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A NARRAÇÃO NA ESCUTA E COMPREENSÃO DE SI: O DESVELAR DO CARÁTER TRANSDISCIPLINAR

5 O MOVIMENTO INCLUSIVO EM/NA FORMAÇÃO: SENTIDOS E SIGNIFICADOS

5.1 A NARRAÇÃO NA ESCUTA E COMPREENSÃO DE SI: O DESVELAR DO CARÁTER TRANSDISCIPLINAR

Pensando longe, com os olhos parecendo perdidos no tempo, lendo as linhas traçadas na memória do tempo, às vezes de um tempo não muito longe, as professoras, usando da capacidade de transcender e ir a qualquer lugar e trazer os seus “agoras”, foram fazendo a narração de si, surpreendendo o grupo. A cada fala um revelar de si, na maioria das vezes entristecido por perceberem o teor de exclusão de si vivido no tempo desde lá, na nascente, lá na família, onde as primeiras palavras, os primeiros entendimentos se iniciaram. Era isso,

talvez, que explicava o olhar perdido e cheio de dor; era o passado se fazendo no presente, no agora. Creio que a reflexão de Souza (2006, p.102-103), diga muito desse olhar perdido no tempo, lembrando o tempo, “Tempo, memória e esquecimento. Uma trilogia para pensar a arte de lembrar, para estruturar um olhar sobre si, para revelar-se. A memória é escrita num tempo, um tempo que permite deslocamento sobre as experiências.” Deslocamento este, permitido pela capacidade de transcendência do pensar, inerente ao ser humano e natural na narração de si.

Decerto, foi essa capacidade de transcender que fez as professoras puxarem da nascente, a narração na escuta e compreensão de si, e, à medida que foram narrando suas histórias de formação e experiência, foram desvelando a exclusão vivida desde a infância, seja pela cor, deficiência, condição social, comparação, ou pelo autoritarismo, pelo ensino descontextualizado, pela omissão da escuta, imposição na escolha profissional, pelo vazio entre a formação e a realidade, entre o eu e as exigências da vida, inclusive pela própria esperteza infantil que, por incomodar, foi domesticada, ou ainda, pelas falsas verdades que mascaravam a complexidade do ler e do escrever, instigando a culpa do não saber; o medo do erro, da incapacidade, desconsiderando o que Freire (2003, p.63) com toda sabedoria afirmava:

Acho que deveríamos falar com os alunos sobre todas as implicações de escrever e de ler. Devíamos deixar bem claro que é irresponsável sugerir que ler é algo fácil. Também é ruim não deixar claro que ler é uma espécie de pesquisa. Dessa forma, estudar significa descobrir alguma coisa. E o ato de desvelar traz consigo um certo prazer, um certo momento de felicidade que é criação e recriação.

O processo narrativo foi se revelando como uma experiência que no fazer acontecer, mobilizava as professoras a pensarem, pensando no modo existencial de ser de cada uma delas e, nesse acontecer de escuta e compreensão de si, algo muito importante ia se revelando. À medida que as professoras narravam, iam se surpreendendo com a redescoberta de si na significação de sua existência. E, nesse experienciar, foi cada vez mais sendo evidenciado o entendimento de que, não só nas experiências de vida, mas também nas experiências em formação, retratava a presença do movimento da exclusão e inclusão. Assim, na escuta de si e com o olhar buscando o sentido da realidade pedagógica e de sua atuação nela, a profª Irma dá um tom exclamativo “a gente nunca pára pra se ver!” E neste agora, fazendo uma analogia com a condição da mulher, puxando o compreendido do filme Colcha de Retalhos, ela continua:

o casamento de Sofia lhe abafou é o que acontece na escola. A escola, se vocês prestarem atenção, o aluno chega muito vivo dentro da escola. Eu noto o olhar deles, aquela vivacidade e depois aqueles que conseguem vencer as barreiras da escola, ultrapassam tudo isso, mas a maioria vai embora. Por que? Foi a escola! Ele quer a escola, mas...!

