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1. INTRODUÇÃO

5.2 APRENDENDO SOZINHO OU NÃO

5.2.3 Modelos virtuais I

Tomo aqui a palavra virtual numa das acepções do Dicionário Michaelis: “que equivale a outro, podendo fazer as vezes deste, em virtude ou atividade”. Uso-o em contrapartida ao termo real, algo pura e simplesmente imerso em nossa realidade palpável: a um modelo real – o artista, no caso – pode-se ir até ele e perguntar-lhe sobre um acorde, uma partitura, um arranjo. O mesmo, obviamente, não se dá ao ouvirmos um vinil, por exemplo. Aquele som “faz as vezes” de uma banda tocando em minha sala, mas não o é.

Evito no momento uma discussão filosófica do virtual no sentido de Pierre Lévy153, onde usa a dialética d’o virtual X o atual.

Os modelos virtuais são muitos e não são exclusivos da Era da tecnologia digital. Eles já podem ser identificados desde os primeiros tempos do disco e do rádio, depois em filmes e gravações de toda ordem (LP’s, CD’s etc.), vídeo-aulas, internet etc (estes serão abordados no tópico 5.5). Lembro aqui que Umberto Eco já havia analisado os meios audiovisuais, identificando-os como instrumentos de informação musical; sendo, os mesmos, passíveis de proporcionar relações de reforço de sistemas informais de educação. Embora não nos interesse diretamente, ele ensaia, também aí, uma avaliação estética acerca de transmissões radiofônicas e televisivas (ECO, 1970, pp. 316 e seguintes).

5.2.3.1 No cinema

Um dos mais antigos meios virtuais, depois do disco e do rádio, é o filme de cinema. Com o advento do cinema falado, a inclusão de trilhas sonoras em filmes154 passou a ser uma constante. E, com o tempo, tornou-se uma alternativa para o aprendizado musical informal. Sabe-se, por exemplo, que o compositor, pianista e acordionista João Donato (*1934) foi enviado por Paulo Serrano (o então dono da gravadora Sinter) ao cinema para aprender Invitation, de Bronislau Kaper. A intenção de Serrano era fazer um disco instrumental com Donato. Assim, o músico foi ao Metro-Passeio da Cinelândia (Rio de Janeiro) e ficou por três sessões seguidas, até cumprir a missão.155

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Não obstante a minha escolha, o assunto é riquíssimo e pode vir a ser contemplado em estudos futuros, principalmente se tratarmos de programas cibernéticos de ensino de música. Veja referências.

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Em 1926 o cinema deixou de ser mudo. A estréia do som deu-se no filme Don Juan (dirigido por Alan Crossland), um filme cantado. Após este sucesso, veio O Cantor de Jazz, interpretado por Al Jolson (Walter da Silveira, A história do cinema vista da província, p.73).

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Nas décadas de 1940 e 1950 ir ao cinema ainda era barato156. Em Salvador, muitos músicos freqüentavam as salas de cinema no intuito de aprenderem o repertório dos filmes, principalmente os americanos. O custo, portanto, não era impeditivo. Tal fato foi detectado por DANTAS (2005, p. 45), que informa ser o Cine Jandaia o mais freqüentado pelos músicos de então. Em conversas informais com pessoas idosas da Cidade Baixa, fui informado de que os cines Roma, Bonfim e Itapagipe exibiam grande quantidade de musicais, especialmente a partir da II Guerra Mundial. É, portanto, perfeitamente plausível que os músicos locais também os freqüentassem. Carlos Lázaro da Cruz, um dos mais antigos músicos de Salvador em atividade, confirma:

Eles iam pro cinema, pro cinema aprender as músicas dos filmes, aprender a tocar boogie-woogie, tocar foxtrot, tocar blues! Agora, ele levava a vida toda indo pro cinema, gastando dinheiro pra assistir, porque o sujeito não aprendia de ouvido de uma vez só... então ele ia uma vez, três vezes, ele ia não sei quantas vezes. Quando botava debaixo do dedo [...] aí passava para o outro companheiro (CRUZ, depoimento, 2007).

