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2 NOÇÕES TEÓRICAS SOBRE AMOR,

2.1 OS MODELOS ANTERIORES AO AMOR ROMÂNTICO

Embora meu objetivo consista no estudo mais aprofundado do amor romântico e dos feitios amorosos contemporâneos, primeiramente é preciso elucidar algumas questões a respeito dos modelos anteriores àquele. Nesse sentido, escolhi o amor platônico e o amor cortês medieval como pontos nodais desta análise.

2.1.1 O Amor Platônico

O amor tematizado na famosa obra “O banquete”, de Platão (2008), é definido por André Comte-Sponville (1995) como amor-eros, uma das três formas de amor. Para esse autor, as três formas de amor seriam, além do amor-eros, o amor-philia e o amor-caritas.

Interessa-nos, aqui, sobretudo, o amor-eros. A obra narra um banquete no qual Eros, deus do amor, é elogiado, o que se dá por meio de três discursos. O primeiro, de Pausânias, trata da diferença entre o Eros vulgar e o celeste. O Eros vulgar corresponde à Afrodite mais moça, chamada de Paudemiana, enquanto que o Eros celeste corresponde à Afrodite mais velha, denominada Urânia. Para Platão (2008, p. 108), “a Afrodite popular [...] é verdadeiramente vulgar e se realiza como que por acaso”. O Eros dessa deusa mais moça, portanto, consiste no amor mais do corpo do que do espírito.

Já o Eros celeste, da Afrodite mais velha, dirige-se ao prazer do espírito e “não se excede na concupiscência (PLATÃO, 2008, p. 108). Para Maria de Lourdes Borges (2004), no Eros vulgar não há preocupação com a virtude do ser amado, enquanto que, no Eros celeste, ama-se a virtude do outro. Por isto as relações baseadas neste último Eros são mais duradouras: o objetivo é a companhia do outro. Essa divisão do Eros parece conter em si a diferenciação, que será efetuada posteriormente, entre amor romântico e amor líquido.

O segundo discurso, proferido por Aristófanes, traz o mito do andrógino, segundo o qual, no início do mundo, existiam três sexos, quais sejam: o feminino, o masculino e o andrógino. Os seres humanos eram muito fortes e robustos, visto que possuíam quatro pernas, quatro braços, duas faces, quatro orelhas e dois órgãos sexuais. Por esse motivo, teriam se rebelado e decidido atacar os deuses. Para enfraquecê- los, sem, no entanto, os destruir, Zeus cortou-os ao meio, deixando os órgãos sexuais postados à frente de seus corpos. Dessa forma, se as metades dos seres andróginos se encontrassem, eles poderiam reproduzir outros seres e a humanidade não seria passível de extinção: “é daí que se origina o amor que as criaturas sentem umas pelas outras; e esse amor tende a recompor a antiga natureza, procurando de dois fazer um só, e assim restaurar a antiga perfeição” (PLATÃO, 2008, p. 122). Para Borges (2004, p. 15), é o discurso de Aristófanes que ressalta a incompletude do amor-eros: “ele é a busca pela sua metade perdida, busca que evidencia a carência constitutiva da pobreza intrínseca”.

Já o último discurso, de Sócrates, traz os ensinamentos de Diotima, a quem ele deveria tudo o que sabia sobre o amor. Ele evoca a sua concepção de Eros, filho de Pênia, que representa a pobreza, e Poros, que representa a esperteza. Eros, por isso, seria pobre como sua mãe e astuto como seu pai. É também mortal e tolo, como sua mãe, e, ao mesmo tempo, imortal e sábio, como seu pai. Sendo assim, estaria no lugar dos que buscam a filosofia, que são os nem totalmente sábios, nem totalmente burros. Eros faz, então, a ponte entre o humano e o divino.

Para Diotima (PLATÃO, 2008, p. 143), “amar não é procurar nem a metade nem o todo, se [...] isso não for bom” ou seja, o amor consistiria no desejo do bem e da felicidade.