De forma contundente, a profª Custódia acrescenta: “Sofia saiu de uma prisão para

outra porque queria libertar-se” revelando, pela intolerância do assujeitamento da mulher,

evidências do sentido que pulsava em si. Na discussão, as professoras deixam implícito o ensurdecimento da escola que, no seu olhar padronizado, vem definindo o dizer, o fazer, e o ser, que muitas vezes entristecido pela negação de si, vai perdendo a vivacidade e a razão da sua permanência na escola, guardando muitas vezes em si a culpabilidade por não saber ultrapassar as barreiras da norma culta da linguagem, dos preconceitos, das exigências e das arbitrariedades. Essa discussão emergiu da escuta da narração e compreensão de si. Foi nesse movimento, escutando a si e as outras professoras, vendo-se e compreendendo-se nessa escuta, que a profª Kátia parando e respirando fundo, parecendo ter descoberto algo que ainda estava velado, exclamou: “fomos todas excluídas”! Desvelando assim, no movimento excludente, narrado pelas professoras na história de formação e experiência, um estado de comum pertencimento. Nesse sentido, o susto tomou a significação de charneira, no desvelar- se do grupo.

Na medida em que, o desabrochar das rosas foi sendo sentido e analisado, a significação do susto enquanto charneira foi cada vez mais ficando evidente, como explica Josso (2004, p.64): “momentos ou acontecimentos charneira são aqueles que representam uma passagem entre duas etapas da vida, um divisor de águas” e, nesse entendimento, o susto deu visibilidade ao sentido da exclusão vivida no modo existencial de cada professora, e a charneira simbolizou o entre lugar, o entre meios. A sutileza dessa questão ficou retratada no movimento das professoras em desfiar, no perceber-se imune à exclusão material e simbólica vivida no processo de inclusão no conhecimento hegemônico. Na sua significação, a charneira delimitou o divisor de águas; as professoras começavam a deixar de perceber a ”inclusão” como um conteúdo conceitual e suas decorrentes estratégias, e passavam a percebê-la na significação da essência da existência revelada na narrativa da história de formação e experiência.

Dando sinais da compreensão desse desafio em formação, a profª Margarida trouxe à tona o processo vivido no cotidiano da pessoa que tem, no seu modo ser, o percurso do processo inclusivo vivido. Dessa forma, pergunta a profª Josivilma que tem deficiência visual:

como foi seu processo de inclusão? A escola acolhia, adaptava ou existia um mediador que fazia o papel da escola? Olhando atenta e pensando sobre o vivido, ela responde:

[...] inclusão mesmo eu me sentia quando a instituição, UFS, ou outras escolas, me favoreciam conhecimento; as pessoas que estavam do meu lado seriam mediadoras; quando a instituição não estava me dando isso, essas pessoas seriam suporte. Era uma inclusão, mas não é a que a gente ta falando aqui.

Nesse diálogo, a professora deixa evidente o quanto no movimento cotidiano da sua experiência, a inclusão implicava na intencionalidade de, olhando a deficiência como algo que por razões próprias lhe colocava fora do processo, podia ser ou não incluída, gerando para os alunos com deficiência, a condição de ficar na dependência do poder concedido, condição esta que na sua experiência Josivilma estava relatando como vivida, enquanto pessoa com deficiência visual, ela ficava nas instituições de ensino por onde estudou a mercê desse poder, aguardando, esperando, sem usar do direito de qualquer cidadã, o que a instituição ou/e o outro permitisse, facilitasse. Nessa perspectiva a inclusão em vez de gerar autonomia gera dependência, negando, dessa forma, o que anuncia Mantoan (1997, p. 36), “o fim último da Educação Inclusiva é a autonomia moral e intelectual de pessoas com deficiência.”

