro Azeredo da Silveira, num dos momentos mais criati- vos de nossa política externa. Aproveito essa ocasião para desejar a Felipe e Lenir que sejam felizes e sigam sua profícua carreira em Genebra. Estou certo de que os estimulantes desafios profissionais que o Embaixador Lampreia enfrentará e que não são pequenos não lhe deixarão muito tempo para saudades da Secretaria-Geral e do exercício do Ministério.

Estou aqui, como sabem todos, por uma convocação do Ministro José Apare- cido, que mereceu a aprovação - honrosa para mim - do Presidente Itamar Franco. E quem conhece o Ministro Aparecido sabe que suas convocações são irresistí- veis e indeclináveis. E mesmo que assim não fosse, não teria eu - servidor público por vocação e convicção - como recusar este cargo que traz consigo, ao lado de sacrifícios e deveres, a honra máxima a que pode aspirar um diplomata. E a honra, nos lembra Corneille - que casualmente lia com meu filho caçula no dia da comu- nicação da minha designação - deve sem- pre prevalecer sobre o prazer, mesmo que neste se inclua o desafio intelectual de servir ao Brasil em foros tão interessantes e importantes como o GATT, a Comissão de Direitos Humanos e a Conferência do Desarmamento, entre outros.

A posse de um Secretário-Geral do Itamaraty é sempre uma ocasião solene, ainda que não necessariamente festiva. No caso, a festa está ex qfficio adiada, até que o Chanceler Aparecido seja ele próprio empossado, o que ocorrerá muito em bre- ve. Mas a solenidade subsiste. Para a Casa, este momento encerra sempre expectati- vas inerentes a toda mudança. Para quem assume, faz-se sentir, com todo seu peso, a responsabilidade de ser o elo principal entre o Itamaraty, seus anseios, sua tradi- ção, seus valores e suas percepções e o Ministro, que verdadeiramente encarna o Poder político e de quem emanam a orien- tação e a inspiração da nossa atividade. Seria tentador, mas possivelmente inapro- priado, fazer aqui alguma digressão webe-

riana sobre essas duas vocações, a do Po- lítico, tão bem encarnada pelo nosso futu- ro Chanceler e a do Diplomata profissio- nal, representada pelo Chanceler atual.

Outra tentação a que vou resistir é a de enumerar os Chefes ilustres com quem servi diretamente ou meus antecessores neste cargo sobremodo honroso. A lista seria longa e a mera evocação de certos nomes com a aura que os cerca me faria mais temeroso de não estar a altura das tarefas que me aguardam. Mas não posso, neste momento singular da minha vida profissional, deixar de mencionar o Em- baixador Ovidio Melo, meu primeiro Che- fe no exterior, a quem devo inúmeras e, espero, aprendidas lições de honradez, pa- triotismo, coragem e inteligência, exerci- das por vezes em condições as mais diver- sas. A ele e a Ivony, devemos também, Ana e eu, as primeiras lições de diploma- cia prática, quando ainda jovens e algo visionários com eles servimos no Consu- lado Geral em Londres. Ao Embaixador Ovidio Melo, rendo a homenagem, que, a rigor, a História já lhe prestou.

Senhor Ministro, meus colegas. Não desconheço as dimensões das ta- refas que vou assumir, na coordenação da Secretaria de Estado e das atividades das nossas missões e repartições no exterior. A qualidade profissional, a lealdade e de- dicação dos quadros do Itamaraty são, en- tretanto, fator de tranquilidade. O Itamara- ty é uma casa singular. Diferentemente do que ocorre em outras instituições igual- mente respeitáveis, não pensamos nos seus integrantes como «quadros», mas fundamentalmente como pessoas, como

seres pensantes e criativos, com uma visão do mundo própria, enriquecida por anos de convivência com temas complexos da po- lítica e da economia internacionais e por uma experiência multifacetada, fruto da exposição a uma grande variedade de cul- turas e atitudes de vida. Daí a saudável diversidade de opiniões e de modos de ver que caracteriza os diplomatas.