2.1.2 O Amor Cortês

A compreensão do modelo do amor cortês parece ser ainda mais fundamental para que, no momento a seguir, seja possível trabalhar a noção de amor romântico, já que é baseado naquele. O amor cortês é um amor que não se realiza. A cortesia consiste na insistência do trovador diante das sucessivas negativas de sua dama. O homem, segundo o medievalista Georges Duby (1993), historiador francês que estuda sociedades medievais, não está livre, ao passo que a mulher, pelo menos nesse primeiro momento, possui a liberdade de aceitar ou não sua oferta. O poder feminino residiria, então, nessa colocação do homem à prova, para que ele mostre o quanto vale.

Em dos clássicos sobre o tema, “O amor e o ocidente”, Denis de Rougemont (1999, p. 64) afirma que o amor cortês se situa historicamente no início do século XII e está vinculado à poesia dos trovadores, caracterizada como “a exaltação do amor infeliz”. Essa espécie exalta o amor fora do casamento, que significaria apenas a união dos corpos. As regras matrimoniais da época, de acordo com Duby (1993, p. 341), determinavam que os casamentos deveriam servir à manutenção das linhagens aristocráticas. Os sentimentos dos prometidos não estavam em jogo. No entanto, para limitar as partilhas sucessórias, as linhagens nobres procuravam casar bem apenas um dos filhos homens, geralmente o mais velho. Os demais deveriam vencer sozinhos. Esses jovens celibatários, sem esposas, embora não tivessem sua atividade sexual reprimida diante de prostitutas, criadas e camponesas, desejavam possuir uma mulher da sua própria condição social: “que adolescente não esperava raptar nas barbas dos seus parentes uma donzela de ricas esperanças?”.

Isso explica o ritual descrito por Rougemont (1999, p. 65) como sendo o da “vassalagem amorosa”, importante integrante do amor cortês. Cabe trazer aqui as considerações de Duby (1993) acerca das questões de diferenciação social na época. A aceitação do modelo do amor cortês, para ele, tem também na divisão entre homens trabalhadores, camponeses, e senhores, que viviam nas cortes. O mesmo ocorria em relação às mulheres, divididas entre trabalhadoras, camponesas, e damas ou donzelas. As primeiras poderiam ser perseguidas pelos homens e inclusive capturadas à força. Já as segundas

deveriam ser tratadas com maior refinamento, conquistadas. A conquista da bela dama se dá pela beleza da homenagem musical efetuada pelo poeta, que, de joelhos, lhe jura fidelidade eterna. O homem é aqui o servo da mulher, a qual é elevada acima dele, tornando-se seu “ideal nostálgico”. Tal imagem é também descrita por Duby (1993, p. 331). Ele afirma que o amor cortês é composto pela dama, uma mulher em situação dominante e casada, e por um homem, um jovem. Para ter acesso à ela, o homem se inclina, se ajoelha, já que ela se encontra acima dele: “a „dama‟ é a esposa de um senhor, muitas vezes do seu próprio senhor”. Além disso, ainda segundo este autor, por ser mulher, a dama não dispunha do seu corpo, que pertencia ao pai ou ao marido. Por isso, ele era extremamente vigiado, configurando-se, assim, a aventura diante do perigo ao qual a dama e o homem se expunham.

Um ponto importante, no que se refere ao amor cortês, reside no distanciamento carnal entre as partes envolvidas. Rougemont (1999, p. 88) entende que esse modelo pressupõe a castidade: “as virtudes da cortezia – humildade, lealdade, respeito e fidelidade para com a Dama – estão aqui relacionadas expressamente com a recusa do amor físico”. Duby (1993, p. 332) concorda com ele, embora fale no desejo do homem de se apoderar da dama, além de mencionar uma entrega à qual a dama se veria constrangida, “como preço de um serviço leal”. Este último autor vai além, ao asseverar que o código amoroso possuía diversas etapas, indo de olhares a beijos, mas que não chegava à satisfação carnal: “o prazer culminava no próprio desejo” (DUBY, 1993, p. 333), estava circunscrito à espera.