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1. INTRODUÇÃO

5.1 PRELIMINARES

No início da década de 1970, a Cidade do Salvador contava com três principais escolas de música que se dedicavam à chamada música erudita. Música “clássica”, como se diz vulgarmente até hoje. Tais eram o Instituto de Música da Universidade Católica do Salvador, na rua Carlos Gomes; o Instituto de Música da Bahia, ou “a escola do professor Jatobá”, como era conhecida, próxima ao largo da Piedade; e os Seminários de Música da Universidade Federal da Bahia, a atual EMUS. Nesses locais, a música popular tinha, praticamente, o status de sacrilégio; ou, simplesmente, nem existia. Não lhe davam esse direito. Até Ernesto Nazareth era visto com desconfiança por alguns; para os pianistas, seus balanços brejeiros eram como que uma “folga”, uma recreação para compensar os esforços em se colocar em dias o seu pesado repertório calcado principalmente em Beethoven, Chopin e Liszt, e nos “exercícios de técnica” de Moskowicz, Heller, Pozzoli e outros mais. Certamente havia umas poucas exceções, como a professora Therezinha Requião, do IMUCSAL: eu a ouvi várias vezes tocar um tango ou um maxixe antes do início do ensaio coral, sexta-feira à tarde, lá pelos idos de 1976 ou 77. Numa certa feita, nessa mesma instituição, uma vetusta professora flagrou um talentoso estudante tirando uma canção popular “de ouvido”. Abriu, indignada e bruscamente, a porta da sala. O flagrado lívido pianista perdeu o fôlego por uns momentos, até ouvir, sonoramente: “Tão talentoso, jogando fora o seu precioso tempo com bobagens!...” Esta cena, eu mesmo vi e ouvi...

Na década de 1950 havia pelo menos um estabelecimento de ensino musical que dava, se não integralmente, ao menos uma atenção digna à música popular. Trata-se da

Academia de Acordeom Regina, fundada por José Benito Colmenero, médico espanhol radicado em Salvador. Conhecia o bandoneon e o acordeom. Inicialmente dava aulas em seu próprio consultório no Forte de São Pedro. Com a fundação da Academia propriamente dita, passou a promover outras atividades musicais, como um programa de na Rádio Excelsior, às segundas-feiras. Consta que Hermeto Paschoal e Sivuca se apresentaram aí, assim como diversos sanfoneiros que visitassem Salvador. Nessa Academia, Gilberto Gil concluiu em 1956 o seu ciclo básico de acordeom145.

Na Escola de Música da UFBA, a grande e conhecida exceção era o professor Paulo Gondim (*1934), pianista e compositor, ex-aluno de Pierre Klose e Sebastian Benda. Gondim nasceu em uma família de músicos. Sua mãe, Maria de Lourdes Gondim, era uma pianista consumada e compositora, e muitas de suas irmãs tocavam e cantavam no rádio na década de 40 em Fortaleza, sua cidade natal. “Todo mundo tocava de ouvido”, segundo consta em seu depoimento. Não obstante, teve uma sólida formação erudita. Ainda como estudante em Salvador, foi incentivado por Carlos Lacerda, que lhe indicou muitas oportunidades de trabalho e alunos particulares. Tornou-se professor de gerações de pianistas.

Em 1959 Koellreutter (1915-2005), então diretor dos Seminários de Música da UFBA, abriu um curso de jazz. Convidou alguns professores já atuantes nos Seminários para assumirem essa nova tarefa. Há um relato sobre o assunto:

Ele abriu um curso de jazz em 59, 60. Eu era ainda aluno de Benda. Lembro que o Lacerda achou estranho o Koellreutter não chamar ele também. Koellreutter chamou a mim, me botou numa lista com Armin Guttman, da flauta; Szeredske, do clarinete; Georg Merwein ia ensinar harmonia, tinha um outro que ia ensinar

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Veja em Carlos Calado, Tropicália – a história de uma revolução musical, pp.31-32 (ver referências). Confira também uma entrevista de Gilberto Gil ao Jornal Estadão em 08 de abril de 2002. Encontra-se disponível em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2002/not20020408p3373.htm [último acesso em 24.01.2010].

trompete... Sei que só eram alemães, e o único brasileiro era eu, um cearense, aluno do Benda. Koellreutter até me deu um caderno dele, assim, com harmonias de jazz. Mas eu ainda não estava me sentindo preparado pra isso. Mas eu aceitei, porque eu tinha alunos particulares (GONDIM, depoimento, 2007).

Aquele curso funcionou por um ano, apenas. Não houve muita procura e o diretor resolveu cancelá-lo, mas com esperanças de retomar a idéia um dia. Pelo que pude descobrir, esta foi a única iniciativa de se criar um curso envolvendo música popular naquela época. Esta situação – ausência de escolas voltadas a algum tipo de música popular – só iria se modificar no início da década de 80, com a fundação da AMA – Academia de Música Atual (ver mais à frente).