Podemos associar aqui o hábito de aprender música em cinemas aos efeitos dos planos bem sucedidos de expansão da área de influência americana durante a II Grande Guerra e na fase do pós-guerra. A “política da boa convivência” entre as nações latino- americanas e os EUA soa como um eufemismo para o que viria a ser uma verdadeira dominação cultural. Data daí, por exemplo, a criação do personagem Zé Carioca, por Walt Disney, e o seu famoso filme de animação (ao menos divulgou Carmen Miranda e Dorival Caymmi. Confirme em MOURA, 2006, p.114). Um grande número de musicais (tipo Broadway, por exemplo) eram exibidos nos cinemas locais, conforme relato dos mais

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Pessoas idosas, moradoras dos bairros do Bonfim, Roma e Boa Viagem durante as décadas de 1940 e 50, em conversas informais, lembravam que o preço dos ingressos “era baratíssimo, mais ou menos o preço de um refrigerante”. A partir do final dos anos 70, com as grandes produções cinematográficas (Guerra nas Estrelas, 1977) os cinemas locais passaram a não permitir que os espectadores ficassem nas salas de exibição por mais de uma sessão.

velhos. Muitos jovens da época queriam sapatear como Fred Astaire ou Gene Kelly. Com a expansão das redes de televisão nacionais e com o aumento das facilidades para o consumo de eletrodomésticos, esse hábito caiu em desuso.

5.2.3.2 Escutando discos e rádio

O aprendizado informal de música tem na escuta de discos um forte aliado e remonta, certamente, ao início da era fonográfica. Sabe-se que em 1914, a indústria fonográfica americana já contava com 25 milhões de exemplares vendidos; este número subiu a 100 milhões em 1921. Toynbee revela o relato do trompetista Jimmy McPartland acerca do seu hábito, juntamente com seus colegas de banda, de aprenderem músicas a partir da escuta acurada de um disco, no início da década de 1920. O autor acrescenta, citando Oliver (1968) e Eisenburg (1987), que “a circulação massiva de discos levou a um novo tipo de oralidade mediada, pela qual jovens músicos aprendiam seu ofício tanto ouvindo fonógrafos quanto lendo música ou observando executantes” (TOYNBEE, citando Gelatt, 2000, pp. 74 e 75).

A difusão de discos em Salvador era relativamente tímida, podemos dizer, até os anos 80 e, num certo sentido, ainda hoje. Lula Nascimento, referindo-se à década de 1960, recorda de duas lojas de discos na Rua Chile, provavelmente A Modinha e A Casa da Música, lembrando que “era uma raridade, era uma felicidade ter um disco de jazz, porque só quem ia ao Rio conseguia; aqui na Bahia ninguém importava, você não [os] encontrava nos anos 60”. Na trilha do “disco é cultura”, campanha massiva durante a década de 70 e 80, o álbum – LP com capa bem tratada visualmente e um encarte, muitas vezes – era um sonho de consumo. Ganhar de presente um disco assim era quase um luxo. Assim, a alternativa era o rádio. Na década de 1970, lojas como Mesbla e Sandiz eram

referências para a classe média. A sua presença nos nascentes shopping centers da cidade atestam isso. Discos importados eram raros e caros, e podiam ser encontrados na Gioventú, nos bairros da Barra e na Ajuda, e na Tok Som, na Barra, como testemunhei na década de 70.

No Brasil, os ouvintes do rádio concentravam-se na faixa AM, a única existente até a década de 50. Muitos intérpretes e autores nacionais calcaram as suas carreiras nas ondas do rádio, como é largamente sabido. Mas as emissoras em FM eram inexistentes no Brasil, até 1955; mesmo após, muitos aparelhos receptores não captavam ondas FM. Sua programação era apenas de música ambiente, sem locução. Apenas a partir de 1976 é que vai se iniciar um boom desse tipo emissão157.

No documento Caminhos da música instrumental em Salvador (páginas 164-168)