No Itamaraty toda a unidade de pen- samento, toda convergência de ideias não se fazem por comando ou imposição. São fruto de reflexão e discussão coletivas, que cumpre valorizar e estimular. O pró- prio Ministro e - um grau abaixo - o Secretário-Geral podem ser (e devem ser) fontes de inspiração, mas, não de doutri- nas rigidamente estabelecidas. Aqui o respeito à autoridade, que é essencial à natureza e funcionamento da instituição, jamais se confunde com o «argumento da autoridade», que desafia os ditames da Razão. Vejo, pois, nesta diversidade, um fator de enriquecimento e de sabedoria de que procurarei valer-me ao máximo para melhor subsidiar as decisões do Ministro de Estado.

O intervalo de quase um mês entre a minha chegada ao Brasil e a posse, permi- tiu-me uma visão de conjunto das grandes - e, diria, até das pequenas - questões que preocupam a nossa instituição hoje. Fiquei mesmo tentado a produzir, à moda de um personagem de Stendhal, um relato cir- cunstanciado sobre o «estado das coisas» no Itamaraty. Constatei, em primeiro lugar - e com satisfação -, que não há questio- namentos dentro da Casa, quanto às gran- des linhas de nossa política exterior. Há

naturalmente nuances e ênfase distintas, percepções diferenciadas sobre o momen- to para certas decisões, mas raramente pude perceber visões divergentes sobre os grandes temas de política internacional e a atitude do Brasil diante deles. Reflete este fato, a meu ver, um amadurecimento pro- gressivo da nossa ação diplomática, cujas linhas mestras têm sido preservadas dos solavancos por vezes bruscos do nosso quadro político. Essa continuidade ganha significado maior quando se tem em conta a moldura democrática de nossas institui- ções políticas, o livre e despreconceituoso debate que hoje se trava na sociedade bra- sileira sobre todos os problemas nacionais. O perfil que surge dessa atuação interna- cional firme e coerente é o de um país de vocação indiscutivelmente pacífica e res- peitador das normas internacionais, fiel ao multilateralismo e à solução negociada de controvérsias, aberto ao diálogo e com atitude transparente ante a comunidade in- ternacional. Mas um país de personalidade marcadamente própria, imune às classifi- cações simplistas e aos modismos passa- geiros, que não abdica de seu direito de desenvolver-se económica, cultural e tec- nologicamente, ainda que isso possa trazer desconforto para os atuais detentores do poder mundial.

Não me cabe, hoje, naturalmente, dis- correr sobre as características da realidade internacional cambiante que vivemos e na qual devemos inserir-nos de forma dinâ- mica, digna e autónoma. Para responder- mos aos desafios e às oportunidades dessa ordem internacional inferi - marcada pe- los riscos da ilusão da unipolaridade e dos

nacionalismos fragmentários - o Itamara- ty tem que estar à altura do Brasil que sonhamos e das potencialidades e da cria- tividade do seu povo. Num mundo cres- centemente complexo, teremos que buscar a melhor forma de nele nos inserirmos, por meio da integração regional e da participa- ção em foros globais, entendendo sempre que, por força do nosso peso económico, nossa diversidade cultural, nosso dinamis- mo histórico, não podemos nunca sucum- bir à tentação de jogarmos um papel coad- juvante em agrupamentos sujeitos a hege- monias de qualquer espécie. Até porque - mesmo que o quiséssemos - seríamos re- jeitados. Nossa vocação é indiscutivel- mente universal, o que não exclui ênfases e prioridades, que o Ministro Aparecido - e não eu - se encarregará de definir.

Não há para o diplomata recompensa maior do que o sentido de bem servir ao Brasil. Ninguém entra para o Itamaraty para amealhar fortuna ou mesmo para fazer carreira política. No primeiro caso, o engano seria total e fatal. No segundo, haveria certamente vias mais rápidas e seguras de êxito. Mas para que possa realizar a sua tarefa, que é ao mesmo tempo seu prémio, é indispensável que o diplomata tenha condições mínimas de trabalho e garantias de sobrevivência de- cente para si próprio e para sua família. Sem desconhecer o sacrifício que a atual situação do país impõe a todos, sem dis- tinção, tenho a certeza de que com o inestimável apoio do Ministro José Apa- recido e a compreensão do Presidente Itamar Franco, lograremos repor a reali- dade orçamentaria do Itamaraty em pata-

mar condizente com a necessidade de re- presentar condignamente o nosso país. Este será um empenho permanente do Se- cretário-Geral e, estou certo, também do Chanceler José Aparecido de Oliveira.