Daí, porque o sentido inclusivo em formação tomou proporções dentro do perceber-se no modo existencial de ser e, no espaço experiencial da pesquisa-formação, a grande revelação no movimento da tecedura “a narração na escuta e compreensão de si” foi o processo vivido ao revelar-se incluído, presente na sua narrativa. O surpreendente, também, nesse movimento foi o desvelar do caráter transdisciplinar da narrativa, implicado no poder humano em narrar e revelar a subjetividade do ser, fazendo com que as professoras fossem, aos poucos, rompendo os lacres do que tinha sido silenciado pela ocultação, do pensar na globalidade da significação existencial. E, nesse desvelar, um outro movimento foi sendo vivido e revelado, ou seja, as professoras estavam, de fato, vivenciando uma experiência com o sabor do sentido que lhes toca e lhes significa; um caminhar com sentido refletindo sobre o processo inclusivo em formação, ultrapassando os limites do tempo, dos lugares, distanciando-se, dessa forma, do relato linear dos fatos ocorridos. Nesse processo, a narração fez com que as professoras fossem revelando-se e percebendo-se na teia da complexidade da realidade vivida, destacando a evidência na pesquisa e na formação, o sentido do que Ludke e André (1986, p.5) argumentam:

O conceito de causalidade, que apontava para a busca de um fluxo linear entre variáveis independentes e dependentes, também não responde mais à percepção do pesquisador atual, atenta à complexidade da teia quase inextrincável de variáveis [...] o que ocorre em educação é, em, geral, a múltipla ação de inúmeras varáveis agindo e interagindo ao mesmo tempo. Ao tentar isolar algumas dessas variáveis, está se optando, necessariamente, por uma redução do enfoque do estudo a uma parte do fenômeno. Isso pode ser útil para fins de análises específicas, mas não resolve o problema da compreensão geral do fenômeno em sua dinâmica complexidade.

A essência do possibilitar transdisciplinar estava na flexibilidade de uma nova lógica, aberta à inclusão de si, e o fio da meada desse processo de transformação foi puxado pela presença retratada no modo existencial de ser, nesse exercitar-se do pensar na globalidade da vida de formação e experiência. Destarte, as professoras pensando desde a nascente, foram aprofundando a possibilidade, não só da inclusão de si no seu atuar, mas também, como co- participante da pesquisa-formação sendo e se fazendo atrizes e autoras. Nesse experienciar, foram ouvindo a si próprias e na escuta às outras professoras, foram desabrochando o sentido do aprender, e aprender no movimento dessa escuta. Uma outra questão interessante revelada nesse movimento e de grande importância para a formação inclusiva, foi o fato de que as professoras nesse mergulho de si, trouxeram para o movimento da pesquisa-formação, não só a história oficial, mas também sua história vivida e entrelaçada na história oficial, desvelando inclusive, o barulho do silêncio o qual, nesta história vivida, foi silenciado.

Nesse movimento de si e em si, ficou evidente o quanto na narrativa oral, a professora foi revelando sua identidade na diferenciação de ser e de perceber-se, no que das diferentes realidades, relações e acontecimentos vividos e sentidos, ficou em si e lhe revela. Isso ficou visível porque, apesar do co-pertencimento de uma formação transversalizada pelo autoritarismo, pelo silenciamento e pelo modelo padrão, que tenta perfilar o pensar, cada professora revelou uma forma singular de dar significação ao que tirou para si, do vivido na experiência da formação e da vida em formação. O perceber-se na diferenciação de ser foi uma descoberta e uma revelação fantástica para as professoras compreenderem que não existe um perfil padrão que defina o ser professor; existe uma diferenciação de ser retratada e retratando o ser sendo, vivido na sua história, na sua experiência, no seu modo de ser no mundo e, para o movimento de busca dessa pesquisa-formação, o sentido dessa diferenciação de ser seria o nutriente em busca da compreensão do sentido ontológico, o qual lhe revela no ser-sendo e se fazendo professora.