Para se estudar música popular seriamente tinha que se enfrentar muitos preconceitos. E dificuldades. Na década de 1970, por exemplo, quase não se encontravam partituras à venda nas poucas casas de música da cidade. Só música clássica ou música americana de cinema. Poucas eram as exceções.

Freqüentes vezes, ante a pergunta “Como você aprendeu jazz (ou música popular, ou instrumental)?”, ouvi como respostas dos informantes: “sozinho”, “ouvindo”,

“tirando do disco”. Alguns mais jocosos respondiam “natoralmente”146. Outros mais

dramáticos aprenderam “no grito”. Todas essas respostas indicam um grau de vontade e movimento próprios na direção desse aprendizado. Percebia que os músicos entrevistados queriam basicamente dizer “Que jeito? Se não é ensinada na escola, vou ter que aprender sozinho...”

Pensar neste “sozinho” leva-nos também a refletir sobre autodidatismo, que é um termo variante de autodidaxia, significando, segundo a edição de 1998 do dicionário

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Essa expressão bastante usada em Salvador e entornos; deriva de “na tora”, que quer dizer, na marra, à pulso. Daí, “na-tora-lmente”.

Michaelis, “fato ou ato de instruir-se sem professores” e “capacidade para aprender sem mestre”. Fato e capacidade, ato e potência para este ato, são aqui abarcados nesta definição.

Conversando com uma professora de pedagogia147, comentei-lhe acerca da

inexistência de trabalhos sobre autodidatismo em sua área. Ela foi direta: — Claro, senão os professores vão perder seus empregos...

No entanto, o autodidatismo e a motivação são fatores muitas vezes decisivos no aprendizado da música popular – incluindo, aqui, com este termo, também o jazz, a MI e outros estilos improvisatórios, e, certamente, no aprendizado musical em culturas não industrializadas. Voltaremos a essa questão um pouco mais à frente. Visto que a autodidaxia é um dos aspectos da educação não-formal, cabem aqui, antes, algumas palavras acerca deste tema. Primeiramente gostaria de ressaltar que pelo termo “não- formal” refiro-me a maneiras e processos de aprendizagem consumados fora de uma escola regular.

A literatura etnomusicológica revela inúmeros exemplos de formas e maneiras de aprendizado musical em diversas sociedades, especialmente quando se trata de processos de aprendizado cultural (enculturation).

A imitação direta é uma delas, embora “talvez a mais simples e indiferenciada forma de se aprender música”, e ligada principalmente aos primeiros estágios de aprendizagem (MERRIAM, 1964, p. 146). Este autor enumera uma série de sociedades nas quais as crianças aprendem a cantar, dançar, tocar instrumentos etc. pelo processo da imitação direta. MERRIAM lembra quando Herskovits, em 1944, descreve brevemente

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Conversa informal sobre o assunto, travada em junho de 2008 com a professora Bernadete Porto, da Universidade Federal do Ceará.

cenas de garotos tentando aprender os ritmos de cultos afro-baianos (p. 148). Décadas depois, Ricardo Souza encontraria situação semelhante ao estudar a capoeira:

Aprende-se música por transmissão oral, através da observação, audição e execução dos toques e das cantigas nas rodas ou através da audição de “conservas” (geralmente fitas cassetes) e execução em horários outros que os normais de aula /treino (SOUZA, 1997, p. 131).

Parece que pelos inícios da década de 1990 é que o conhecimento informal148 passou a ser estudado mais rigorosamente, como atesta ELLIOTT (1995, p. 62).

Ainda hoje vemos, com freqüência, os representantes da educação formal – a das escolas e universidades – terem resistências com respeito à informalidade, ao “extra- escolar”. Freqüentemente a educação não-formal é definida em termos de oposição à educação formal; procurando defini-la por suas especificidades, GADOTTI (2005) ressalta algumas características inerentes à educação não-formal: ela é menos hierárquica do que a formal, menos burocrática; seus programas “não precisam necessariamente seguir um sistema seqüencial e hierárquico de ‘progressão’. Podem ter duração variável, e podem, ou não, conceder certificados de aprendizagem” (p. 2). Acrescenta que o tempo de aprendizagem é flexível, respeitando as diferenças de cada um; esta flexibilidade se estende à criação e re-criação dos espaços de aprendizagem. Em contrapartida, o ensino formal tem objetivos claros e específicos e “depende de uma diretriz educacional centralizada como o currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores dos ministérios da educação” (idem, ibidem).

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Citando Bereiter e Scardamalia, esse autor acrescenta que “o conhecimento informal é o senso comum desenvolvido por pessoas que bem sabem como fazer coisas em domínios específicos da prática”. (Idem, ibidem. Ver referências).

No documento Caminhos da música instrumental em Salvador (páginas 154-159)