Anotei, também, para o meu ainda imaginário relato, a impressão de que o Itamaraty vive no momento um grande impulso reformista. Este processo, desen- cadeado por iniciativa do ex-Chanceler Fernando Henrique Cardoso e que contou com ampla participação dos diplomatas da Secretaria de Estado e do Exterior, é es- sencialmente salutar. Questionam-se des- de métodos de trabalhos dos postos até sistemas de promoção e comissionamento. Há nos resultados que já pude ver compi- lados pela Comissão criada para esse fim um manancial rico de propostas e suges- tões que pretendo, após cuidadoso exame, submeter ao Ministro José Aparecido. A formação de colegiados para as tarefas de planejamento político e administrativo bem como para as ligadas ao Serviço Ex- terior parece-me ideia a ser tida especial- mente em conta. Esses colegiados, como monitoradores e condutores de um proces- so de reforma, que na verdade deve ser permanente, poderão dar corpo, de forma institucional, à sabedoria coletiva da Casa, ilustrada no célebre dito do Ministro Sil- veira de que a melhor tradição do Itamara- ty é saber renovar-se.

A despeito do caráter essencialmente saudável desse élan renovador, não me parece descabida a palavra de cautela que ouvi de um amigo, homem sábio e expe- riente, e sem vínculo com a nossa institui- ção, mas que, como a maioria dos brasilei-

ros cultos e bem informados, tem por ela grande apreço. Dizia ele, com sinceridade amiga: «O Itamaraty é uma coisa sagrada para o Brasil. Por isso é preciso muito cuidado com as mudanças». Dito isso, não há como desconhecer uma certa inquieta- ção hoje existente no nosso corpo de fun- cionários. Como vencer esse sentimento, que felizmente não é generalizado, mas que é preocupantemente perceptível entre os jovens, é uma tarefa primeira de qual- quer administração do Itamaraty. Como conciliar o justo anseio dos jovens diplo- matas em galgar os postos mais altos da carreira, com a preservação de sua nature- za essencialmente competitiva, no melhor sentido, que é a outra face da moeda da excelência, é um desafio lógico e psicoló- gico que deve merecer toda nossa atenção. É essa uma questão que não admite solu- ções mecânicas ou simplistas. Sobretudo, não deve ser ela um fator de desunião. Na sociedade democrática em que felizmente vivemos, somente soluções consensuais, amplamente discutidas poderão sobrevi- ver. E já que mencionei a excelência - razão principal senão única dessa sacrali- dade que alguns, como meu citado amigo, nos atribuem -, não posso deixar de men- cionar a importância central do sistema de recrutamento, treinamento e aperfeiçoa- mento dos nossos quadros, notadamente, mas não apenas, o de diplomatas. A qua-

lidade humana dos funcionários do Itama- raty é o nosso bem mais precioso, mais que os vistosos palácios que eventualmente os abrigam. Não permitamos que por uma ilusão de ótica nos afastemos daquilo que para nós é o mais importante: a indisputa- da e indisputável excelência do nosso ser- viço exterior.

Quando entrei para o Itamaraty, há cerca de trinta anos, mais ou menos na mesma época que o Embaixador Lam- preia, o Brasil vivia um estado de embria- guez democrática. Sonhos e projetos se produziam incessantemente, muitos deles contraditórios ou irrealistas.

Minha geração conheceu o travo amargo de ver muitos desses sonhos frustrados e muitos desses projetos am- putados. Outros, porém, como o de uma Política Externa Independente, frutifica- ram. O sonho/projeto de San Tiago Dan- tas tornou-se missão do Itamaraty. Hoje quando a democracia e o pluralismo se consolidam em nosso país, quando a honradez, a sensibilidade social e o sen- tido de dignidade nacional são as marcas de governo, falar em Política Externa Independente parece pleonástico. Mas a missão segue válida: contribuir para a construção de um país livre, dinâmico, criativo, com presença ouvida e respei- tada no concerto das nações. •