A tecedura “a narração na escuta e compreensão de si”, consagrou o encontrar-se, o revelar-se, o incluir-se aberto com respeito à escuta de si e das outras professoras. E, nesse espaço, foi se confirmando o co-pertencimento em formação e na vida, retratado no sentido do silenciamento da exclusão vivida, ao mesmo tempo em que criou efervescência na narrativa oral, fecundando cada vez mais a ampliação na compreensão si; havia puxado da memória as lembranças com sentido e sem sentido as quais pareciam soltas, todavia, na presença do agora, tomavam proporções na significação em formação. Nesses momentos, outras linguagens se entrelaçavam à linguagem verbal, ou melhor, fluía da morada do ser, na essência do sentido da fala de Heidegger (2002), a linguagem, seja escrita, verbal, gestual, Braille, e da emoção, é a morada do ser.

A ciranda havia achado a chave e agora poderia mostrar a Drummond como a linguagem que ressoava da morada do ser poderia ser vista na emoção do tom da voz, no movimento corporal e no olhar faiscando de brilho da profª Sheila, ao trazer um acontecimento parecendo sem sentido, contudo encharcado do sentido da emoção, quando alimentando o prazer no sorriso, ela narrava: “no segundo grau o estagiário da UFS era bom

porque ele tinha uma linguagem mais simples e estabelecia uma relação dialógica com o grupo, a gente interagia na discussão”. Continuando, ela realçou o encantamento na sua

experiência de aprendizagem, que apesar de gerada em um universo autoritário, revelava o prazer na lembrança do estado poético de suas professoras31, ao trazerem a “poesia” para a situação de ensino, e, um sorriso carregado de lembranças e afeto floriu sua fala e o semblante da Profª Kátia, confirmando o acontecimento. No entanto, em seguida, ofuscando o brilho do seu sorriso, a profª Sheila colocava que, “com os professores era diferente, eles explicavam

numa linguagem mais elaborada ou técnica ou ausente de si e nós apenas ouvíamos” e, nesse

caso, a interação era vista pelo silêncio, no não discordar simbolizando o concordar.

A beleza dessa efervescência a qual revelava de si na diversidade da linguagem, fluiu na espontaneidade da oralidade, mobilizando inclusive, os sentidos e significados que muitas vezes estavam camuflados fazendo desse atuar um momento fundante para a pesquisa- formação. Tanto que o DVD produzido com essa narrativa, serviu de suporte para a narrativa escrita; Entretanto, apesar dessa transferência, as professoras trazendo na linguagem escrita as marcas contundentes do formalismo, das normas e das regras normativas da escrita, mantiveram a impessoalidade, e, no perceber-se da profª Margarida, era “como se fosse o

outro contando para mim sua história”. Mas, mesmo assim, essa primeira escrita narrativa

representou um marco significativo para a pesquisa-formação; foi a grande referência do registro do pensamento narrado. Essa compreensão nasce do sentido e da importância que Bakhtin (2000, p. 329) dá ao texto quando afirma: “onde não há texto não há objeto de estudo e de pensamento.” Então, como revelar e compreender o pensamento que diz de si, mantendo a escrita na impessoalidade?

Indiscutivelmente, o caráter transdisciplinar no experienciar da pesquisa-formação realçou a essência autobiográfica da narrativa por possibilitar que as professoras navegassem na história e dela trouxessem a experiência vivida em formação e na vida em formação. E sem pedir licença, foram se autorizando a se ver, surpreender e a se descobrirem no processo de formação na inclusão do 3º excluído: ela própria, desvelando na dimensão do paradoxo “exclusão x inclusão” vivido, o teor do constiuir-se na significação da existência. Foi como ser, no mundo dessa existência que as professoras puxaram os fios e meadas para narrarem. Isso posto, só poderia ser com base nessa intertextualidade que a escrita narrativa poderia ser nutrida, para realçar a vida do narrador com vida, e o eixo da questão consistia em que cada professora, por si, desvendasse o sentido ontológico do ser-professora para melhor compreender sua significação no processo inclusivo em formação de professores.

5.2 A DIALOGICIDADE NA MULTIPLICIDADE DE VOZES: DESFIANDO